ISSN 1806-9312  
Sábado, 23 de Novembro de 2024
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2520 - Vol. 66 / Edição 6 / Período: Novembro - Dezembro de 2000
Seção: Artigo de Opinião Páginas: 574 a 578
REFLEXÕES SOBRE A BIOÉTICA NO MARCO DA SOCIEDADE DO FIM DO SÉCULO 20.
Autor(es):
Ricardo S. Cohen*.

INTRODUÇÃO

A Bioética-ética prática relacionada às ciências da vida, que normalmente é utilizada lexicograficamente em relação à ética aplicada ao conhecimento médico, não pode ser objeto de reflexão se não fizermos previamente uma análise contextual dela neste fim do século 20.

A Sociedade passou por profundas mudanças nos últimos 30 anos nas democracias liberais pluralistas do Ocidente globalizado. Nas sociedades às quais pertencemos, estas mudanças tiveram uma profunda repercussão sócio-cultural com singulares manifestações no terreno da ética.

Qualquer consideração sobre a problemática da Bioética que a isole do seu contexto retirará o marco referencial necessário para uma análise realista da questão e dos interrogantes atuais sobre ela, que devem ser resolvidos para podermos responder aos dilemas éticos apresentados pela medicina.

BIOÉTICA NOE ÚLTIMOS ANOS DO SÉCULO 20

Há três elementos básicos que devem ser levados em consideração para desenhar um contexto para a Bioética dos últimos 25 anos do século 20 e que serão apresentados a seguir:

1. Ressurgimento da ética na sociedade, que implica não em uma renascença da concepção ética tradicional da modernidade - a ética do dever -, que dominou indiscutivelmente até a década de 70, e sim no nascimento de uma nova ética que vá além do dever, inspirada nas mudanças dos modelos sociais, econômicos e culturais que ocorreram nos nossos países.

2. Mudanças econômicas e sócio-culturais das sociedades ocidentais, que provocaram uma mudança de atitude do homem frente a ele mesmo (narcisismo, hedonismo, consumismo, condutas baseadas nos direitos subjetivos); e, portanto, também o abandono, como já frei dito, da ética do dever, trocada por uma ética que, daqui para a frente, denominaremos de pós-moral, por razões que vamos mostrar.

3. Transformação da sociedade moderna, cuja pauta moral e cultural é o dever, numa sociedade pós-moral na qual, em conseqüência, desenvolve-se uma cultura pós-moral. De forma nenhuma, esta transição significa a passagem para uma sociedade sem moral, mas define uma sociedade que demanda avidamente uma ética situada além da heteronomia religiosa ("morte de Deus", primeira secularização da ética) e também da heróica religiosidade do culto ao dever ("crepúsculo do dever", segunda secularização da ética). Morto Deus, abandonado o quase-religioso, dogmático, destemperado e heróico culto ao dever como ato de fé, aparece na sociedade pós-moral uma ética fruto de uma concepção pós-moral que será caracterizada no próximo item.

ÉTICA NO FIM DO MILÊNIO

Um nome, um ideal, congrega os espíritos e reanima o coração das democracias ocidentais neste fim de milênio: a ética. Depois de quase dez anos, o efeito ético continua ganhando força, invade os meios de comunicação, alimenta a reflexão jurídica, deontológica e bioética. Por toda parte surgem a revitalização dos valores e o espírito da responsabilidade como o imperativo número um da época: a esfera ética transformou-se no espelho privilegiado do tempo em que vivemos. Enquanto se fortalece a ética, alcançando figurativamente títulos de nobreza, consolida-se uma nova cultura que apenas mantém o culto da eficácia e dos regulamentos sensatos, do sucesso e da proteção moral. Não há mais utopia sobre o que é moral: "o século 21 será ético ou não será".

O tema da reativação moral, da "ordem moral", está em voga, mas, qual é a natureza deste ressurgimento e exatamente o tipo de moral de que falamos? Para ser claros, atacamos como falsa a idéia presumidamente evidente do "retorno". Depois de um período de relaxamento, nos dias de hoje a ética volta a ser colocada num pedestal. Entretanto, a idéia de ressurgimento, de renascença, faz pensar que retomamos um caminho já percorrido, com ânimos renovados; e, possivelmente, algum aggiornamento. Mas não é assim. A nossa época não restabelece o âmbito da "antiga boa moral": o que faz é se livrar dela. Isto não significa uma ruptura das tábuas da lei, nem uma invenção de novos valores morais: no que é essencial, esses valores continuam sendo os mesmos há séculos e milênios. Esta longa continuidade não inibe a mudança histórica do seu funcionamento social, nem serve de obstáculo para uma nova forma de se remeter a esses valores. O novo regulamento moral tem um significado funcional que é inédito até o momento em que institui uma nova fase na história da ética moderna.

Se observarmos de perto este fenômeno, sem considerá-lo em perspectiva, perceberemos o efeito patente do ressurgimento da ética como um fato que nos chama a atenção. Mas, assim que mantemos uma certa distância - que nos permite ver em perspectiva esta renascença (utilizando a palavra renascença com as reservas já ditas) -, testemunhamos uma grande mudança cultural que, embora abrace os referenciais humanistas de sempre, consegue instaurar uma ética de um "terceiro tipo", que não utiliza como modelo nem as morais religiosas tradicionais, nem as modernas do dever laico, rigorista e categórico.

Com isto, queremos dizer que somente uma perspectiva de longa duração é capaz de nos proporcionar todo o sentido, todo o relevo, deste novo curso histórico da vida moral. No princípio, a moral era Deus - somente na fé reinando a virtude -, e por isso a moral pré-moderna é de essência teológica. A partir do século 17, os modernos negam esta sujeição da moral à religião produzindo-se o que chamaremos de primeira secularização da moral, que passa a ser considerada uma ordem independente e universal, que somente se remete à condição humana e que passa a constituir uma das figuras mais significativas da cultura democrática moderna.

Com a modernidade, a ética dos direitos do indivíduo é o padrão moral, laico e universal, que constitui, conjuntamente com os ideais de soberania individual e de igualdade civil, a base reguladora do novo pacto social. No século 18, Rousseau criou a religião cívica moderna do dever, que é o jacobinismo, após a República, que mais tarde será seguida por diversos filósofos e - permanecerá até a metade do nosso século.

Mas este período também está encenado, concluindo assim o ciclo do que podemos denominar de primeira secularização da moral, que funcionou como uma religião do dever laico. Surgiu uma nova lógica do processo de secularização da moral, que não consiste só em afirmar a ética como esfera independente das religiões reveladas, mas em dissolver socialmente a sua forma religiosa, o dever propriamente dito. Na segunda metade deste século, as sociedades democráticas precipitaram o que se pode denominar de segunda secularização ética, ou a época do pós-dever. A cultura ética das nossas sociedades atuais já não está tão impregnada pelos imperativos heróicos ou sacrificados do dever, e sim pelo bem-estar e a dinâmica dos direitos subjetivos. As democracias oscilaram além do dever para se acomodarem, não "sem fé nem lei" mas dentro de uma ética fraca e mínima "sem obrigação nem sanção", não coercitiva nem punitiva, mas que impregna inexoravelmente as diversas camadas da sociedade, eclodindo assim a sociedade pós-moralista.

Entendemos como sociedade pós-moralista aquela que repudia a retórica do dever austero, íntegro, maniqueísta e que, paralelamente, coroa os direitos individuais à autonomia, o desejo e a felicidade. Advém o novo período do sucesso da temática ética e da lógica pós-moralista, ética que não requer grandes sacrifícios, nem despojamentos, eleita em relação a uma lógica que lhe permite conciliar a virtude e o interesse, o coração e a festa, a qualidade de vida no presente com os imperativos de melhora no futuro.

O pós-dever não é sinônimo de sociedades que comungam com uma tolerância permissiva e que somente desejam a ampliação dos direitos e aspirações individualistas. A preocupação e os clamores suscitados pelo aborto, a transgressão dos limites, os costumes dissolutos, a pornografia, as diversas formas de se atentar contra a dignidade humana, o ambiente, os direitos do paciente e do consumidor, o infodesprezo e a irresponsabilidade dos meios de comunicação, etc. O pós-dever aprofunda a discussão ética dentro de uma lógica ligeira (por não ser rigorista e maniqueísta) e dialogada, liberal, pragmática e referida à construção gradual dos limites que define limiares, integra critérios múltiplos, institui derrogações e exceções.

Coexiste, no entanto, de forma marginal, com a lógica ética do pós-dever, uma lógica extremista e binária, com argumentações mais doutrinais do que realistas, baseada em dogmatismos éticos e jurídicos.

O rosto do amanhã surgirá do confronto entre estas duas lógicas antagônicas: uma, afastando-se dos extremismos, levando em consideração a complexidade tanto do social quanto das situações individuais, inventando constantemente dispositivos plurais, experimentais, consensuados e personalizados; a outra, afastando-se em nome do rigor dos dogmas, das realidades sociais e individuais. A história e a sociedade são mutantes. O resultado deste confronto será visto no devenir das condutas éticas. O fim do dever não implica no "fim da história".

A cultura sem dever, a ética do pós-dever, é uma ética individualista. A prática do individualismo dá lugar a uma situação dupla nas nossas democracias: por um lado, um setor integrado, autônomo, gestionário e móvel; e, por outro, o retorno da grande pobreza, da precariedade e da marginalização sociais - mais exclusão, mais violência, mais autodestruição e mais pessoas "sem teto". Esta situação dupla é o resultado de duas lógicas antinômicas do individualismo: por um lado, o individualismo unido às regras morais, à eqüidade, ao futuro; por outro, o individualismo de cada um por si, transgressor, que fomenta a deserção das camadas sociais no cumprimento das tarefas eqüitativas de promoção geral. Em termos éticos, esta situação dupla deve-se ao conflito do individualismo responsável contra o individualismo irresponsável. A tarefa das democracias, acicatadas pelo impulso ético que vivemos, é fazer retroceder o individualismo irresponsável, redefinindo as instituições e as condições políticas e econômicas que permitam fomentar o individualismo responsável.

O movimento atual em relação à ética é uma sorte para as democracias, testemunhando acrescente tomada de consciência da nossa responsabilidade em relação ao futuro, uma lucidez maior para o aperfeiçoamento dos valores humanistas.

Entretanto, muito cuidado com a ética proclamada mas que não vem acompanhada de ações, cuidado com a ética cosmética, expressada em grandes declarações assinadas e que se contradizem nos fatos! Relativizar as esperanças, mantidas pela corrente ética, não significa desacreditá-las, mas requer plasmar um compromisso com uma forma de ação ética.

Advogamos a causa das éticas inteligentes e aplicadas, menos preocupadas pelas intenções puras do que pelos resultados benéficos para o homem, menos idealistas que reformadoras, menos adeptas ao absoluto que às mudanças realistas, menos cominatórias que responsabilizadoras. Advogamos, em resumo, por uma ética da responsabilidade e não do dever, por uma ética da preocupação razoável da pessoa e pela coesão social; uma ética de respeito pelo homem e seus direitos subjetivos, uma ética que faça crescer o espírito de negociação e de pragmatismo renovador, uma ética pluralista que conjugue as individualidades responsáveis através de um humanismo engenhoso.

Não sendo os homens nem melhores nem piores do que em outros tempos, joguemos a carta coletiva da ciência e da formação, da razão pragmática e experimental -menos exigente para o individualismo, mas mais eficaz socialmente; menos categórica para as pessoas, mas mais premente para as organizações; menos sublime, mas mais apta para responsabilizar os homens; menos pura, mas suscetível de corrigir com maior celeridade os excessos ou indignidades das democracias.

As malversações, injustiças e torpezas nunca desaparecerão: o máximo que podemos fazer é limitar sua extensão e reagir de maneira mais inteligente. Se o progresso moral tem um sentido na história, não está contido somente em um respeito maior pelos direitos do homem, e sim na nossa disposição de retificar o mais rápido possível o intolerável; a ética "prudente" ou a aptidão para ganhar tempo contra o mal e a dor dos homens. Não há na nossa época tarefa mais crucial para a ética do que fazer retroceder o individualismo responsável e redefinir as condições políticas, sociais, empresariais, educacionais e o exercício profissional, capazes de fazer progredir o individualismo responsável.

BIOÉTICA E RESSURGIMENTO DA VONTADE ÉTICA

O âmbito biomédico ilustra muito bem o despertar e a marcante reavivação da vontade ética. A partir da década de 70, uma enxurrada de artigos, livros e colóquios dedicados à bioética inundaram o terreno do pensamento médico. Os médicos e pesquisadores tomam posição publicamente frente aos dilemas morais apresentados pelas novas tecnologias e pelos diversos avanços na área das ciências médicas; os meios de comunicação propagam na sociedade progressos e opiniões, informação sobre avanços e explicam as apostas éticas que representam para a sociedade. A ética médica é ensinada nas faculdades e as instituições médicas de todos os níveis estão dedicadas a definir o âmbito ético que corresponde ao mutante devenir do progresso científico. Os projetos de lei relacionados à ética biomédica e os regulamentos do Estado neste sentido são comuns nos nossos dias. A bioética transformou-se em um tema da sociedade.

O interrogante bioético foi inicialmente impulsionado pelo tema da experimentação no homem durante a década de 60. Os "milagres" da ciência fizeram vacilar as referências tradicionais da vida, da morte e da filiação; despertaram os medos da eugenesia e do "melhor dos mundos"; desestabilizaram as regras consensuais tradicionais da deontologia médica. Uma bioética atual deve responder a esta erosão dos pontos referenciais aceitos até há pouco tempo; deve traduzir a vontade de que sejam determinadas normas que respeitem o honrem e de que sejam instituídos sistemas de auto-regulamentação, de forma tal que o avanço científico não leve a uma ciência sem consciência.

As posições filosóficas mais diversas passam pela reflexão bioética. A preocupação biomédica apresenta um novo campo de interrogativas que causa tomadas de posição revitalizando a forma absolutista do dever. A humanidade do homem, parecendo ameaçada pelos progressos da biomedicina, reforça a idéia de que é necessário restaurar os imperativos incondicionais destinados a pôr freio ao extremismo da onipotência técnica, capitalista e individualista. O temor à eugenesia e ao biopoder, a angústia difusa de uma desumanização do homem pelo desenvolvimento das tecnologias da biologia foram o instrumento para a reafirmação de uma ética categórica. Multiplicam-se as declarações clamando por proibições relacionadas a aspectos cio progresso biomédico, afirmando-se somente no "caráter sagrado da vida" e o princípio da individualidade da natureza. Entre os pesquisadores há aqueles que reivindicam o direito ao "não descobrimento" e uma ética de "não intervenção". Enquanto isso, alguns filósofos enunciam a obrigação categórica de não pôr em jogo a existência ou a essência do homem na sua integridade.

Com base na "defesa dos direitos do homem", a ética categórica recupera o brilho e tenta se impor como um novo virtuosismo dogmático que enxerga o progresso biomédico como um catastrofismo, alimentado pelos reflexos anti-ciência subjacentes nas culturas mais atuais.

A este ressurgimento do diretivismo incondicional, o rumo bioético contemporâneo impõe - com o testemunho de seu funcionamento efetivo e o impacto positivo do progresso sobre as ciências da vida - uma lógica diferente. Esta lógica adversa aplica uma valorização moral, dialogada e pragmática para chegar à ética da justa medida entre o respeito pela pessoa e as exigências da investigação; entre o respeito pelos valores do indivíduo e o seu valor intrínseco como pessoa e o interesse coletivo. Isto é uma ética da prudência que recusa os extremos; mas, nem por isso, transige com os imperativos da liberdade e a dignidade individuais.

Sem dúvida, nada mostra melhor esta sensatez bioética do que os princípios e códigos deontológicos adotados pela comunidade científica com a finalidade de determinar as condições de aceitabilidade da pesquisa biomédica nos seres humanos. Em 1947, no Código de Nüremberg e depois, em 1964, no Código de Helsinki, e no de Tóquio, em 1975, foram feitas precisões muito claras nesse sentido, transmitindo a vontade bioética de não sacrificar nenhum dos valores superiores que são o respeito pelo individualismo, o progresso da ciência e o interesse da coletividade.

O desenvolvimento das ciências biológicas e médicas, os diversos experimentos "abusivos", a procura de um equilíbrio entre ideais parciais ou aparentemente antagônicos levaram a classe médica a estabelecer regras de deontologia cada vez mais universais, em relação à ética da pesquisa e aos poderes públicos, impondo regulamentações rigorosas destinadas a proteger os cidadãos. Em menos de meio século, passamos de uma deontologia médica dominada pela consciência dos pesquisadores e pela tradição hipocrática para uma deontologia detalhada e casuística, a uma internacionalização dos padrões metodológicos e a uma proliferação legislativa e normativa preocupada em compatibilizar, na prática, a ética do indivíduo com a ética dos conhecimentos, os direitos do homem com o bem-estar social.

PRINCÍPIOS DA PESQUISA EM SERES HUMANOS

Na bioética atual e na relação com os experimentos no homem, não se trata de justificar seus questionamentos morais em nome do objetivo superior da melhora futura da saúde geral, nem de se acomodar na doutrina do mal menor. Trata-se de determinar nas pesquisas no homem fronteiras em relação ao máximo risco admissível e não de eliminar qualquer risco. Trata-se, finalmente, de determinar limites para o proposto pelo pesquisador, que deve passar pelo consentimento do outro.

Seja qual for o interesse científico do projeto, na ordem terapêutica, os riscos admissíveis não devem superar na sua gravidade os riscos da evolução natural da doença, o equilíbrio risco-benefício deve ser sempre aceitável e os doentes não devem ser utilizados em experiências que não estejam relacionadas com a sua própria doença. Quando as pessoas submetidas às experiências são sãs e voluntárias, devem ser expostas somente a riscos mínimos.

A bioética da investigação nos seres humanos deve estar baseada na exigência do consentimento livre e consciente, na determinação do limite que se pode propor aos sujeitos que participam nutria pesquisa, na determinação de uma fronteira do máximo de riscos admissíveis e na submissão dos protocolos experimentais a comitês independentes, especialmente designados para essa finalidade.

Nestes princípios está baseada a atual filosofia da pesquisa, um humanismo pragmático que reúne a firmeza do princípio do respeito pela pessoa e a flexibilidade exigida pelo progresso científico. Esta filosofia da pesquisa recusa-se a transformar o homem numa cobaia, mas também se nega a se privar de um meio necessário para o desenvolvimento do saber que proporcionará a utilidade e o bem coletivo.

O compromisso de realismo científico e de idealismo ético, de utilitarismo e de kantismo, de imperativo hipotético e de imperativo categórico, caracteriza o que podemos denominar de pós-moralismo bioético. Nisso, como em outras questões, a renovação ética não remete ao culto tradicional do dever, mas ao desenvolvimento de uma ética de responsabilidade aberta e aproximadora, de uma ética probabilística das decisões, que avalia o risco e a relação custo-benefício da pesquisa no homem. O diálogo bioético, a aplicação dos princípios da ética dialógica à ética biomédica, deve se impor sobre a aplicação dogmática de regras que digam o que é bom e o que é mau no campo do progresso médico. O diálogo bioético e a legitimidade estocástica são, em última instância, as bases da bioética pós-moral.

SIGNIFICADO PRÁTICO DA BIOLOGIA DIALÓGICA

A ética dialogada, a bioética do consenso, está no centro das novas instituições locais, nacionais e até transnacionais, destinadas a dar respostas às perguntas inéditas que vão fazendo as ciências biológicas e médicas. Com a Declaração de Helsinki, de 1964, aparece pela primeira vez, de forma explícita, a recomendação de "comitês independentes" encarregados de avaliar, do ponto de vista ético, os projetos de pesquisa nas ciências biomédicas. A seguir, nas instituições médicas, é imposta a regra de criar comitês de avaliação com o papel de se pronunciar, previamente a qualquer concessão de fundos para a investigação, sobre a proteção dos direitos dos indivíduos implicados na experiência, a pertinência dos métodos para obter o consentimento informado e a relação risco-benefício que deve ser apresentada para aceitação dos sujeitos. Em diversos países foram constituídos comitês de ética institucionais, locais, regionais e inclusive nacionais, como aconteceu na França, em 1983, quando foi criado, por decreto, o Comitê Nacional de Ética.

O comitê de ética de pesquisa clínica é uma instância consultiva, sem poder de decisão, que formula opiniões e recomendações no que se refere às questões éticas relacionadas com o progresso da investigação biológica e médica e que informa às autoridades e a opinião pública. Os comitês éticos de pesquisa estão constituídos segundo o princípio pluralista de abertura a pessoas alheias ao mundo médico. Pertencem a eles não só pesquisadores e médicos sem interesse direto nas pesquisas examinadas, como também, embora em número reduzido, membros do pessoal hospitalar, filósofos, juristas, teólogos, sociólogos e representantes dos pacientes.

A diversidade de formação e competência dos membros que constituem um comitê de ética representa um aspecto original deste fenômeno que ilustra a tendência de que as decisões que se devem tomar sobre a experiência a ser realizada ou sobre a aplicação de novos elementos diagnóstico-terapêuticos, sejam tomadas pelo conjunto da sociedade, representada através da formação pluralista destes organismos. Afasta-se, desta forma, do âmbito puramente médico-científico, o juízo sobre a moralidade da investigação biomédica.

As democracias abertas instituem, desta forma, o diálogo do médico e do não médico e de diversos representantes de vários ramos do saber não médico. A verdade moral já não é um direito a ser monopolizado por uma autoridade tradicional, profissional ou confessional, mas surge da deliberação interdisciplinar, no marco do compromisso democrático. Essa é a resposta da ética pós-moralista para os conflitos bioéticos: o debate democrático e plural entre representantes de diversas disciplinas que observam um mesmo fenômeno a partir de pontos de vista diferentes. Debatida pelos homens, a decisão bioética representa um passo a mais no processo de secularização da moral: corresponde à coletividade dos homens determinar e corrigir, em função da sua vontade e dos conhecimentos disponíveis, as normas que deverão regê-la.

Na época pós-moral, o que é bom e o que é justo é determinado institucionalmente através de pessoas que aos poucos adquirem, digamos assim, o caráter de "especialistas". Aparecem assim os "eticistas", os "especialistas em ética", os "consultores de bioética", que em alguns países se profissionalizam e vendem seu conhecimento às instituições da saúde. Realiza-se assim o casamento - pós-moral entre ética e profissionalismo.

Os comitês de ética estão em pleno processo evolutivo no que se refere à validade da sua função, dentro da dinâmica participativa e das normas e valores de uma sociedade de objetivos e da demanda de uma gestão equilibrada dos direitos do homem e da ciência e a sua vontade de um "meio justo" determinado pelos especialistas, adaptado ao modo de vida individualista pós-moralista que assegure os direitos individuais e o progresso científico. O cidadão comum pouco participa nas decisões bióéticas; entretanto, não confia essas decisões ao âmbito político, mas a instituições independentes desse poder. Os comitês de ética estão em concordância com o neoindividualismo absorvido pelo ego e seus direitos, céptico em relação à política, mais preocupado com decisões imparciais e equilibrados do que com confrontos ideológicos.

Numa sociedade em que os antagonismos ideológicos têm menos contraste, em que as paixões concentram-se na gestão generalizada do espaço privado e profissional, a tendência mais marcante dos indivíduos é reforçara legitimidade baseada na competência e entregar aos organismos competentes o cuidado de determinaras opções finais. Portanto, o regresso ao âmbito moral é, principalmente, uma "ética por procuração", uma "ética delegada" e o comitê de ética representa a expansão para o âmbito moral da organização tecnocrática que reafirma a vontade ética da sociedade; mas, devido à desmotivação individualista que vivemos, a reafirmação ética na bioética é uma "ética sem cidadãos".

CONCLUSÃO

O olharem perspectiva das democracias pluralistas ocidentais percebe uma reclamação ética crescente dentro delas. As pretensões desta reclamação estão relacionadas às mudanças que o devenir histórico e sócio-cultural destas sociedades vêm produzindo nelas. A bioética atual deve se conciliar dentro do marco das modernas éticas dialógicas baseadas no consenso. O cidadão comum delega, em instâncias especializadas de conformação plural, a decisão e tomada de decisões no que se refere à bioética. É a partir deste exame sucinto da situação que se deve pensar a ética biomédica na nossa sociedade atual.




* Médico, Doutor, Diretor do Centro de Otorrinolaringologia de Tucumán - Argentina.
Pró-Secretaria de Ética e Deontologia Médicas.
Federação Argentina de Sociedades de Otorrinolaringologia.
E-mail: riseco@tuebbs.com.ar

Artigo recebido em 7 de maio de 2000. Artigo aceito em 16 de junho de 2000.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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