Dentro do tempo disponível, procurarei dar algumas noções sobre as surdêses de percepção e as normas gerais de indicação da Prótese auditiva.
I - Noções sôbre as surdeses de percepção
Ao examinarmos o paciente, não desprezamos os diapasões, que ainda nos ministram dados interessantes.
O exame audiométrico será capital. Quero, em primeiro lugar, recordar que as surdéses de transmissão pura não ultrapassam o limite dos 60 db. Uma hipoacusia acentuada, indica sempre comprometimento de percepção. Em segundo lugar, relembrar que várias formas de curva tonal podem ser observadas nestas hipoacusias (em declive uniforme para os agudos, em queda brusca nos agudos, escotoma em 4.000, horizontal, em concavidade inferior, com queda nos graves). Uma curva bastante freqüente é a que evidencia queda nos agudos; se tal queda fôr, relativamente acentuada, isto equivale a comprometimento do aparelho de percepção.
Há curvas que são vistas mais amiúde em certas afecções. A presbiacusia apresenta via de regra curva em declive dos graves para os agudos. No traumatismo sonoro, o escotoma em 4.000 aparece na maioria dos casos. Na. doença de Ménière, a curva de configuração horizontal costuma ser a mais encontradiça. No neurinoma do acústico, na maioria das observações, a surdês será total ou sub-total.
Sob o ponto de vista tonal liminar, a queda por via óssea se superpõe ou acompanha de perto (15 db. no máximo) a queda por via aérea. Dadas as possibilidades fornecidas pelos audiometros, por via óssea, a curva óssea poderá estar amputada. O Weber audiométrico se lateraliza, na maioria dos casos, para a orelha sã ou menos lesada.
O índice 0 de Sullivan, que representa a diferença entre a condução óssea absoluta (dedo sôbre o tragus que oblitera e meato) e a condução óssea relativa em 256, 512 e 1024, tem importância nas surdêses de transmissão, e perde interêsse nas surdêses de percepção, (índice normal ou seja maior que 20, ou por vêzes diminuído, sem que isto tenha significação especial). Nas surdêses de transmissão, esta prova ganha interêsse e os valores podem ir de 0 a 20.
Na audiometria tonal supraliminar, distorsões podem ser ou não observadas dentro do campo auditivo.
Na audiometria vocal, a curva de inteligibilidade pode assumir formas diferentes (paralela à normal, inclinada, em plataforma, em sino). Convém repetir que em virtude de inúmeros fatores que entram em jôgo aqui (distorsões sobretudo), o aspecto da curva vocal é imprevisível, a rigor, pela simples leitura do audiogrâma tonal liminar. A discriminação pode estar ou não comprometida.
Estas surdêses podem ser devidas a lesões intra-labirínticas (por alteração dos líquidos labirínticos e cocleares), radiculares (retro-labirínticas tronculares), ou centrais.
A surdês coclear pode depender de inúmeras causas (traumática, infecciosa, tóxica, vascular, por alteração da tensão dos líquidos labirínticos, reflexa, congênita, ou senil). Nestas surdêses, distorsões costumam estar presentes. Uma surdês de transmissão da orelha interna, por alteração dos líquidos labirínticos existe, mas é extremamente rara, pois logo há comprometimento secundário das células ciliadas. No início, estas surdêses não apresentariam distorsões.
A surdês radicular se exibe como formas puras (nevrites infecciosas ou tóxicas, traumatismos) ou como lesão que ocupa espaço (tumores, aracnoidites). O recrutamento costuma estar ausente; já foi, porém, verificado em neurinoma do acústico; o que se explicaria por acometimento secundário do órgão de Corti pela compressão vascular. Nas, nevrites, o recrutamento pode ser observado em decorrência de comprometimento secundário ou concomitante do órgão de Corti.
A surdês central é devida a causas diversas (vascular, tumoral, degenerativa, infecciosa). As duas primeiras (vascular e tumoral) parecem predominar entre as surdêses centrais. São geralmente bilaterais em virtude -do entrecruzamento das vias auditivas.
Tôdas as formas de curva tonal liminar das hipoacusias de percepção podem aqui ser observadas, embora a curva em declive dos graves para os agudos se nos afigure a mais freqüente. O recrutamento está, classicamente, ausente.
A hipoacusia das lesões bulbares é rara. Ela ocorre, sobretudo, nas lesões bulbo-protuberanciais, protuberanciais e pedunculares (20 a 25% dos casos segundo Aubry e Pialoux). Nas surdêses temporais, testes vocais especiais (Bocca) revelam distúrbios da integração.
Nêste capítulo da surdês de percepção, podemos rememorar alguns dados de experiência pessoal.
Na doença de Ménière, registramos
1 - Audiometria tonal liminar: 65,790 (48/73 casos) de curvas horizontais e 31,5% (23/73 casos) com queda uniforme dos graves para os agudos, ou brusca nas freqüências agudas. A percentagem restante era devida a curvas ratas. O recrutamento foi dado pràticamente constante.
A audiometria vocal (exames com listas de Fournier, com espôndeas, em francês), mostrou que a curva mais deitada que a normal foi a mais frequentemente observada (55,5% de 63 casos), seguida pela curva paralela à normal (35,3%), pela plataforma (7,950) e em sino (1,5%).
No tocante ao neurinoma do acústico, a surdês total ou subtotal apareceu em 19 de 22 casos. Aqui é interessante relembrarmos o problema das curvas fantasmas. A diferença de 50 a 60 db. por via aérea, de um para o outro lado, e, ipso-facto, se há surdês total ou sub-total unilateral, pode determinar o aparecimento de curva fantasma dêste lado, se não usarmos mascaramento conveniente, ao examinarmos a via aérea, como fazemos por via óssea.
II - Normas gerais de indicação da prótese auditiva
É sabido que alta porcentagem de surdos pode se beneficiar com a prótese auditiva. (97% dos surdos para Watson e Tolan, 90% para Bocca, 84% para Tato).
Por outro lado é certamente pequeno, em relação aos surdos passíveis de serem aparelhados com real interêsse, o número daquêles que desfrutam das vantagens advindas da adaptação protética. Segundo Tato, 1,5% a 5% da população geral apresenta hipoacusia em que caberia o aparelhamento. Diversos fatores entram em jôgo e não pretendemos discuti-los. Queremos simplesmente esboçar os princípios gerais da indicação da prótese no adulto.
Indica-se a prótese nas surdéses crônicas bilaterais não evolutivas. O campo de indicação se restringe, pois, às surdêses que não são corrigidas por meio clínico ou cirúrgico, ou onde, nêste último caso, a eventualidade da correção cirúrgica não seja aceita pelo paciente, que prefere a prótese.
As contra-indicações são as seguintes, (Fournier):
1 - Não aparelhar hipoacusias com menos de 30 db. de queda nas freqüências da conversação.
2 - As surdêses de percepção em declive rápido para os agudos, com conservação quase normal dos graves. A amplificação dos graves aqui costuma mascarar os agudos.
3 - Surdêses totais ou sub-totais.
Convém termos presente, porém, que certas surdêses acentuadas, mesmo ultrapassando o limite clássico dos 90 db. em audiometria vocal, podem obter resultado inesperado com a prótese e convém tentar.
Qual o lado que deve ser aparelhado?
1 - Se a hipoacusia é menor que 50 db. dos dois lados, aparelha-se o ouvido pior.
2 - Se a hipoacusia é maior que 50 db. dos dois lados, aparelha-se o ouvido melhor.
Tais princípios são válidos se a curva tonal é horizontal e se não há recrutamento. Nos outros casos, o lado a ser aparelhado depende de estudo particular que deveria ser efetuado pela audiometria vocal em campo livre.
Qual avia?
A via aérea será a preferida. A via óssea deve ser evitada (voz metálica, ganho até 2.500 apenas) e será utilizada apenas, em casos especiais (imperfuração dos meatos, eczema do meato acústico externo, supuração da orelha, intolerância do tegumento pelo molde), e diante de surdês de transmissão.
As surdêses de transmissão são de excelente prognóstico protético. Basta, é óbvio, que amplificação vença o aumento da impedâcia, nêstes casos, para que alcance o órgão nobre, que funciona normalmente. São aqui empregados os aparelhos de amplificação tear.
Com as hipoacusias de percepção o problema é mais difícil. m comprometimento de percepção acarreta sempre um risco de dificuldades para adaptação protética, diz M. Portmann. Nas surdêses mixtas é o componente de percepção que interfere, alterando, n maior ou menor gráu, segundo o caso, o resultado que a prótese À oferecer. Sabemos que nas surdêses com comprometimento do aparelho de percepção, a curva vocal assume aspectos variáveis na dependência de diversos fatores, em particular em conseqüência do desequilíbrio das freqüências, apontado pela audiometria tonal, e em virtude da presença das distorsões.
O aparelho para surdês, nesta orelha, determina, com a amplificação que acarreta uma contingência nova de prognóstico difícil, senão impossível, através da simples audiometria tonal. A audiometria vocal em campo livre possibilita, na verdade, averiguar-se o real valor da prótese adaptada; é princípio aceito que é melhor que se possa por em concorrência aparelhos de diferentes modelos e de vários fabricantes. Fugir-se-ia, assim, do empirismo ou do semi-empirismo nesta questão. Estudos que têm vindo a lume têm mostrado, por exemplo, que as próteses sob forma de óculos ou de camarão dão, como regra geral, pior resultado, sob o ponto de vista acústico, que os aparelhos chamados convencionais.
Para não fugirmos do aspecto prático, achamos útil dar o esquema de Dehaussy na indicação protética das surdêses de percepção.
Caso 1 - A, - Curva tonal: horizontal ou com queda ao nível das freqüências graves.
B - Ausência de recrutamento.
C - Curva vocal: paralela à normal.
- Correção protética : linear.
- Resultado: em geral bom.
Caso 2 - A - Curva tonal: mesma forma que no caso anterior.
B - Recrutamento.
C - Curva vocal: inclinada, em plataforma ou em sino.
- Correção protética: comprimida.
Comprimir a amplificação significa ter uma intensidade de saída proporcionalmente reduzida à medida que a intensidade do som de entrada aumenta. Na amplificação linear a intensidade de saída está em relação direta com a intensidade do som de entrada.
Caso 3 - A - Curva tonal: queda progressiva dos graves para os agudos na zona das freqüências da conversação.
B - Ausência do recrutamento.
C - Curva vocal: inclinada ou em plataforma.
- Correção protética: linear ou comprimida, e com resposta favorecendo os agudos.
- Resultado protético: variável.
Caso 4 - A - Curva tonal: mesma forma que no caso anterior.
B - Recrutamento.
C - Curva vocal: mais ou menos paralela à normal.
- Correção protética : 1) se o declive de curva é discreto: linear; 2) se o declive é regular: comprimida; 3) se a queda é brusca nos agudos: linear ou comprimida (decidida em audiometria vocal em campo livre).
- Resultado protético: variável.
Nas surdêses de percepção com queda sôbre os agudos, M. Portmann obteve melhores resultados, no conjunto, que nas surdêses de percepção de forma horizontal. Bocca chamou a atenção para o fato de que o recrutamento pode, nestas surdêses com desequilíbrio das frequências, ter efeito bemfazejo, por corrigir, dentro do campo auditivo, o desnível que se observa no traçado tonal liminar.
É oportuno que se frize o valor da leitura labial nas surdêses de percepção. A prótese mais leitura labial, em muitos dêstes casos, determina considerável reabilitação do surdo. A audiometria vocal em campo livre, sem e com leitura labial, patenteia o resultado, por vêzes notável, que a associação prótese mais leitura labial obtém. Aquilata-se assim o real benefício que o paciente poderá alcançar na prática.
A escolha da prótese deve depender:
1 - do ganho Isto é, da diferença dos limiares de inteligibilidade, no eixo de 50% das respostas corretas, entre a orelha nua e com a prótese;
2 - da discriminação. É dada pela porcentagem máxima de palavras compreendidas 30 db. acima da curva de inteligibilidade liminar;
3 - da elasticidade, que representa o limite configurado pelos limiares mínimo e máximo da audição com o aparelho. Sabe-se que nas surdêses com recrutamento o campo auditivo pode estar pinçado.
Além destas três provas fundamentais, outros elementos a serem computados, mas já em outro plano, seriam:
1 - a qualidade da audição que um determinado aparelho oferece ao paciente;
2 - a eficácia em presença do ruído.
Por outro lado devem ser ajuizados fatores de ordem pessoal, com a inteligência, nível intelectual, idade é fôrça de vontade para a readaptação necessária.
Como corolário destas considerações, diremos que seria desejável que, em nosso meio, a adaptação protética se fizesse através de centros audiológicos, públicos ou párticulares, com pessoal habilitado, para que a escolha da prótese, feita a contento, não só evitasse as indicações inexatas, com resultado nulo, como permitisse a seleção da prótese que melhor coubesse em cada caso.
BIBLIOGRAFIA
1 - Aubry, M., Pialoux, P. - Maladies de l'oreille interne et otoneurologie. Masson & Cie., Paris, 1957. 2 - Bocca, E. - La prothèsc auditive. In la surdité. Sa mesure et sa cor - rection. Lib. Maloine, Paris, 1952. 3 - Chavasse, P., Portmann, M., Lehmann, R., Portmann, C. - A.propos de la normalization des appareils de correction auditive. Rev. de laryng. Nos. 5 e 6: 476-493, 1954. 4 - Decroix, G., Leroy, L., Dehaussy, J. - Appareillage conventionnel ou prothèse "xear level"? Journ. Franç. doto-rhin-laryng. XI: 341-345, 1962. 5 - Dehaussy, J, - Technique et pratique de la correction prothétique des surdités. Massorí & Cie., Paris, 1959. 6 - Fournier, J. E. - Audiométrie vocale. Lib. Maloine, Paris, 1951. 7 - Fournier, J. E. - La correction prothétique des surdités. In Année oto-rhino-laryng. Masson & Cie., Paris, 1957. 8 - Portmann, M., Portmann, C. - Précis d'audiometrie clinique. Masson & Cie., Paris, 1959. 9 - Portmann, M., Portmann, C., Niclausse, R. - La prothèse electro- acoustique chez l'adulte. Rev. de laryng. N°s. 1 e 2:68-97, 1953. 10 - Rebattu, J. P. - La prothèse auditive. Journ. Med.. de Lyon. 955: 973-982, 1959. 11 - Tato, J. M. - Protesis auditivas, amplificadoras, electroacústicas. Oto-laring. 2: 182-213, 1951. 12 - Watson, L. A., Tolan, T. -- Hearing tests and hearing instruments. Williams & Wilkins C°., Baltimore, 1949.
(*) Simpósio sôbre "Surdês" - X.° Congres. Reg. da A.P.M. - (Lins Junho, 1962). (**) Assist. da Clín. O.R.L. da Escola Paul. de Medic. (Sem Prof. M. Albernaz).
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