CONSIDERAÇÕES GERAIS
A palavra é um complexo movimento voluntário, altamente diferenciado, cujo desenvolvimento depende do aprendizado do emprêgo dos músculos que intervém nesse mecanismo, e da imitação, durante os primeiros anos de vida.
Durante os primeiros 18 mêses a criança armazena conhecimentos para então emitir sons com significado simbólico, isto é, palavras e frases referentes a uma idéia, o que conseguirá no fim de 24 meses, em média. Consideram-se 3 fases iniciais no desenvolvimento da palavra falada: a) fase reflexa, independente da audição, que se caracteriza pelo treino dos órgãos fono-articulatórios e se prolonga até o nono mês de vida; b) fase imitativa-ecolálica, do 9.° ao 18.° mês, quando se iniciam as imitações na base dos sons e sílabas que a criança já está emitindo - para isto a criança deve ouvir; c) fase de correção dos defeitos de pronúncia (dislalias), entrando em jôgo substantivos, verbos e adjetivos, chefiando a construir frases; estende-se até os 36 mêses e lògicamente é necessária a audição.
Quando a criança nasce surda, a falta da audição não causara nenhum deficit ao seu trabalho intelectual, isto é, ela tem a mesma capacidade que uma criança normal: está atenta e alerta ao que se passa ao seu redor.
A deficiência auditiva irá se manifestar finando a criança procurar se comunicar com os demais e não conseguir aprender a falar por não ouvir. Considera-se que uma criança normal esteja falando aos 3 anos de idade, o que aperfeiçoa aos 4 anos e fixa aos 7 anos de idade. A criança que perder a audição antes dos 7 anos de idade, perderá sua linguagem verbal com muita facilidade, entre 6 e 12 mêses, porque não havia se dado a fixação da mesma. Ao contrário, se a hipoacusia ou surdês se instalar após os 7 anos, a criança não perderá o uso da palavra falada já aprendida.
Para orientar o trata-mento de uma criança com deficiência auditiva, é fundamental avaliar-se de início o gráu de sua hipoacusia, considerando-se os casos leves e médios que não ultrapassam 60 decibéis de perda, e os casos graves - sendo estes os casos das crianças ditas "surdas", em que á; perda auditiva ultrapassa 60 decibéis. É muito raro que uma criança não ouça nada; em geral há restos auditivos, nas freqüências graves. Os casos leves em geral passam desapercebidos e as crianças são consideradas "distraídas"; são crianças que têm certa dificuldade na escola e o exame ORL revela sua deficiência, em geral portadoras de adeno-amigdalites crônicas hipertróficas; na realidade falam mal por não estarem ouvindo bem.
ETIOLOGIA
Numerosas são as classificações propostas para enquadrar os diferentes fatores causais de uma hipoacusia infantil, compreendendo-se aqui crianças de zero a 11 anos, inclusive.
ARNVIG estudando casos de hipoacusias graves ou surdês, considera:
1) formas hereditárias, compreendendo a surdês esporádica, a neuro-labiríntica, o cretinismo endêmico, - 22, %;
2) formas adquiridas pré-reatais (congênitas), compreendendo sequelas de moléstias infecciosas, em especial a rubéola, no início da gestação e a incompatibilidade ao fator Rh, - 13 %;
3) formas adquiridas intra-Parto, como cianose neo-natal, trabalho de aparto prolongado, circular de cordão, manobras externas ou internas que tendam a corrigir uma apresentação distócica, a aplicação de forceps e a prematuridade, - 14 %;
4) formas adquiridas pós-reatais, como sequelas de meningites, de encefalites, traumas cefálicos, parotidite epidêmica, lues, intoxicações medicamentosas por quinino, pela dihidroestreptomicina, e atualmente em foco a kanamicina, antibiótico eficaz, porém altamente tóxico para o VIII.° par dos nervos craneanos, - 35%;
5) formas indeterminadas, - 21 %.
Cumpre-nos acrescentar as hipoacusias de causas Otorrinolaringológicas, como malformações ou agenesias dos órgãos tubárias por vetações adenóides, etc.
DIAGNÓSTICO:
O diagnóstico é clínico, principalmente.
Na anamnese interrogamos sôbre os diversos antecedentes que precedem a concepção: a consanguinidade dos pais, o estado de saúde dos mesmos, a situação do paciente entre os irmãos, a existência de problemas de audição ou de linguagem entre os familiares. Êste estudo nos capacita a aceitar a existência de fatores hereditários que pudessem determinar uma surdês.
Interrogamos sôbre a vida intra-uterina, pespuizando determinadas condições da mãe que pudessem afetar o produto concepcional, em especial a imaturidade, a eclâmpsia, o fator Rh, certas moléstias infecciosas, agudas ou crônicas, destacando-se a rubéola.
A seguir interrogamos sôbre as condições do parto, pois são muitos os acidentes que nessa fase são capazes de determinar uma alteração auditiva ou cortical.
Finalmente procuramos dados desde o nascimento até a fase em que a criança é levada ao especialista, pelo fato de não falar. Um retardo motor nos chama a atenção para problemas neurológicos ligados a uma surdês; assim, procuramos saber com que idade a criança firmou a cabeça, sentou-se, começou a andar, etc. Interessa-nos conhecer seu passado mórbido.
Interrogamos sôbre seu comportamento, sua conduta, importantes como veremos para o diagnóstico diferencial.
O exame objetivo O. R. L. em geral não nos fornece muitos elementos: as grandes perfurações das membranas timpânicas, as amigdalites crônicas hipertróficas, as vegetações adenóides ou a diminuição da permeabilidade tubária são os principais dados.
Para o exame funcional, fazemos de início uma avaliação da audição pesquizando os reflexos cócleo-palpebral e céfalo-giro, isto é, ao ouvir determinado estímulo sonoro, a criança fecha os olhos e procura localizar a fonte. Acima de 6 mêses, até 3 anos de idade, fazemos uso de fontes sonoras conhecidas pela criança, como campainhas, colher batendo numa chícara, brinquedos sonoros como chocalhos, etc. Quando a criança é maior, usamos instrumentos de sopro, percussão, etc. Para crianças com mais de 7 anos de idade, realizamos audiometria tonal ou vocal, como para os adultos, desde que seu desenvolvimento intelectual seja próprio da idade.
Para crianças de idades intermediárias, isto é, dos 3 aos 7 anos, exclusive, procuramos realizar sessões para que a criança, ficando a vontade no ambiente de exame, brincando com objetos de seu agrado, estando presente sua mãe para que se sinta mais segura, sendo atendida por pessôa que a compreenda e a trate com paciência, acabe aceitando o par de fones para audiometria tonal, ou seja condicionada para a audiometria psico-galvânica. Neste último tipo de audiometria, procuramos condicionar um reflexo a um estímulo sonoro, utilisando um estímulo elétrico (choque fraco) concomitante, sendo a resposta traduzida por variação de potências elétricos cutâneos, variação essa captada por eletrodos e inscrita em um gráfico. Quando já condicionado êsse reflexo, emitimos apenas o estímulo sonoro que, se percebido, desencadeará a citada variação de potenciais, independentemente do estímulo elétrico. Outro recurso seria o chamado "peep-show" também baseado em um reflexo condicionado: sinal sonoro + sinal luminoso, ou seja, imagem familiar e agradável à criança que se projete em uma tela. Este último método não é empregado ainda no Serviço em que trabalhamos, e também não fornece resultados nos casos de hipoacusia grave ou surdês.
O interêsse do exame funcional reside na necessidade de um diagnóstico precoce, na avaliação do gráu da hipoacusia, no conhecimento dos resíduos auditivos tendo em vista um eventual tratamento de reabilitação acústica.
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Para o diagnóstico diferencial, aspecto mais importante e que fornecerá a orientação adequada à criança que não fala, necessita o otorrinolaringologista de dados de neuro-pediatria, de psiquiatria infantil e de psicologia.
Uma criança que não fala pode ter:
a) um distúrbio sensorial (não ouve);
b) uma perturbação neurológica (não percebe, não compreende, não pode articular a palavra);
c) uma perturbação psíquica (desligada do ambiente, ou sem necessidade de se expressar);
d) uma deficiência intelectual (não tem certa inteligência).
Para que haja integração da linguagem não basta audição sensorial aceitável; é necessário que as sensações auditivas se façam conscientes (percepção) e que grandes zonas da cortex cerebral entrem em ação, associando a mensagem com experiências anteriores (compreensão).
Uma criança com distúrbios neurológicos pode não falar:
1) por ser portadora de afasia sensorial infantil ou surdês verbal infantil, em que esses fenômenos não ocorrem ou ocorrem com dificuldades;
2) por ser impercepliva ou ter agnosia auditiva, isto é, não ter consciência do som. Na prática, esses casos são raros (lesões bi-temporais);
3) por ter afasia motora ou de expressão, modernamente chamada de audimudêz.
Uma criança com perturbações psíquicas pode não falar:
1) por ter uma super-proteção, isto é, por não ter necessidade de falar para conseguir o que deseja, pois tudo lhe é oferecido pelos pais, ao mais ligeiro chôro.
2) por ter infra-proteção, por ter mêdo de se expressar e ser castigada;
3) por estar desligada do meio ambiente, como ocorre na esquizofrenia infantil; a criança não manifesta interêsse pelo meio e vive seu próprio mundo imaginário.
Finalmente, uma criança com deficiência intelectual não fala, ou fala mal, com dislalias ou disartrias em maior ou menor quantidade, dependendo da maior ou menor deficiência intelectual, isto é, de seu Quociente Intelectual, abreviadamente Q. I.
Lógicamente encontraremos casos em que podem estar associados esses fatores, e que serão os casos de mais difícil reabilitação.
O diagnóstico diferencial se baseia fundamentalmente em 3 itens: a) conduta; b) meios de comunicação; c) audição.
Geralmente todas essas crianças têm problemas de conduta.
O surdo é em geral super-protegido, comportando-se diferentemente na presença ou ausência dos pais; ao caminhar, costuma arrastar os pés, principalmente quando há lesão labiríntica associada; seu exame psicométrico é normal; é rico em gestos, procura entender e se faz entender pelos demais; brinca normalmente com as crianças de sua idade; desenvolve leitura com facilidade. Conseguimos fàcilmente seu condicionamento para testes audiométricos e suas respostas são seguras e constantes.
Considerando os itens acima é que poderemos fazer o diagnóstico diferencial.
ORIENTAÇAO TERAPÉUTICA:
Os casos de hipoacusia leve e média não oferecem maiores dificuldades, pois em uma conversação normal empregamos cêrca de 50 db. Para os casos de hipoacusia grave ou surdês, que mais nos interessam, a conduta é reabilitação especializada em que se procura fazer a criança ouvir por meio de tubo acústico ou amplificador, desenvolvendo sua leitura labial, evitando-se que ela se expresse por gestos. O aparelho auxiliar para surdos, sómente é indicado quando houver restos auditivos em 3 frequências vizinhas, na audiometria; seu emprêgo não satisfaz quando há apenas ilhas auditivas.
A preocupação atual é evitar-se que tôda criança que não fale seja considerada surdo-muda e enviada à escola para surdo-mudos, onde poderíamos agravar o problema de um afásico, de um oligofrênico, de um esquizofrênico, etc.
À título de ilustração do que expusemos, podemos acrescentar que na Clínica O. R. L. do Hospital das Clínicas, de janeiro de 1962 até esta data, foram atendidas 76 crianças que não falavam. Das 76, 43 eram realmente surdas; 20 apresentavam problemas neurológicos; 18 com problemas psíquicos; 6 com deficiência intelectual. Em 61 casos o diagnóstico foi simples, isto é, estava presente um dos fatores; em 15 casos havia 2 ou 3 fatores associados.
RESUMO:
O A. faz inicialmente considerações sôbre o desenvolvimento da palavra falada na criança, mostrando as possíveis consequências de um hipoacusia que se instale nas diferentes fases.
São considerados os diversos fatores etiológicos, os dados do exame clínico e antecedentes para o diagnóstico de hipoacusias e principalmente para o diagnóstico diferencial com afecções neurológicas, psíquicas e intelectuais.
A seguir faz considerações sôbre a orientação terapêutica, de acôrdo com os diferentes gráus de hipoacusia. É apresentada a experiência da Secção de Fonoaudiologia da Clínica O. R. L. da F. M. U. S. P., em que num total de 76 crianças examinadas: 43 eram surdos, 20 tinham problemas neurológicos, 18 com problemas psíquicos e 6 com deficiência intelectual.
SUMMARY
The autor makes different considerations about the developing of the spoken word in children, showing the possible consequences of a hipoacusy that makes its appearance in the different phases.
The different etiologic factors are considered as well as the data of the clinical examination and the antecedents for the diagnosis of the hipoacusy and principally for the differential diagnosis with neurological, psychological and intelectual diseases.
Finally the autor makes considerations about the therapy related with the different degrees of hipoacusy.
BIBLIOGRAFIA
1 - El Niño que no Habla - Prof. Dr. Julio Bernaldo de Quirós Revista Fono Audiologica - Tomo VII - N.° 3 - 1.961. 2 - Educacion del Niño Sordo - Srta. Obdulia D. Garcia - Clínica y Cirugia Otológica de A. Hernandez. 3 - La Historia Clínica de los Problemas de Audicion en la Infancia - Dr. P. Berruecos Tellez.
(*) Simpósio sobre "Surdez" - X.° Congr. Reg. da A.P.M - Lins ( 22-6-62). (**) Médico da Secção de Fonaudiologia da Clin. O.R.L. da F.M.U.S.P. (Serv. Prof. R. de Nova).
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