INTRODUÇÃOPapanicolaou, em 1943, idealizou o método do citodiagnóstico para prevenção do câncer do aparelho genital feminino, pesquisando as células descamadas da mucosa vaginal para determinar o efeito dos hormônios sexuais sobre este epitélio e permitindo com isto identificar células neoplásicas descamadas nestes esfregaços10.
O exame realizado neste trabalho foi a citologia esfoliativa, que se fundamenta na possibilidade de analisar as células que se descamam fisiologicamente da superfície epitelial, devido ao processo de renovação constante das células da camada basal8. Este método, simples e barato, quando realizado periodicamente, tem a capacidade de detectar lesões pré-neoplásicas, algumas infecções, e realizar controles em leucoplásicas extensas, não passíveis de remoção-permitindo a identificação de alterações microscópicas iniciais; e, desta forma, o rastreamento de pacientes de uma população de alto risco8.
Silverman, Bilimoria, Bhargava, Mani e Shah (1977)13 afirmaram que a precisão da citologia esfoliativa aumentava quando utilizada para a análise de lesões, como exame prévio à biópsia em populações adultas de alto risco. Pelo fato de o epitélio bucal renovar-se rapidamente (aproximadamente em duas semanas) e a maioria das células epiteliais conter núcleo, a raspagem superficial e direta pode ser um indicador fidedigno de alterações displásicas ou neoplásicas permitindo amostragem segura de uma lesão e ajudando no rastreamento completo. O reconhecimento precoce pelo rastreamento citológico pode acelerar o diagnóstico e tratamento, diminuindo assim a morbidade e mortalidade. A grande utilidade da citologia na detecção do câncer bucal é justificada pelo fato de que 95% de todas as neoplasias malignas são de origem epitelial; e numerosos trabalhos substanciam que o uso da citologia esfoliativa tem acelerado a indicação da biópsia de lesões que clinicamente não aparentavam ser malignas. Isto tem levado ao diagnóstico precoce de lesões orais que permaneceriam insuspeitas temporariamente, obtido através de biópsia incisional ou excisional.
Existem várias lesões que acometem os lábios, entre elas estão as causadas por irritações crônicas, como as leucoplasias, eritroplasias, queilites e carcinomas. Estas irritações podem ser por trauma mecânico, radiação solar e substâncias químicas do tabaco. Além disso, deve ser lembrado, entre outros motivos, que, em muitas situações, o câncer bucal é precedido de estados cancerizáveis da mucosa, estados estes que podem apresentar um bom número de casos com longo tempo de evolução, considerando que a saúde está vinculada ao meio ambiente e à ação do ser humano sobre o mesmo3.
Sabe-se que o vermelhão do lábio inferior resseca sob a ação das irritações solares, dos ventos e geadas, apresentando alterações hiperqueratóticas, onde freqüentemente se originam neoplasias malignas. Por esse motivo, as pessoas que trabalham expostas ao sol e intempéries (pescadores, marinheiros e agricultores, entre outros), principalmente quando possuidores de pele delgada e pouco pigmentada, constituem a maioria dos indivíduos afetados pela afecção14.
O primeiro fator de risco do câncer labial é o dano actínico; e, em muitos casos, as células escamosas de carcinoma de lábia desenvolvem-se em áreas onde já havia queilite actínico aguda ou crônica. A forma aguda manifesta-se com inflamação superficial e com a possibilidade de bolhas, enquanto que a crônica cursa com estrias verticais, perpendiculares à pele e o vermelhão, hiperqueratose, eritema e uma grossa saliência por baixo da pele do lábio. O câncer de lábio geralmente é ulcerado, apresentando um crescimento anormal, com bolhas e lesão exofitica e podendo crescer em área displásica num quadro de queilite. Alterações verrucosas, eritema, hiperqueratose e lesões que não cicatrizam são indicações de malignidade que devem ser examinadas cuidadosamente através de uma biópsia, pois a citologia e o azul de tiluidina não podem assegurar um diagnóstico de câncer labial1. A mucosa labial inferior é particularmente suscetível ao dano actínico, que parece ser a principal causa de câncer na região2.
O tabaco pode causar a injúria mecânica, determinada pelo atrito do cigarro ou cachimbo contra o epitélio-labial no ato de fumar, a térmica, pelo calor que é transmitido para o epitélio labial; e a química, pois no tabaco já foram encontrados mais de 4.720 substâncias químicas com poderes cancerígenos, como os hidrocarbonetos, nitrosaminas voláteis, o níquel, o arsênico e os ferlóis, entre outros3. Nestes casos, além da irritação química ocasionada pelos produtos de combustão do tabaco; e física, pelo calor-existe a irritação mecânica, também física, ocasionada pelo atrito crônico, principalmente porque o lábio está em constante movimento14.
O epitélio escamoso não queratinizado devido a várias circunstâncias, especialmente por influências de irritações crônicas, pode formar queratina.
As respostas da mucosa oral a agentes físicos, químicos ou biológicos variam muito na aparência clínica. Raspados destas lesões podem revelar células parabasais com núcleo aumentado e escasso citoplasma ao redor, podendo aparecer nucléolos múltiplos e proeminentes, aspectos cromatínicos anormais e células multinucleadas. Essas alterações demonstram células de aparência suspeita, displásicas, mostrando a importância da correlação clínica com os achados microscópicos para determinar uma conduta racional de prevenção e controle dos pacientes submetidos à ação destes agentes12.
Uma hipótese aceita nos dias de hoje é a de que mais de 80% das neoplasias malignas humanas estão relacionadas, direta ou indiretamente, com fatores extrínsecos ou ambientais, e que, na maioria, estas poderiam ser, portanto, prevenidas14.
A precocidade do diagnóstico tem favorecido o trata mento em grande parte dos portadores deste tipo de lesão6, 7. Além disso, o diagnóstico precoce dos tumores bucais não deveria apresentar grande dificuldade, já que o grupo de risco é bem caracterizado, e a região é de fácil acesso ao exame clínico. O ponto mais importante é ter em mente a possibilidade do diagnóstico, principalmente em indivíduos de alto risco.
Em virtude da exigüidade da literatura nacional existente sobre o assunto, é nossa intenção, através deste trabalho piloto, estudar as alterações do vermelhão do lábio inferior por citologia esfoliativa em indivíduos submetidos à ação das radiações solares e do fumo, comparando-os a pacientes não sujeitos a esta ação, definindo os grupos de risco que deverão ser vigiados para a prevenção e o diagnóstico precoce do câncer.
MATERIAL E MÉTODOForam analisadas, no Serviço de Citologia do Departamento de Anatomia Patológica da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, 322 lâminas com esfregaços de 161 pacientes (duas lâminas de cada paciente), sendo 100 homens e 61 mulheres, com idade média de 41,6 anos. Foram dispostos em quatro grupos, assim divididos:
Grupo I: formado por 54 pacientes controle ( 33,54%), não expostos à radiação solar (trabalho em ambiente fechado) e não tabagistas.
Grupo II: formado por 43 pacientes expostos à radiação solar (26,71%) e não fumantes, com uma média de 19 anos de tempo de exposição solar. Este grupo foi subdividido em dois subgrupos: o primeiro com 16 pacientes com exposição contínua (oito a dez horas diárias); e o segundo, com 27 pacientes com exposição intermitente (não sendo possível quantificar o tempo total de exposição à radiação solar).
Grupo III: formado por 36 pacientes tabagistas (22,71%), todos fumantes de cigarro com filtro de várias marcas comerciais, que tinham no mínimo dez anos de hábito e fumavam de 10 a 30 cigarros por dia).
Grupo IV: formado por 28 pacientes (17,39%), com o uso do tabaco combinado à exposição solar.
Para cada paciente, foi feito um questionário detalhado (Figura 1) com: nome, idade, sexo, etnia, profissão, hábitos de fumar (quantidade diária e tempo), exposição ao sol (horas diárias e quantidade de anos).
Dois esfregaços de cada paciente foram obtidos pelo método de citologia esfoliativa de semi-mucosas labiais, as quais, no momento de exame, apresentavam-se clinicamente normais.
Todas as lâminas foram analisadas em microscópia óptica, utilizando-se microscópio binocular, a bateria de Papanicolaou:
- Hematoxilina de Harris (coraleucócitos, núcleos e citoplasma basófilos);
Nome:______________________________________ Endereço:__________________________ n°_______ Bairro:_________________Cidade:_______________ Estado:_____CEP:__________Fone (__)___________ Sexo:_______Etnia:__________Idade:_________anos Profissão:____________________________________ ( ) Fumante ( ) Não fumante Fuma há quanto tempo?_________________________ Quantos cigarros por dia?________________________ ( ) Exposição ao sol ( ) Não exposição Quantas horas de exposição diária? ________________ ( ) Contínua ( ) Intermitente Há quanto tempo?______________________________
Figura 1. Questionário a ser preenchido por todos os pacientes. |
Figura 2. Células do epitélio pavimentoso estratificado do lábio inferior. 200xA.0. Coloração de Papanicolaou.
- Orange (cora células cornificadas, citoplasma acidófilos e hemácias);
- EA - eosina (cora elementos acidófilos) light green (cora elementos basófilos) e vesuvin (nuances de cor).
Realizou-se uma avaliação citológica qualitativa (observações de alterações celulares, como o aumento do tamanho do núcleo, nucléolos aumentados, hipercromatismo nuclear, multinucleação celular e ceratinização celular) e quantitativa (contagem de células de diferentes graus de maturação esfoliadas da mucosa bucal) (Figura 2). O teste estatístico utilizado foi o de Kruskal Wallis, para comparação dos grupos controle, exposição ao sol, fumante, exposição ao sol + fumo. Foi considerada significativa uma diferença para p < 0,05.
TABELA 1 - Médias das células encontradas.
o Teste de kruskal Wallis, para comparação dos grupos: controle, exposição ao sol, fumante, exposição ao sol + fumo.
RESULTADOSA partir das médias obtidas, encontramos aumento da camada de queratina (células córneas) nos casos expostos ao sol e o fumo, sendo que no grupo de fumantes combinados e com exposição solar, a incidência foi bem mais alta. Obtivemos 27,53% delas em relação ao grupo controle (22,20%) (Tabela 1). A Tabela 1 mostra também que no grupo dos fumantes (grupo 3) encontramos (57,69%) de células intermediárias contra (56,35%) nó grupo controle. O percentual de células binucleadas (1,04%) nos fumantes também foi superior ao do grupo controle (0,84%), não sendo encontradas, diferenças com significância estatística.
DISCUSSÃOA mucosa do vermelhão do lábio chama-se semi-mucosa, pois é intermediária entre a mucosa bucal não queratinizada e a pele, possuindo uma pequena camada de queratina, como foi visto nos resultados do grupo de pacientes controle.
Já nos grupos com irritações crônicas causadas pelo fumo e radiações solares, é maior a camada de queratina; determinando um aumento no número de células córneas e denotando alterações citológicas desta mucosa5, 13, 14.
O maior aumento destas células ocorreu nos pacientes expostos ao sol, combinado com o fumo (27,53% contra 22,20% do grupo controle), pois estes sofrem uma grande agressão ao epitélio, devido ao calor e ao traumatismo que lhe são transmitidos.
Em segundo lugar, vieram os pacientes expostos ao sol (24,48%); e, em terceiro lugar, os fumantes (23,97%).
No grupo de pacientes que são somente fumantes (grupo 3), notamos duas alterações significativas em relação aos outros grupos:
a) aumento da camada de células intermediárias (57,69% contra 56,35% do grupo controle), e
b) aumento de células binucleadas (1,04% contra 0,84% do controle).
Assim, deduzimos que a injúria mecânica, que o cigarro causa ao epitélio labial, faz com que esta camada de células aumente, denotando sofrimento tecidual com hipertrofia e hiperplasia da camada-intermediána (espinhosa)4, 9, com um pequeno número de células binucleadas, achados usuais nos raspados normais. As respostas da mucosa oral a agentes físicos, químicos ou biológicos variam muito na aparência clínica. Raspados destas lesões podem revelar células parabasais com núcleo aumentado e escasso citoplasma ao redor, surgindo, eventualmente, nucléolos múltiplos e proeminentes, aspectos cromatínicos anormais e células multinucleadas6.
Nossos achados de aumento de células binucleadas no grupo fumante (grupo 3), em relação aos demais, fazem supor que ele é devido às injúrias físicas (calor), químicas (produtos do cigarro) e mecânica (atrito) causadas pelo uso do tabaco.
Esta mesma reação não é encontrada nos grupos somente expostos ás radiações solares, no grupo de exposição ao sol e ao fumo, assim como no grupo controle. Podemos inferir daí que a reação da mucosa ao fumo é diferente da reação da mucosa à exposição solar, e difere também do grupo exposto ao sol e ao fumo. Afirmaríamos que os fumantes têm um aumento da binucleação celular, e os fumantes expostos à radiação solar têm aumento da camada córnea (hiperqueratose), sem aumento da binucleação. Talvez a hiperqueratose se instale previamente, protegendo em um primeiro momento as camadas mais profundas e evitando assim a ocorrência da binucleação.
Ambas as alterações são, ao nosso ver, demonstrações de reação tecidual por fatores irritativos, com alterações displásicas que poderiam predispor, caso persistam as injúrias, à evolução carcinomatosa. Suporíamos ainda que, existe um efeito sinérgico entre o fumo e às radiações solares na gênese das hiperqueratoses, que é sabido serem lesões cancerizáveis, chegando-se a afirmar que a alteração histológica mais comum no câncer do lábio é a hiperplasia epitelial, observada em 80% dos casos11.
Não encontramos alterações significativas à citologia esfoliativa nos casos de exposição ao sol isolada. Talvez isto se deva a que a maioria de nossa população é de indivíduos de pele escura, menos sensíveis ao fator irritativo solar que os oriundos do hemisfério norte, basicamente mais claros. Estas alterações ocorrem antes mesmo das lesões assumirem manifestações clínicas, daí sugerirmos uma maior investigação nestes grupos de pacientes, correlacionando os achados com eventuais lesões pré-neopláiscas e neoplásicas.
CONCLUSÕESEm síntese, podemos concluir que o uso do fumo associado às radiações solares causa alterações citológicas no epitélio da semi-mucosa labial, previamente à lesão clinicamente visível; que, persistindo o fator irritativo, estas alterações indicariam o surgimento de lesões pré neoplásicas e neoplásicas, podendo se considerar esta população como grupo de risco e que a citologia esfoliativa é um método simples e econômico, podendo ser usado como rotina nestas populações de risco, visando à prevenção primária do câncer do lábio inferior.
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14. TOMMASI, A. F.; GARRAFA, V. - Câncer Bucal. São Paulo: Medisa Editora Ltda., 1980.
* Mestre pelo Curso de Pós-Graduação em Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Hospital Heliópolis/ SP.
** Cirurgião do Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Hospital Heliópolis/ SP.
*** Chefe do Serviço de Semiologia Bucal do Instituto Arnaldo Vieira de Carvalho/ SP.
**** Patologista do Departamento de Anatomia Patológica da Faculdade de Ciências Médicas de São Paulo/ SP.
***** Coordenador do Curso de Pós-Graduação-Hospital Heliópolis/ SP.
Endereço para correspondência: Prof. Dr. Jozias de Andrade Sobrinho-Curso de Pós-Graduação em Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Heliópolis/ SP. Rua Cônego Xavier, 276 - 10- andar - 04231-020 São Paulo/ SP - Telefax: (0xx11) 273-9016 - E-mail: cpgcp.hosphel@ibm.net
Artigo recebido em 22 de maio de 2000. Artigo aceito em 13 de julho de 2000.