INTRODUÇÃO
A associação entre diabetes mellitus (DM) e perda acústica foi sugerida, pela primeira vez, em 1857 por Jordão'. Na prática clínica, no entanto, constitui um fato intrigante que muitos pacientes diabéticos apresentem disacusia e outros não apresentem. Em 1975, as estimativas de prevalência de hipoacusia na população diabética variavam de 9 a 47%. Essas discrepâncias têm conduzido muitos pesquisadores na intenção de elucidar a associação referida e suas causas. Nosso trabalho se propôs a revisar os diversos estudos realizados, na tentativa de uma melhor compreensão daquela associação e ele um entendimento de sua fisiopatologia.
REVISÃO DA LITERATURA
Diabetes e hípoacusia
Para avaliar a audição de pacientes diabéticos, Friedman e colaboradores6 compararam, através de audiometria, pacientes diabéticos com neuropatia periférica bem estabelecida versus controles. Os pacientes do estudo não tinham história prévia de doença auditiva ou perda da audição. Os resultados indicaram um limiar auditivo médio mais elevado nos pacientes diabéticos com neuropatia quando em comparação com o controle em todas as freqüências, sendo estatisticamente significativo em 6 delas (125, 750, 1.000, 1.500, 2.000, 3.000, 4.000, 6.000 e 8.000 cps). Dessa forma, o estudo demonstrou anormalidade auditiva subclínica neurossenssorial na maioria dos pacientes (55%) com neuropatia periférica. Os autores sugerem que á lesão poderia ocorrer em variados locais da via auditiva, tendendo por aceitar um defeito neural, mas sem rejeitar a possibilidade de lesão-coclear. O estudo indica ainda que a perda auditiva encontrada no diabetes não segue um padrão similar ao ela perda senil, em função da distribuição das frequências.
Mais tarde, em 1997, Di Leo e colaboradores3 realizaram um trabalho com o objetivo de investigar a via central e periférica em pacientes com diabetes mellitus tipo II (DMII), da cóclea ao córtex auditivo. Para tanto, realizaram testes de respostas auditivas por potencial evocado, com as seguintes modalidades: (ABRS) respostas auditivas cérebro-tronco; (MLRs) respostas de média latência; (LLRs) respostas de longa latência; e emissões otoacústicas evocadas (EOAE). Os métodos daquele estudo consistiram na elaboração de grupos controle versus diabéticos, ambos com audição normal. Os diabéticos foram divididos em dois grupos: com e sem neuropatia periférica, detectada por VCN (velocidade de condução nervosa) na ausência de sinais e sintomas.
Os resultados do estudo demonstraram que houve redução significativa na média de amplitudes das emissões otoacústicas evocadas nos pacientes diabéticos com neuropatia periférica, se comparada àqueles que não possuíam neuropatia periférica (P=0,02). Com estes resultados, os autores concluem que o receptor coclear é o principal afetado nos pacientes diabéticos tipo II, e que não há comprometimento das rotas auditivas centrais. Essa conclusão é sustentada por outros autores, que demonstram o espessamento da estria vascular e do ligamento espiral, a hemorragia endolinfática e perilinfática, a redução das fibras nervosas do ganglio espiral e, principalmente, uma redução das células ciliares externas. Dessa forma, todas estas alterações podem mudar a mecânica coclear e, conseqüentemente, as EOAEs.
Assim, considerando aqueles estudos, observamos a existência de disacusia em pacientes portadores de diabetes mellitus e a tentativa de localização clãs lesões em todas as vias auditivas.
Micro-angiopatia
O espessamento da membrana basal capilar (EMBC) concomitante a DM tem sido sugerido por vários estudos. Fischer e Gartner5, e ainda Rash11, demonstraram esse fenômeno, por eletromicroscopia, em ratos com IDDM induzida por estreptozotocina. O EMBC também foi notado por Jorgensen8 e Wyckman e Linthincum18, quando estudavam ossos temporais humanos, e observaram uni espessamento PAS+ da membrana. Em 1995, Smith e colaboradores13 demonstraram quantitativamente o EMBC no ouvido interno de ratos IDDM seguindo um modelo animal experimental bem desenvolvido. Sua metodologia envolveu levantamento da área ele secção transversal cios capilares por microscopia eletrônica, com análise por processamento de imagem. Seus achados sugerem que a microangiopatia pode ser considerada como sendo uma possível causa de hipoacusia em IDDM. Williamson e Kilo16, trabalhando com gêmeos, identificaram que a membrana basal é mais espessa em indivíduos diabéticos quando comparada à de não-diabéticos, e ainda é mais espessa nas regiões distais dos membros quando comparada a regiões proximais. Conforme os autores, essa diferença de localização pressupõe um fator ambiental, antes que genético, na patogênese cio espessamento da membrana, e foi sugerido que a pressão venosa aumentada poderia ser um fator agravante.
Fisiopatologia da micro-angiopatia
A membrana basal capilar tem como principal constituinte o colágeno tipo IV, embora outros componentes possam ser apontados, como proteoglicanas, laminina e fibronectina. Essa disposição se aplica particularmente à membrana basal glomerular, mas é razoável acreditar que os outros capilares do organismo estejam em conformidade com esse modelo. Sabe-se ainda que o colágeno desempenha funções estruturais na membrana basal e toma parte importante no processo de regeneração e cicatrização em resposta a um estímulo lesivo. Assim, pode-se considerar o EMBC como uma resposta proliferativa dos capilares à lesão. Fortalece essa hipótese o fato de também haver EMBC em outras doenças do tecido conjuntivo como a fibrose cística, doenças elo colágeno e envelhecimento. Vracko e Benditt15, já em 1970, haviam atribuído o EMBC a episódios repetidos de morte e regeneração celular.
Significado funcional do EMBC
O aumento cia glicosilação não-enzimática elo colágeno no diabetes mellitus (DM) foi encontrado por estudos prévios, tendo sido sugerido que o colágeno glicosilado poderia ser mais resistente à degradação. Similarmente com o que ocorre com o colágeno, é possível que outros componentes da membrana estejam também alterados, levando a mudanças na conformação, nas cargas elétricas e no comportamento bioquímico dessas estruturas com alterações na sua fisiologia ele trocas de macromoléculas endógenas circulantes como as peroxidases e ferritinas. Wyckman e Linthicum18 propõem ainda que a hipoacusia neurossenssorial em pacientes diabéticos resulta do envolvimento micro-angiopático elo saco endolinfático e/ou elos vasos da membrana basilar. Esses autores defendem que a reabsorção ela endolinfa e a liberação ele resíduos de alto peso molecular e também de debris celulares seriam afetados pelo reduzido fluxo sanguíneo longitudinal, resultando em toxicidade às células ciliares. Essa hipótese é confirmada por Brownlee1 em seu interessante trabalho sobre a patogênese das complicações diabéticas. Esse autor defende que as alterações microangiopáticas são os resultados da ação intra e extracelular dos produtos finais ela glicosilação avançada sobre os componentes da matriz celular, como o colágeno tipo IV e a fibronectina, e sobre a interação celular receptor-mediada, principalmente de macrófagos e monócitos. Essa ação ocorre mediada por receptores específicos na superfície celular e por alterações na responsividade celular a fatores de crescimento. Assim, o autor propõe a concomitância de alterações estruturais e funcionais nas células, nos tecidos e nos componentes ela matriz extracelular, como uma provável causa dos danos induzidos pela hiperglicemia, observados no diabetes mellitus. Williamson e Kilo17 observam que o EMBC resulta em duas alterações funcionais: a) a migração dos leucócitos está prejudicada pela resistência cio colágeno às proteases e pelo estreitamento das junções intercelulares; e, b) a resposta hemodinâmica local encontra-se diminuída pela excessiva rigidez da parede vascular.
Células ciliares externas
Nageris10, utilizando um modelo experimental de ratos diabéticos induzidos geneticamente (conforme modelo de Cohen2), não encontrou diferença significativa na contagem de células ciliares externas e internas. Por Outro lado, Raynor e colaboradores12, trabalhando com ratos geneticamente diabéticos em dieta com elevado teor de galactose, encontrou uma pequena, porém significaste, diferença na contagem de células ciliares externas, quando em comparaçàom com o controle. Triana e colaboradores12 estudaram ratos SHR/N-cp e LA/N-cp (descrito por Michaelis9 como únicos modelos genéticos adequados para a representação experimental elo DM II) com a finalidade de definiras relações existentes entre o DM e a perda auditiva. Seus achados demonstraram que, ao final de cinco fineses de experimento, houve uma perda estatisticamente significativa das células ciliares externas em todos os ratos diabéticos obesos, quando em comparação com os grupos controle, com qualquer dieta (amido ou sacarose). A maior parte das lesões estava localizada na porção média ela cóclea, e os ratos diabéticos obesos apresentaram uma perda maior das células ciliares externas, quando compartidos aos não-diabéticos obesos e aos ratos magros com predisposição genética à intolerância à glicose. Estes animais foram mantidos em ambiente controlado para não haver interferência de fatores externos (como ruídos excessivos e medicamentos) para uma adequada representação das condições fisiopatológicas. O autor ainda sugere que a perda pode ser devida à hiperglicemia, visto esta ser oito vezes maior que a dos controles. Duck4, em seu estudo de ratos geneticamente modificados, demonstrou que os animais que eram diabéticos e hipertensos tinham uma perda altamente significativa de células ciliares externas, quando comparados a animais diabéticos que não eram hipertensos, e a maior concentração dessa perda estava localizada na segunda e terceira porção da cóclea, demonstrando assim que a hipertensão pode ser um fator adicional da patogenia elo diabetes mellitus na indução da perda auditiva.
Gânglio espiral
De importância têm sido os achados de Duck4, de que ratos diabéticos em dieta de 6 meses com alto teor de galactose apresentam uma perda significativa ele células neuroganglionares elo gânglio espiral, se comparados a ratos diabéticos com dieta padrão. O autor sugere que o dano induzido pela dieta ele galactose pode ser resultado cia saturação da rota elas hexoses. Esse desequilíbrio levaria ao acúmulo de poliois no espaço intracelular, com dano à célula através ele efeitos osmóticos e de glicosilação, e ainda por uma diminuição da atividade da Na+/K+ ATPase com resultante neuropatia.
DISCUSSÃO
Na nossa opinião, os resultados dos trabalhos realizados até o momento permitem-nos defender a existência de disacusia em pacientes portadores de diabetes mellitus. Esse fato encontra importância absoluta no manejo de pacientes diabéticos, especialinente quando se considera que até hoje a disacusia não teta ocupado lugar como uma das complicações possíveis daquela doença. Por outro lado, se a existência da disacusia parece bem determinada, o mesmo não ocorre quanto à sua fisiopatologia. Neste aspecto os estudos têm alcançado conclusões que divergem muito, com variações que vão desde as lesões micro-angiopáticas até às lesões no gânglio espiral. Atualmente, trabalhos abordando alterações gênicas estão em andamento, mas até o momento não apresentam resultados conclusivos. Acreditamos na necessidade de realização de mais estudos que tenham como objetivo a elucidação dos mecanismos fisiopatológicos da disacusia em diabetes mellitus.
AGRADECIMENTOS
Nossos agradecimentos a todos os profissionais do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre pelo seu importante apoio e colaboração.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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* Professor Auxiliar cia Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ** Acadêmico do 5° Ano do Curso de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS ).
Trabalho vinculado ao Departamento de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Endereço para correspondência: Luiz Rene Peixoto Batista - Rua Santana, 455/14 - Bairro Santana - Porto Alegre/RS. Telefone: (0xx51) 582-1200 - E-mail: www.renel@uol.com.br Artigo recebido em 15 de junho de 1999. Artigo aceito em 2 de setembro de 1999.
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