INTRODUÇÃO
A otite média secretora é uma entidade clinica caracterizada por um processo inflamatório (agudo ou crônico) do revestimento conjuntivo epitelial da caixa timpânica e pela presença de secreção do tipo seroso ou mucoso no ouvido médio, estando a membrana timpânica íntegra. Geralmente este processo determina disacusia do tipo condutivo podendo, em alguns casos, ocorrer disacusia do tipo misto.
As vezes a otite secretora pode agravar uma disacusia de percepção pré-existente. Nestes casos o tratamento da otite secretora pode facilitar a reabilitação da surdez.
Estudos de microbiologia, citologia, patologia, bioquímica e imunoquímica sugerem que a otite média com efusão é mantida pela persistência de pequeno número de bactéria ou pela presença de suas toxinas no ouvido médio, provavelmente resultante de otite média prévia ou má função tubária1.
A manutenção da inflamação pode ocorrer pela resposta imunológica, causando danos nos tecidos pela ação dos mediadores provenientes das células inflamatórias, ou pela endotoxina, mesmo quando a bactéria não está mais presente. Sakakura2 estudando a atividade da endotoxina e da protease lissomal em otite média secretora, conclui que a endotoxina aumenta a infiltração de leucócitos na mucosa do ouvido médio, conseqüentemente prolongando a inflamação da mucosa e mantendo a otite média secretora.
Várias são as teorias que procuram justificar a ocorrência de disacusia neuro-sensorial na presença de otite média serosa. Paparella3 estudando pacientes cora otite média, associou a disacusia neurosensorial a alterações do ouvido interno, possivelmente mediadas via janela redonda.
Kawauchi1 estudou a permeabilidade da endotoxina da Salmonela na janela redonda de chinchilas. A presença da endotoxina foi detectada na perlinfa após 12 horas de sua introdução, e persistiu por 5 dias, causando alterações histopatológicas: hemorragias, processo inflamatório e degeneração de células sensoriais.
Outra teoria atribui a componente neuro-sensorial aos efeitos do aumento de tensão e inflexibilidade (rigidez) da membrana da janela redonda pela presença da secreção no ouvido médio.
A disacusia é geralmente reversível com a resolução da efusão. Entretanto, a persistência da otite média serosa pode levar a alterações irreversíveis do ouvido médio (otite adesiva, descontinuidade ossicular, timpanosclerose, granulorna de colesterol, retração atical e colesteatoma), secundárias a inflamação aguda ou crônica, levando a hipoacusia condutiva. Também pode favorecer a instalação de labirintite, que podem levar a disacusia neuro-sensorial e alterações vestibulares. Em todas essas situações, em vista do acometimento principalmente de crianças, teremos um prejuízo no processo de aprendizagem.
Grundfast e Bluestone acreditam na presença de fístula da janela redonda ou oval ou de ambas quando o quadro de otite média secretora se associa a disacusia neuro-sensorial.
O objetivo deste trabalho é estudar os pacientes portadores de otite média serosa, particularmente os que evoluíram com alterações do ouvido interno, e a resposta destas alterações ao tratamento.
CASUÍSTICA E MÉTODOS
Foram estudados 198 pacientes portadores de otite média secretora diagnosticados na Divisão de Clinica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, no período de 1989 a 1991, que necessitaram colocação de tubo de ventilação. A idade dos pacientes variou de 2 a 62 anos, com idade média de 12,89 anos. Oitenta e nove (44,5%) pacientes eram do sexo feminino e 109 (55,5%) do masculino.
Todos pacientes foram submetidos a avaliação otolaringológica, sendo investigada na anamnese a presença de sintomas otológicos, como hipoacusia, zumbido e vertigem, que pudessem sugerir alteração de ouvido interno. Foi realizada audiometria e impedanciometria, e nos pacientes em que não foi possível essa avaliação de forma adequada, ou quando persistiu dúvida diagnóstico, foram submetidos a avaliações audiométricas objetivas (BERA elou ECOG).
O diagnóstico de otite média secretora foi concluído quando o paciente apresentava otoscopia sugestiva, audiometria tonal com GAP acro-ósseo e curva impedanciométrica tipo B.
Todos os pacientes foram submetidos a tratamento clínico tradicional (anti-histamínicos, descongestionantes, antiinflamatórios, antibióticos e corticóides), e quando não apresentaram melhora satisfatória foi indicada a colocação de tubo de ventilação, associado ou não a adeno elou amigdalectomia. Todos os pacientes, no decorrer do tratamento, ou enquanto aguardavam cirurgia, foram interrogados quanto à piora da audição, zumbido ou vertigem, e submetidos a nova avaliação audiométrica caso se houvesse suspeita de alguma alteração. Após a conclusão do tratamento cirúrgico foram submetidos a nova avaliação otoscópica e audiométrica (com o mesmo equipamento anterior).
Foi considerada a existência de componente neuro-sensorial quando houve queda da curva óssea no decorrer da evolução da OMS, sendo, nesses casos, indicada a colocação imediata de tubo de ventilação; ou quando houve elevação da curva óssea após a cirurgia.
RESULTADOS
Dos 198 casos estudados, 100% apresentavam disacusia condutiva, e somente 6 pacientes (3,03%) apresentavam um componente neuro-sensorial concomitante. Neste grupo a idade variou de 3 a 18 anos, cora idade média de 10,03 anos, enquanto no grupo geral foi de 12,89 anos. Quatro pacientes (66,6%) eram do sexo masculino e 2 (33,4%) do sexo feminino. Todos os 6 pacientes apresentaram comprometimento neuro-sensorial somente em um dos ouvidos.
No grupo geral, 100% dos casos apresentavam hipoacusia, referida pelo paciente ou familiares. O mesmo foi encontrado no segundo grupo, não havendo queixa de piora da hipoacusia com a instalação da componente neuro-sensorial. Um paciente apresentou desequilíbrio, desvio de marcha, náuseas e vômitos concomitante à queda da curva óssea.
Dos 6 casos, 5 foram submetidos à colocação de TV bilateral (Shepard) com adenoidectomia e 1 caso à colocação de TV demora (em T) bilateral, pois já havia sido submetido a adenoamigdalectomia com colocação de TV bilateral (Shepard) há 1 ano sem melhora.
Todos os pacientes apresentaram melhora da surdez condutiva, com fechamento do GAP aéreo-ósseo após a cirurgia. Quatro casos (66,6%) também apresentaram melhora da curva óssea, enquanto 2 casos (33,3%) não recuperaram a perda sensorial desenvolvida na vigência da OMS.
DISCUSSÃO
A surdez neuro-sensorial foi encontrada em 3,03% dos pacientes estudados, havendo coincidência da faixa etária acometida em relação ao grupo geral (idade média de 10,03 e 12,89 anos respectivamente).
A queixa mais comum, tanto para surdez condutiva como neuro-sensorial é a hipoacusia, sendo que alterações de equilíbrio e vertigem, embora raros, denotam acometimento do ouvido interno. Não houve queixa de piora da audição durante a instalação da componente sensorial, provavelmente por ter acometido somente um ouvido.
O diagnóstico é feito com a realização de audiometria convencional, que pode revelar dados importantes quando realizadas em crianças com idade acima de dois anos. Entretanto, as crianças com idade inferior a dois anos necessitam, na sua maioria, a avaliação da audição pelos métodos objetivos (BERA, ECOG). Chambers5 estudou as respostas ao BERA de crianças com OMS, e concluiu que apresentavam aumento das latências das ondas III e V, sem ter notado aumento significativo da onda 1. Em nossa experiência, nos casos de otite média secretora com diacusia condutiva pura, verificamos ao BERA um aumento da latência de todas as ondas.
Os métodos audiométricos empregados mostraram que o acometimento neuro-sensorial se reverteu em 66,6% dos casos após o tratamento, sugerindo que as alterações do ouvido interno eram resultantes da alteração do ouvido médio, pela presença de exudato e pressão negativa. Entretanto, 33,3% dos casos não recuperaram os limiares ósseos, sugerindo que as alterações do ouvido interno teriam atingido um grau de irreversibilidade.
Segundo Paparella3, esses danos irreparáveis podem ocorrer pela difusão e propagação da infecção pela membrana da janela redonda para o ouvido interno. Essa labirintite é uma das mais freqüentes complicações das otites médias secretoras podendo ocorrer acometimento do aparelho coclear, vestibular ou ambos. As portas de entrada usuais são:
1 - Janela redonda ou oval, sendo mais freqüente a janela redonda.
2 - Focos adjacentes como o antro da mastóide, osso petroso e meninges, podendo também provir de quadro de bacteremia.
Schuknecht6 classifica a labirintite em 4 tipos:
1 - Labirintite aguda senosa (tóxica). pela ação da toxina bacteriana (sem bactérias).
2 - Labirintite aguda supurativa (purulenta): a bactéria atinge a cápsula ótica.
3 - Labirintite crônica: secundária à presença de tecidos alterados, como colesteatoma, granulações ou fibrose.
4 - Labirintite esclerosante: quando ocorre substituição das estruturas labirínticas normais por tecido fibroso ou ósseo.
A OMS pode predispor o aparecimento dos dois primeiros tipos de labirintite, mais freqüentemente a labirintite aguda supurativa.
As toxinas bacterianas provenientes das secreções do ouvido médio podem entrar no ouvido interno pela janela redonda intacta, com defeito congênito ou adquirido. A cóclea é mais freqüente e severamente acometida que o sistema vestibular3.
Mogi7, estudando a influência das secreções do ouvido médio de chinchilas, conclui que as concentrações de IgG e prostaglandinas E2 eram significativamente maiores na perlinfa durante o período que se induzia a otite média secretora. Estes achados indicam que estes efeitos na perilinfa são transitórios e reversíveis.
Os pacientes que desenvolveram complicações de ouvido interno, apresentaram como principais sinais disacusia neuro-sensorial, vertigem, ou ambos.
Quando existe o desenvolvimento de complicações à nível de ouvido interno, está indicado a colocação imediata de tubo de ventilação, eliminando o processo causador. A rápida resolução do processo no ouvido médio, favorece a reversibilidade dessas alterações.
Toda criança com disacusia neuro-sensorial com ou sem vertigem que apresente otite média recorrente ou otite média secretora deve ser investigada no sentido de possível existência de labirintite serosa, secundária à fístula perilinfática. Esta associação é freqüente e a falha na sua identificação pode resultar em perdas auditivas severas e irreversíveis.
CONCLUSÕES
1 - Estar atento a disacusia condutiva própria da otite média secretora que pode as vezes mascarar clinicamente a disacusia neuro-sensorial.
2 - Estar atento à sinais ou sintomas de possíveis complicações da otite média secretora.
3 - Tratamento cirúrgico imediato da OMS está indicado quando o paciente desenvolve acometimento do ouvido interno.
4 - Na maioria dos pacientes o acometimento labiríntico reverteu com a resolução da OMS.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. KAWAUCHI, H,; DE MARIA, T.F.; LIM, D.J.: Endotoxin Permeability through the Round Window. Acta Otolaryngol Suppl (Stockh), 457:100-15, 1989. 2. SAKAKURA, K.; HAMAGUCHI, Y.; HARADA, T.; YAMAGIWA, M.; SAKAKURA, W.: Endotoxin and Lysosomal Protease Activity in Acute and Chronic Otits Media with effusion. Ann Otol Rhinol Laryngol, 99:379-85, 1990. 3. PAPARELLA, MM.; ODA, M.; HIRAIDE, F.; BRADY, D.: Pathology of Sensorineural Hearing Loss in Otitis Media. Ann Otol Rhinol Laryngol, 81: 632-47, 1972. 4. GRUNDFAST, K.M.; BLUESTONE, C.D.: Sudden or Fluctuating Hearing Loss and Vertigo in Children Due to Perilymph Fistula. Ann Otol Rhinol Laryngol, 87: 761-71, 1978. 5. CHAMBERS, R.D.; ROWAN, L.E.; MATTHIES, M.L.; NOVAK, M.A.: Auditory Brain - Stem Responses in Children with Previous Otitis Media. Arch Otolaryngol head Neck Surg, 115: 425-7, 1989. 6. SCHUKNECHT, H.F.; WATANAUKI, K.; TAKAHASHI, T.; BELAL, A.A.; KIMURA, R.S.; JONES, D.D.; OTA, C. Y.: Atrophy of the Stria Vascularis, a Common Cause of Hearing Loss. Laryngoscope, 84: 1777-821,1974. 7.MOGI, G.; SUZUKI, M.; FURIOSHI, T.; UEYAMA, S.; ICHIMIYA, I.: Influence of Middle ear Effusion on Perilymph. Acta Otolaryngol Suppl (Stockh), 457:116-23, 1989.
* Professor Assistente Doutor da Clínica de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. ** Professor Associado da Clínica de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. *** Residente da Clínica de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. **** Pós Graduandos de Clínica de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. **** Professor Titular da Clínica de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Trabalho realizado na Clínica de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e no UM-32 (Serviço do Prof. Dr. Aroldo Miniti).
Trabalho apresentado no XXXI Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, 1992.
Endereço para correspondência: Avenida Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 - 6° andar - CEP 05403 - São Paulo - SP.
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