INTRODUÇÃOAs complicações endocranianas que podem advir de uma patologia infecciosa otológica tornaram-se menos freqüentes em virtude da disponibilidade de um arsenal terapêutico eficiente e diversificado. Essa baixa incidência dificulta o diagnóstico precoce e pode acarretar atrasos terapêuticos que constituem um fator de risco pelo seu alto potencial mórbido.
Algumas dessas complicações foram originariamente descritas por Gradenigo em 19041, como uma síndrome constituída por urna trilogia de sintomas que indicavam complicações endocranianas da petrosite.
Posteriormente, inúmeros autores acresceram outras complicações àquelas descritas, demonstrando a diversidade da apresentação do quadro infeccioso do Sistema Nervoso Central oriundo de um processo supurativo otológico.
Este trabalho visa, através do relato de um caso, alertamos para a existência dessas condições e enfatizar as diversas possibilidades de apresentação clínica decorrentes do comprometimento endocrânico.
Procuramos abordar as complicações intracranianas de processos supurativos de ouvido médio quanto aos aspectos fisiológicos e métodos diagnóstico-terapêuticos.
APRESENTAÇÃO DO CASOPaciente R.C.C.P.F., 5 anos, negro, natural e procedente de Sorocaba, São Paulo, foi admitido no Pronto Socorro de Pediatria em 12/05/91, com quadro otalgia e otorréia fétida abundante em ouvido esquerdo e dor retro-orbitária homo lateral, rigidez de nuca e toxemia, com relato de 48 lis de evolução. Foram realizados exames laboratoriais subsidiários Radiografia Simples (RX) e Tomografia Computadorizada (TC) de mastóide.
RX DE MASTÓIDES (SCHÜLLER/ STENVERS)
Opacificação de mastóide esquerda com integridade da camada cortical.
TOMOGRAFIA COMPUTADORIZADA
Opacificação de mastóide esquerda. Parênquima cerebral sem alterações, sem lesões ósseas (Fig. 1a e b). Introduziu-se antibiotieoterapia sistêmica (aminoglicosídeo).
Após 3 dias, foi avaliado pela ORL apresentando na ocasião melhora do quadro otológico e toxêmico, com persistência da rigidez de nuca e dor retro-orbitária; acrescentando-se à esses sintomas hipotonia de hemicorpo esquerdo, desvio convergente de olho esquerdo, desvio da língua também para esquerda e dificuldade de movimentação (Fig. 2).
A otoscopia observou-se Membrana Timpânica (MT) de OE hiperemiada, com perfuração ampla, promontório visível e hiperernia de mucosa da caixa timpânica. Foi realizado novo hemograma optando-se pela manutenção do esquema terapêutico.
HMG
Leucócitos: 5.300
Seg. 39% - 2067
Linf. Típicos: 54% - 2862
Linf. Atípico: 1% - 53%
Monócitos: 6% - 318
Eosófilos: ausentes
Paciente foi avaliado pela Neurologia Pediátrica, que associou a lesão de VI° e XII pares cranianos à tromboflebite decorrente de uma mastoidite.
No 16° dia de internação, à otoscopia, apresentava MT OE íntegra, opacificada e com retração importante sendo indicada colocação de microtubo em ouvido esquerdo, sem qualquer intercorrência e com saída de secreção mucoserosa durante o ato cirúrgico.
No 18° dia de internação, foram realizados Audiometria, BERA e teste de fala sensibilizada e Exames Otoneurológico no Hospital São Paulo, em São Paulo.
TESTES DE FALA SENSIBILIZADA (PSI-ICM)
Resultados compatíveis com alteração de vias auditivas centrais.
AUDIOMETRIA DE RESPOSTAS EVOCADAS DO TRONCO CEREBRAL (BERA)
Latências absolutas e interpicos dentro dos limites normais à direita. Ausência de resposta à esquerda a 130 dBNPS. Sem evidencia de comprometimento de via auditiva à nível de Tronco Cerebral à direita. A esquerda o estudo da condução da via auditiva no tronco encefálico ficou prejudicado pela ausência de respostas.
FIGURA 2 - Desvio convergente de olho esquerdo observado do início do quadro.
FIGURA 3 - Regressão total do desvio convergente de olho e de língua para esquerda na alta.
EXAMES OTONEUROLÓGICO
Paciente não colaborou na realização da prova calórica. Até onde avaliado o exame vestibular mostrou-se normal. O paciente evoluiu satisfatoriamente, recebendo alta hospitalar no 21° dia de internação, com desvio de olho esquerdo e língua e discreta hipotonia de hemicorpo esquerdo.
Nos retornos ambulatoriais subsqüentes, observamos a regressão dos sintomas com desaparecimento total dos mesmos em 07(01/92 (Fig.3).
DISCUSSÃODe acordo com o relato do caso, o quadro inicial sugeria uma meningite decorrente da infecção otológica, tendo sido priorizado o meningismo e os demais sintomas considerados decorrentes dessa infecção endocraniana. A evolução do quadro cota persistência da paralisia do abducente e hipoglosso, associada a punção liquórica negativa dirigiu a investigação diagnostica para a pesquisa das complicações endocranianas de um processo supurativo de ouvido médio.
A revisão da literatura nos levou a trilogia descrita por Gradenigo1 em 1904, que consistia de otorréia, dor retroocular intensa e persistente, diplopia por estrabismo convergente devido à paralisia do nervo abducente atribuídos à infecção do ápice ela porção petrosa do osso temporal.
O paciente em questão apresentava esse três sintomas clássicos, acrescidos de paralisia do hipoglosso e hipotonia em hemicorpo esquerdo. A avaliação da neurologia sugeriu que tais sintomas poderiam ser decorrentes de uma tromboflebite secundária à mastoidite.
A sintomatologia de um processo que se origina na porção petrosa do temporal depende da sua extensão e distribuição. Nem toda petrite se exterioriza do modo descrito por Grandenigo, podendo-se inclusive, a Síndrome, sornarem-se ou subtraíam-se sinais e sintomas diversos2, 3. A Síndrome de Grandenigo também pode ocorrer em outras condições diferentes da petrite, como no caso de colesteatoma, neurinoma do trigêmeo, tumor do gânglio de Gasser, metástases, fraturas, hematomas, aneurismas e meningites carcimomatosas4.
Associados à petrosite já foram descritos também comprometimento de outros nervos como: o nervo facial2, 3, 5, a síndrome do forame jugular com o comprometimento dos nervos glosso faríngeo, vago c acessório3, 4, 5, a Síndrome de Horner por extensão do processo até as fibras simpáticas do plexo carotídeo interno4, envolvimento dos ramos mandibular e maxilar do trigêmeo3, 4, do nervo vestíbulo - coclear2, 3, 6 e dos nervos troclear e oculomotor também foram descritos. Foram relatados ainda abscessos pré-vertebrais e para faringeanos, hemorragia por corrosão da artéria carótida interna4, trombose dos seios venosos da base3, 4, 5, meningite1, absessos2, 3, 5, 6.
Potencialmente, as possibilidades de alterações neurológicas são ilimitadas.
Para melhor entendermos o mecanismo de propagação de um processo infeccioso através do osso temporal, é importante a recordação de sua anatomia.
O osso temporal tem sua porção petrosa de forma piramidal constituída por uma parte basal e por uma parte apical, possuindo também três superfícies se posiciona obliquamente na base do crânio, com direção ântero-medial e limitando as fossas cranianas média e posterior.
Sua base forma o limite medial do ouvido médio e contém a cóclea, o vestíbulo e os canais semicirculares. Enquanto 80% dos processos mastoídios são pneumatizados, apenas 30% dos ossos temporais possuem pneumatização que se estende aos seus ápices petrosos.
Essa pneumatização que une o complexo celular do ouvido médio ao complexo apical é dada por duas cadeias celulares principais: a cadeia póstero-inferior e a cadeia ântero-inferior, adjacentes ao ouvido interno.
Esse arranjo anatômico explicaria a propagação de um processo infeccioso otológico ao ápice petroso do temporal, mas esta propagação pode se realizar de outros modos como: através da via hematogênica (envolvendo, por exemplo, o seio petroso inferior), através de planos faseiais ou por meio de osteítes com reabsorvação óssea. Em geral, a propagação do processo tende ser diretamente proporcional ao grau de pneumatização2, 3.
A inflamação propagada ao ápice pode se restringir à congestão mucosa ou propagar-se com erosão das trabéculas ósseas intracelulares, que podem ser destruídas dando origem a formação da cavidade única, abcesso, no caso dos ápices pneumáticos. A osteomielite é uma forma de inflamação que pode também envolver um ápice diplóico e que tem maior capacidade de disseminação aos ossos vizinhos2.
As células do ápice petroso estão separadas da dura-máter suprajacente por uma camada óssea chamada cortical superior. Não é necessária, porém, que haja a destruição dessa para a propagação do processo até a paqui ou leptomeninge, inclusive com formação de abcesso extradural2.
A partir do momento em que o processo adentra à cavidade craniana diversas lesões, que se combinam de muitas formas, podem ocorrer.
O gânglio trigeminal da base e o nervo abducente, antes de penetrar no seio cavernoso, estão em contato quase direto com o ápice petroso, estando dele separado somente por uma lâmina de dura-máter. O nervo abducente e o ramo Oftálmico do trigêmeo são elementos muito próximos do ápice. Provavelmente, por isso, mais comumente a propagação infecciosa atinge esses nervos causando, respectivamente, paralisia do abriu c ente e hiperalgesia retro-orbitária, eferidos por Gradenigo1.
O comprometimento endocránico pode se originar de processos otológicos agudos ou crônicos, ou após cirurgias do ouvido médio. Pode ou não haver mastoidite concomitante2. Devido â barreira representada pelo labirinto ósseo, pode haver ou não presença de descarga pelo ouvido médio. Inclusive, essa barreira é que favorece a disseminação medial do processo e a sua conseqüente alta morbidade3. A sintomatologia que precede a propagação endocraniana da infecção pode ser notável ou ausente. A ordem de aparecimento de sintomas é aleatória e no caso de se seguirem a episódios de otites, podem se instalar num período que varia de uma semana até dois ou três meses após4.
Os exames complementares podem auxiliar no diagnóstico. A radiografia simples na incidência de Stenvers, às vezes, dá resultados falso-positivos. Já foi relatado um caso onde essa incidência revelou a destruição da cortical superior, mas a autópsia revelou integridade da estrutural. Apesar disso, essa incidência e a de Schüller podem revelar opacificação mastoídea ou até mesmo indícios diretos e fidedignos de lesão apical. No entanto esses métodos têm sido preteridos em relação a métodos diagnósticos complementares mais eficientes, corno a Tomografia Computadorizada (TC) e a Cintilografia. Apesar de a TC ser melhor para a avaliação de partes ósseas, pode ter o seu lugar quando não se dispõe de outros recursos, notadamente, a Ressonância Nuclear Magnética e a Cintilografia5.
No caso apresentado não evidenciamos à TC qualquer alteração compatível com abcessos intracranianos ou epidema, o que reforça mais a hipótese de tromboflebite feita pela Neurologia, que seria compatível com uma TC normal. Na nossa opinião, a Arteriografia, na suspeita de tromboflebite poderia ser útil para a confirmação de acometimento vascular, bem como a Ressonância Magnética e a Cintilografia. Entretanto, devido à dificuldade para obtenção desses exames e ao fato de não alterarem o prognóstico e a conduta, ao menos nesse caso, optamos por não realizá-los.
Quanto aos exames subsidiários utilizados, é imperiosa a análise do liquor, devido ao alto risco de ocorrência de meningísmo que pode, inclusive, ser o quadro clínico inicialmente perceptível, com punção liquórica negativa5.
As culturas de possíveis secreções otológicas podem apresentar resultados negativos ou inconclusivos em alguns casos7, 3. A velocidade de Hemossedimentação e o hemograma podem m não se mostrar alterados e o paciente estar afebril4, 5, 6, 7. Dessa forma, o diagnóstico deve ser eminentemente clínico e a terapia instituída precocemente. Os microorganismos mais comuns são: stafilococos, pseudomonas, pncurnococos, mycobactcrium tuberculosis, anaeróbios, e outros gram-positivos7.
Em crianças, é particularmente comum a presença de haemophylus5, 6, 7.
No caso relatado a cultura devido à manipulação prévia do paciente de antibiótico tópico e sistêmico, perderia seu valor prático, visto que a flora microbiana já estaria alterada.
No paciente R.C.C.P.F. além do tratamento clínico optou-se pela colocação de microtubo em M.T. esquerda devido ao fechamento precoce da perfuração com retração acentuada da M.T. Essa conduta foi motivada pelo risco que traria ao paciente nina reinfecção.
Na avaliação audiológica pré-cperatória foi evidenciada uma anacusia à esquerda que não havia sido relatada pelo paciente, nem mesmo observada ao exame clínico.
Objetivando um diagnóstico diferencial quanto à localização da lesão auditiva foram realizados: teste de fala sensibilizada (SSI-ICM), BERA e eletronistaginografia que mostraram-se inconclusivos quanto a presença ou não de alteração a nível central.
A evolução do quadro com o desaparecimento de todos os sintomas de origem central e com persistência da anacusia levaram os autores a formular, a hipótese de uma labirintite purulenta que provavelmente não pode ser diagnosticada, em virtude da não colaboração da criança durante o exame otoneurológico e da dificuldade de se observar um quadro vertiginoso devido a presença de outros sintomas como rigidez de nuca e hipotonia hemicorporal.
CONCLUSÃOConcluímos que a dificuldade no diagnóstico diferencial deve-se à grande variedade de sinais e sintomas neurológicos observados no início do quadro, atribuídos principalmente à meningite.
Essa dificuldade diagnóstico pode levar a uma manipulação inicial inadequada, dificultando e atrasando a instituição da terapêutica.
Podemos concluir também que as complicações endocranianas podem apresentar-se sob as mais variadas formas clínicas constituindo quadros diversos daquele descrito por Gradenigo1.
Apesar da baixa incidência dessas complicações, devido à sua alta morbidade, devem ser sempre consideradas no tratamento dos quadros otológicos supurativos.
BIBLIOGRAFIA1. GRADENIGO, G.: Surun syndrome particulier des complications endocraniennes otitiques. Arch Inter Laryngol 18..432, 1904.
2. MARINHO FILHO, R.: Abcesso da Ponta do Rochedo. Síndrome de Gradenigo. O Hospital, 38(4): 15-21, 1950.
3. CONTRUCCI, R.B.; STALOFF, R.T. & MYRES, D.L.: Petrous Apicitis. Ear, Nose Throat Journal, 63:54-60, 1985.
4. GRAAF, J.; CATS, H. & JAGER, A.E.J.: Gradenigo's syndrome: a rare complication of otitis media. Clin Neurol neurosurg 90(3): 237-39, 1988.
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6. COSTA, D>M.L.; SILVA, V.C. & PILTCHER, S.: Síndrome de Gradenigo: Relato de caso. Rev. Bras. Otorrinolaringologia, 56(1):31-2, 1990.
7. GILLANDERS, D.A.: Gradenigo's syndrome revisited. The Journal Of Otolaryngology, 12(3): 169-74, 1983.
* Residentes da Disciplina de ORL da PUC-SP.
** Fonoaudióloga do Disciplina de ORL da PUC-SP. Mestre em Distúrbios da Comunicação. Professorado Curso de Fonoaudiologia da PUC-SP.
*** Chefe da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina do PUC-SP.
Trabalho realizado na Disciplina de Otorrinolaringologia da PUC-SP. Conjunto Hospitalar de Sorocaba.
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