ISSN 1806-9312  
Sábado, 23 de Novembro de 2024
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2350 - Vol. 66 / Edição 1 / Período: Janeiro - Fevereiro de 2000
Seção: Artigos Originais Páginas: 24 a 29
REGENERAÇÃO DE CÉLULAS CILIADAS APÓS OTOTOXICIDADE COM AMINOGICOSÍDEO N A CÓCLEA DE AVES.
Autor(es):
José Antonio A. de Oliveira*;
Ricardo C. Demarco*;
Maria Rossato***.

Palavras-chave: células ciliadas; regeneração; ototoxicidade; gentamicina; pinto

Keywords: hair cell; regeneration; ototoxicity; gentamicin; chick

Resumo: Introdução: As células ciliadas podem ser lesadas por inúmeros agentes, incluindo os antibióticos aminoglicosídeos. Na cóclea das aves, a perda das células ciliadas pode ser reposta por regeneração. Objetivos: Os objetivos da pesquisa foram estudar o processo de regeneração em aves e a progressão temporal das lesões provocadas pela gentamicina. Material e método: No estudo, foi administrada gentamicina em dose única subcutânea de 125 e 250 mg/kg respectivamente, em um e outro grupos de pintos de três dias. As cócleas foram processadas, para análise em microscopia eletrônica de varredura, no 1°, 3°, 5° e 20° dias após a injeção. A seqüência celular de degeneração e regeneração foi estudada. No 20° dia, a maior parte da área coclear lesada havia sido reposta por células ciliadas e de suporte regeneradas. Estereocílios e microvilos foram observados na superfície apical das células ciliadas-regeneradas

Abstract: Introduction: Hair cells may be damaged by a number of agents including aminoglycosides. In the avian cochlea, lost of hair cells can be replaced by regeneration. Aim: The objectives of the research were to study the process of regeneration that occurs in the avian cochlea and the temporal sequence of damage by gentanicin. Material and methods: In this study, two groups of three-day old chicks were given gentamicin at a single dose of 125 and 250 mg/kg each. Their cochlea were processed for, scanning electron microscopy at 1, 3, 5 and 20 days following the injection. The sequence of degeneration and regeneration were studied. By the 20 days post-treatment, however, most of the damaged region had been replaced with regenerating hair cells and supporting cells. Stereocilium and microvilli were observed on the apical surfaces of the regenerating sensorial epitelium.

INTRODUÇÃO

Tem sido bem estabelecido que os antibióticos aminoglicosídeos associam-se a severos efeitos colaterais ototóxicos. A utilização destas drogas, independentemente da posologia Ou duração do tratamento, pode levar à lesão permanente das células ciliadas da cóclea, resultando em perda auditiva neurossensorial irreversível. O efeito tóxico ocorre, inicialmente, sobre a espira basal ela cóclea, com extensão apical em caso da administração contínua da droga. Acreditava-se, há algum tempo, que as células ciliadas das aves, ao contrário de peixes e anfíbios2, 21, 17, não se regenerariam uma vez lesadas. Entretanto, estudos recentes têm evidenciado que os vertebrados, excetuando-se os mamíferos, demonstram a capacidade de proliferação das células ciliadas durante o seu desenvolvimento e na vida adulta, bem como de regeneração das mesmas após lesão. A recuperação dessas células sensoriais tem sido bem demonstrada em aves, tanto após lesão induzida por ruído quanto em intoxicação por aminoglicosídeos6.

O propósito deste estudo foi examinar morfologicamente o processo temporal ele degeneração e regeneração após administração sistêmica ele gentamicina, num modelo animal utilizando pintos neonatos.

A seqüência histológica foi avaliada através da microscopia eletrônica de varredura(MEV). Utilizamos a cóclea de frangos devido à abundância de estudos histológicos disponíveis desta espécie, bem como por já estarem estabelecidos os processos da preparação histológica para microscopia eletrônica18, 19, 4.

MATERIAL E MÉTODO

Foram utilizados pintos neonatos da raça White Leghorn conservados em biotério. Trinta deles foram divididos em três grupos: um controle (A) com seis pintos e dois outros grupos (B e C) com 12 pintos cada. Os pintos do Grupo B receberam, cada um, dose única subcutânea de gentamicina de 125 mg/kg; e os pintos do Grupo C, de 250 mg/kg. A dose e a disposição temporal para o sacrifício foi escolhida com base em estudos prévios em aves de Coltrera e colaboradores1.

Em cada um dos grupos B e C, três pintos foram sendo sacrificados após 1, 3, 5 e 20 dias da injeção da medicação, e as cócleas foram processadas para MEV.

Após a decapitação, cada osso temporal era isolado e dissecado com estilete delicado, expondo-se a cóclea. O dueto coclear foi retirado, lavado e fixado através da perfusão de glutaraldeído a 2,5% em tampão fosfato 0,1 M (Sorensen) durante 12 horas. Foi, após, refixado em solução ele tetróxido ele ósmio a 1% em tampão fosfato 0,1 M. A membrana tectorial foi dissecada; e o tecido, fixado, foi desidratado através ele banhos progressivos com etanol em ordem crescente (50%, 70%, 90% e 95%), durante 10 minutos em cada imersão. A seguir, utilizou-se etanol a 1000/0 em três banhos ele 20 minutos cada, deixando-se, após, por 12 horas à temperatura ambiente, num último banho. Realizou-se, então, a secagem das amostras, submersas em CO2 líquido, na câmara ele secagem do aparelho de ponto crítico (BAL-TEC-CPD 030 - Critical Point Dryer). As cócleas foram, então, coladas em um porta-espécimen cilíndrico com pasta condutiva ele carbono e, a seguir, submetidas à metalização em ouro. Foram, enfim, examinadas e fotografadas no microscópio eletrônico de Varredura JEOL (modelo JSM - 5200), em aumentos ele 1.500 a 7.500 x, a uma voltagem ele aceleração de 25 kV.

Os pintos do grupo controle (A) tiveram suas cócleas processadas similarmente nos mesmos dias que o foram os dos grupos B e C.

RESULTADOS

Os resultados são apresenta cios, inicialmente os do grupo controle e, a seguir, os elos grupos experimentais submetidos ao ototóxico. A célula foi considerada lesada quando houve qualquer alteração da superfície celular ou ela estruturação dos feixes ele estereocílios. Células ciliadas regeneradas foram identificadas pelo tamanho pequeno, formato arredondado, estereocílios ele aspecto embrionário (pequena altura e desorganizados) e presença residual ele microvilos no pólo apical da célula.

Grupo controle

O dueto coclear das aves tem um aspecto sacular alongado, apresentando, no seu interior, em forma filamentar, a papila basilar. Esta contém o epitélio sensorial que se estende desde a sua porção basal (próximo às janelas oval e redonda) até a apical. A Figura 1 mostra a visão superior do epitélio sensorial da cóclea controle, com disposição celular em mosaico. As células ciliadas apresentam seus pólos apicais de forma poligonal (pentagonal ou hexagonal) e são caracterizadas pela presença de estereocílios na superfície. São separadas umas das outras por células suporte, cuja porção apical é representada porestreitasmargens contendo inúmeros microvilos (Figura 2).

Primeiro dia pós-administração degentamicina

A porção basal do epitélio sensorial apresenta áreas de células ciliadas com irregularidades na membrana cio pólo apical e início ele desarranjo ciliar (Figura 3), com o restante do epitélio apresentado-se serra alterações.

Terceiro dia pós-gentamicina

Houve uma extensa lesão morfológica nas células ciliadas localizadas na porção basal da cóclea, com ampla área ele morte celular (Figura 4). Comparada à intensa lesão nesta porção basal, uma zona intermediária, no terço médio ela cóclea, evidenciou variados graus de lesão: células ciliadas com edema de diversas intensidades, mostrando desde protrusão da superfície (Figura 5) até extrusão celular, apresentada como uma "herniação" do conteúdo intracelular pelo pólo apical (Figura 6). O epitélio da porção distal da cóclea manteve-se intacto morfologicamente.



Figura 1. Epitélio da papila basilar: controle normal com células ciliadas intactas, contendo feixes de estereocílios maduros (seta) na superfície apical.



Figura 2. Microvilos (seta) das células suporte contornando as células ciliadas.



Figura 3. Células ciliadas apresentando abaulamento apical discreto e desorientação dos feixes de estereocílios (primeiro dia pós-gentamicina - porção basal da papila basilar).



Figura 4. Área extensa de morte elas células ciliadas e de suporte (terceiro dia pós-gentamicina - porção basal da papila basilar).



Quinto dia pós-gentamicina

Neste quinto dia, na porção proximal da cóclea com lesão intensa, em meio às células mortas, começam a aparecer numerosas novas células ciliadas em processo de regeneração, pequenas, de margens arredondadas, com feixes irregulares baixos e agrupados de estereocílios "em brotamento" (Figura 7). A região distal da cóclea ainda não mostra sinal ele dano ã superfície celular ou aos feixes de estereocílios, As células ciliadas em processo regenerativo apresentam microvilos em sua superfície.

Vigésimo dia pós gentamicina

A porção basal da papila basilar apresenta o epitélio sensorial com um significativo aumento do número de células ciliadas regeneradas, com estereocílios mais maduros, e restauração do contorno poligonal celular.



Figura 5. Diversos graus de protrusão da superfície celular das células ciliadas (terceiro dia pós-gentamicina - porção intermediária da papila basilar).



Figura 6. Estágio avançado de lesão celular com extrusão apical (terceiro dia pós-gentamicina - porção basal da papila basilar).



Figura 7. Células ciliadas era processo regenerativo. Microvilos são identificados por seta na superfície das novas células (quinto dia pós-gentamicina).



Figura 8. Processo adiantado de regeneração celular com setas indicando desorientação dos feixes de estercocilios (20° dia pós-gentamicina).



A orientação cios estereoeílios não é do mesmo uniformismo que as células do epitélio sensorial normal, apresentando ora feixes fundidos ora com cílios espraiados (Figura 8). A largura do pólo apical das células de suporte é ainda maior que o normal.

DISCUSSÃO

A cóclea de aves tem mostrado uma capacidade singular de regeneração anatômica, tanto por lesão acústica9, 5, 11 quanto pelo uso de aminoglicosídeos12. Essa recuperação ocorre, em última análise, pela produção de novas células sensoriais ciliadas3, 15. A recuperação não é meramente morfológica. Tucci e Rubel20 demonstraram que também ocorre recuperação funcional após regeneração anatômica das cócleas submetidas à lesão induzida por ototóxico, em trabalho com audiometria de tronco cerebral (ABR). Entretanto, segundo Duckert e Rubél7, a recuperação neural ocorre somente após a recuperação das células ciliadas. Assim, a recuperação funcional ocorre na fase tardia da regeneração, quando: as células ciliadas estão maduras; os feixes de estereocílios, organizado; e a reinervação, completa.

Na alteração morfológica inicial devida a lesão celular, verificamos o surgimento de múltiplos abaulamentos na superfície na membrana celular, seguido da protrusão cada vez mais intensa do pólo apical da célula, até uma provável ruptura celular. O modelo do mecanismo de lesão celular por ototoxicidade foi proposto por Schacht16. Inicialmente, o aminoglicosídeos se ligaria à membrana plasmática da célula. Esta ligação desloca o cálcio e é reversível. A droga é, então, ativamente - transportada para o citoplasma, onde forma um complexo droga-lipídico ao unir-se com o fosfatidil-inositol. Este complexo induz a síntese de prostaglandinas, polimerização da actina e ativa outros sistemas celulares, levando à lesão da membrana celular, desta vez com dano celular irreversível.

Não se evidenciou alteração da cronologia da progressão da lesão e recuperação em relação aos grupos B e C, submetidos à injeção de 125 e 250 mg/kg, respectivamente. Entretanto, houve diferença na extensão da área de lesão. O grupo C apresentou uma superfície maior de lesão do epitélio sensorial, ocorrido, predominantemente, a nível da região basal da membrana basilar.

A seqüência de progressão da lesão, de basal para apical, das células ciliadas ao longo da cóclea tem sido demonstrada também em outros trabalhos, tanto em aves3 quanto em mamíferos13. Entretanto, esse padrão de lesão não é bem determinado. Hipóteses possíveis incluem: a dinâmica do fluxo sangüíneo coclear; o acúmulo seletivo do aminoglicosídeo nos tecidos cocleares ou perilinfa; maior sensibilidade ou absorção dos ototóxicos pelas células basais da cóclea10.

Outro achado deste estudo foi a presença de células ciliadas regeneradas já no quinto dia após a aplicação da gentamicina. Evidencia-se a presença de pequenas células com tufos ciliares apicais irregulares, ocupando o espaço deixado pelas células mortas. Isso indica que a regeneração e diferenciação podem ocorrer mesmo na presença de níveis ototóxicos do aminoglicosídeo. Assim, estas células imaturas devem ser resistentes, ao menos inicialmente, à influência da droga, como sugere Girod10. Isso seria possível caso as células em processo de regeneração não fossem capazes de ligar-se ao aminoglicosídeo, e estando, desta forma, protegidas dos seus efeitos. Esta proteção encerra-se, talvez, assim que o processo de maturação esteja completo.

Há várias teorias sobre os processos regenerativos. Um dos mecanismos teóricos do processo de regeneração seria através da migração de células ciliadas remanescentes para as áreas lesadas. Entretanto, a maioria dos autores acredita que o processo de regeneração ocorre porque existem células quiescentes, as células suporte, que retêm capacidade latente de multiplicação e que através de proliferação e diferenciação por mitose originariam células ciliadas auditivas. Esta proliferação por mitose pôde ser evidenciada com a timidina tritiada, tendo se utilizado a auto-radiografia na localização da síntese de DNA14. Os mecanismos de regeneração poderiam ser desencadeados-pelo processo lesivo, provocando liberação de fatores proliferativos (como neurotrofinas), que atuariam nas células suporte8.

Os resultados encorajadores das pesquisas de regeneração em aves elevem estimular estudos em mamíferos, para uma possível aplicação na cura da surdez neurossensorial irreversível no homem. Quando há lesão no órgão de Corti de mamíferos os espaços deixados pelas células lesadas são preenchidos por escaras produzidas pelas células de suporte que dificultaria a regeneração. O estudo dos mecanismos moleculares da ototoxicidade poderia ser, eventualmente, utilizado na proteção coclear contra agentes ototóxicos.

CONCLUSÕES

1 - A lesão do epitélio ciliado da papila basilar em pintos neonatos é seguida de regeneração com formação de novas células ciliadas.

2 - Pôde se observar a seqüência temporal das lesões provocadas pelo antibiótico ototóxico, a gentamicina, nas células ciliadas ele aves ao longo da membrana basilar.

3 - A progressão das lesões nos dois grupos submetidos ao ototóxico foi igual, havendo, entretanto, dano mais extenso ao epitélio sensorial do grupo submetido a dose maior (250 mg/ kg).

4 - Trabalhos com modelos animais para estudo da regeneração são importantes para o conhecimento elo processo regenerativo e as novas descobertas advindas destas pesquisas poderão ser aplicadas em mamíferos, a fim de induzir a regeneração da célula ciliada no homem.

AGRADECIMENTO

Os autores agradecem a assistência do Departamento de Morfologia da F~-USP, em especial aos técnicos de laboratório Maria Dolores S. Ferreira e José Augusto Maulin, pela preparação cuidadosa do material e realização da microscopia eletrônica; e à Rita Amâncio Diegues, Maria Cecilia-Onofre e Amélia Baruffi, do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da FMRP-USP, que providenciaram todo o suporte de secretaria.

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*Professor Titular da Disciplina de Otorrinolaringologia e Chefe do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto -USP.
** Médico Assistente e Pós-Graduando da Disciplina de Otorrinolaringologia do HCFMRP-USP.
*** Técnica de Apoio à Pesquisa da Disciplina de Otorrinolaringologia do HCFMRP-USP.

Trabalho apresentado no 34° Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia Fonte de Financiamento: CAPES -FAPESP
Endereço para correspondência: Hospital das Clinicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP. José Antonio A. Oliveira - Telefone/Fax: (0xx16) 633-0186.
Artigo recebido em 7 de abril de 1999. Artigo aceito em 1° de julho de 1999.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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