ISSN 1806-9312  
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2312 - Vol. 57 / Edição 1 / Período: Janeiro - Março de 1991
Seção: Artigos Originais Páginas: 05 a 12
Orelha em abano: aspectos evolutivos do tratamento cirúrgico e tendências atuais
Autor(es):
Ronaldo Golcman*
Benjamim Golcman**
Alexandre Profeta***

Palavras-chave:

Keywords: External ear

Resumo: É feita uma revisão dos procedimentos cirúrgicos para o tratamento da orelha em abano. São discutidas as indicações de cada uma das técnicas. É proposta uma associação de técnicas para poder abordar toda a gama de deformidades pertinentes ao quadro de orelha em abano. São discutidos os resultados cirúrgicos de 74 orelhas operadas por esta associação de técnicas (38 pacientes).

Histórico

Classicamente, encontra-se na literatura, Dieffenbach(1) como sendo o primeiro a relatar o tratamento de orelha em abano, o qual consistia de remoção de fuso de pele no sulco retroauricular, porém Blair Rogers em 1987(29), em minuciosa revisão da literatura, afirma que o trabalho deste autor descrevia apenas reconstrução de defeitos traumáticos do pavilhão auricular, amputação, queimaduras e lacerações, atribuindo a Edward Ely, em 1881(2), o primeiro relato na literatura médica do tratamento específico de orelha em abano, o qual consistia de excisão de pele e cartilagem de concha (por via posterior).

Seguiram o mesmo princípio cirúrgico Keen em 1890(3), Monks em 1891(40) e Morestin em 1903(5).

Luckett, em 1910(6), mudou o conceito da correção cirúrgica desta deformidade, sendo o primeiro a reconhecer que o defeito principal estava na falha da anti-helix em se dobrar e propôs excisão de pele e cartilagem da superfície auricular posterior, na região da futura anti-helix, reaproximando as margens da cartilagem com sutura de Lambert, formando uma crista.

Surgiram inúmeras publicações de variações táticas da técnica proposta por Luckett, como Davis & Kitlowski(7) (marcação da anti-helix com agulha molhada em corante); Barsky(8) (fazia três incisões paralelas na cartilagem, seguida de aproximação das margens distais sob o segmento central); Seeley(9) e Spina(13) (preconizaram incisão em Y na cartilagem para acentuar a cruz inferior).

Embora satisfatória, a técnica de Luckett produzia na anti-helix bordas agudas. Na tentativa de obter contorno mais suave e arredondado da anti-helix, surgiram inúmeros trabalhos como: McEvitt(25) (múltiplas incisões paralelas), sendo o mesmo princípio seguido por Pierce(10) e Farina(17).

Converse(12) , em 1955, realizou incisões completas na cartilagem e, após enfraquecê-las com abrasão tubuliza o segmento intermediário com suturas.

Mustarde(19), em 1963, criou a anti-helix com sutura de fios não-absorvíveis sem incisar a mesma. Este método ganhou muita popularidade devido a sua simplicidade.

Pitanguy(16), em 1961, reviveu , técnica de Barsky(8), realizando sutura das bordas da cartilagem por trás de uma ilha de cartilagem projetada para frente.

Stenstrom(20), em 1963, introduzir o enfraquecimento da cartilagem por uma escarificação anterior, baseado nos estudos de Gibson & Davis(14), segundo qual, quando se rompe o pericôndrio, a cartilagem se dobra para o lado oposto à escarificação. Utilizou um instrumento especial, o otoabrasor, e manteve a curvatura da anti-helix apenas com sutura da pele retroauricular.

Chongchet(21) utilizou o mesmo princípio e realizou enfraquecimento anterior da cartilagem através de múltiplas incisões paralelas.

Ju, Li e Crikelair(22) expuseram a cartilagem na sua face anterior, excisando e modificando o contorno da mesma, sob visão direta.

Furnas(23), em 1968, reenfatizou a importância da fixação da cartilagem conchal ao periósteo da mastóide naqueles pacientes que têm a anti-helix bem formada ou que o problema primário seja a hipertrofia de concha.

Skoog(26) propôs, em 1975, a pericondroplastia para os casos em que o problema seja apenas uma anti-helix pouco desenvolvida. Samis(28), em 1982, em estudo histológico de cartilagem de orelha de coelhos, confirmou a neoformação cartilaginosa (calo cartilaginoso) após secções parciais de cartilagem.

Ray Elliott(27) sugeriu modificação da técnica de Furnas que consta de excisão de músculo retroauricular e tecido fibrogorduroso adjacente, para facilitar o reembutimento da concha.


TÉCNICA

Indicamos a cirurgia na idade pré-escolar, entre 5 e 7 anos, para evitar os afeitos danosos sobre a personalidade da criança, pelos comentários jocosos dos colegas.

Utilizamos anestesia local em crianças cooperativas e adultos, e anestesia geral em crianças menores. Como a motivação deste tipo de cirurgia geralmente parte da própria criança, o índice de cooperação é muito elevado.



Fig. 1 - Demarcação com verde brilhante da futura anti-helix.



Fig. 2 - Ressecção de elipse de pele sobre o sulco retroauricular (suprapericondral).



Demarcamos inicialmente, com verde brilhante, o local onde será a futura anti-helix. Este local é facilmente identificado, fazendo-se moderada pressão digital sobre a helix e observando-se o local de dobra. Caso a posição não seja harmoniosa e natural, podemos deslocá-la a um ponto mais satisfatório.

Em seguida, demarcamos uma elipse de pele sob o sulco retroauricular, em toda sua extensão, contudo, estreito. A estimativa da largura é feita às custas de nova manobra digital, desta vez sobre a concha, simulando o seu embutimento e avaliando a sobra de pele retroauricular.

Procede-se a infiltração de anestésico local com vasoconstritor, independentemente da cirurgia ser realizada sob anestesia local e/ou geral. Utilizamos rotineiramente a lidocaína 0,33% e adrenalina 1:120.000 UI
Lidocaína 1% ............... 20 ml
Soro fisiológico ............ 40 ml
Adrenalina 1:1000 ....... 0,5 ml



Fig. 3 - Descolamento subcutâneo em direção à borda livre.



Fig. 4 - Desenserção da concha até o conduto auditivo.



São utilizados ao redor de 7 a 10 ml por orelha, infiltrados no subcutâneo da elipse de pele demarcada no sulco retroauricular e sob a concha, ambas por acesso posterior.

Iniciamos a cirurgia propriamente dita ressecando-se a elipse de pele no plano suprapericondral, seguido de descolamento cutâneo, ao mesmo nível, em direção ao bordo livre do pavilhão auricular, ficando a aproximadamente 4 mm antes de antingirmos o bordo cartilaginoso.



Fig. 5 - Ressecção músculo auricular e tecido fibrogorduroso.



Fig. 6 - Transfixação da cartilagem auricular, na posição mais caudal da projeção do desenho da anti-helix.



Fig. 7 - Após descolamento subpericondral, escarificação anterior com o otoabrasor (Dingman).



Figs. 8a e 8b - Pontos em U, com algodão 3-0 branco mantendo a curvatura da anti-helix.



Figs. 9a e 9b - Reposicionamento da concha com 3 a 4 pontos à fáscia mastóide.



Fazemos, então, a desenserção da concha, em toda a sua extensão, até o conduto auditivo e, quando necessário, excisamos todo o tecido, inclusive o músculo auricular posterior, segundo descreve Ray A. Elliott(27).

Segue-se rigorosa hemostasia de toda região com eletrocautério.

Procede-se a transfixação da cartilagem auricular, na posição mais caudal do desenho de anti-helix, de aproximadamente 3 mm de comprimento, tomando-se o cuidado de preservar íntegra a pele sobreposta.

Iniciamos a tunelização anterior subcutânea sob desenho prévio da futura anti-helix, com tesoura de íris, seguido por descolamento com descolador curvo de pericôndrio e escarificação anterior com um otoabrasor (Dingman), de mesma curvatura e largura do descolador, sendo um para a orelha direita e um, de curvatura oposta, para a orelha esquerda. O objeto desta escarificação é o de romper o pericôndrio a este nível e também enfraquecer a cartilagem, sem rompê-la, para que seja possível a sua dobra suave (Stenstrom(20)).

Após escarificação anterior e conseqüente enfraquecimento da cartilagem, é realizada sutura com pontos em U, segundo Mustarde(19), sendo que utilizamos fio inabsorvível de algodão 3-0, de cor branca. São dados de 3 a 4 pontos, não muito apertados para que os mesmos não cortem a cartilagem e também para que não tirem a naturalidade da dobra suave da anti-helix.

O reposicionamento da concha é feito segundo técnica de Furnas(23), com 3 a 4 pontos de fio inabsorvível na fáscia que recobre a mastóide. Utilizamos fio de algodão branco 3-0, o mesmo que utilizamos para os pontos acima.



Fig. 10 - Pré-operatório-frente (caso 1).



Fig. 11 - Pós-operatório- frente (caso 1).



Quando presente hipertrofia do lóbulo, fazemos excisão de pele em forma de cauda de peixe ou reposicionamos a cauda da helix (Webster(24)).

Finalizamos a cirurgia com sutura cutânea, em Guarda Grega, com fio de nylon 5-0.

O curativo é feito com uma gase de morim vaselinada sobre a incisão e cobertura da orelha com algodão hidrófilo, seguido do enfaixamento com atadura de crepe.

Material e método

Foram operados, por um dos três autores, 38 pacientes, perfazendo um total de 74 orelhas operadas (dois pacientes do sexo feminino apresentavam deformidade unilateral).



Fig. 12 - Pré-operatório - perfil esquerdo (caso 1).



Fig. 13 - Pós-operatório - perfil esquerdo (caso 1).



Fig. 14 - Pré-operatório - perfil direito (caso 2).



Fig. 15 - Pós-operatório - perfil direito (caso 2).



A distribuição geral quanto ao sexo foi de 12 homens e 26 mulheres, com idade variando de 5 a 29 anos.

A infiltração de anestésico local foi utilizada em todos os pacientes acima, tendo sido associada a anestesia geral em nove pacientes.

Complicações ocorridas: dois hematomas (drenados cirurgicamente) e três pacientes, que tardiamente apresentaram eliminação de fio de sutura (algodão), pela incisão retroauricular, sem prejuízo do resultado.



Fig. 16 - Pré-operatório - vista posterior (caso 2).



Fig. 17 - Pós-operatório - vista posterior (caso 2).



Os resultados cirúrgicos foram analisados de acordo com os seguintes parâmetros: aparência estética; naturalidade da curvatura da anti-helix; ângulo escafoconchal e cefaloauricular, sendo a maioria, 68 orelhas, considerada excelente, quatro bons e dois regulares, não apresentando nenhum resultado fraco.

Discussão

O fato de existirem inúmeras técnicas para correção de uma mesma entidade (orelha em abano) denota que nenhuma das técnicas é completamente satisfatória. Além disso, sabemos que as possíveis variações de penetrância do defeito requerem graduação e flexibilidade técnicas para sua correção.

Partindo destes princípios, procuramos selecionar passos de cada técnica que pudessem corroborar para um melhor resultado, pelos motivos abaixo expostos:

A técnica que permite corrigir erros de implantação do pavilhão auricular, assim como o seu reembutimento, minimizando a possibilidade de assimetria ocorridas com as ressecções de concha é a proposta por Furnas(23), associada à ressecção de tecido muscular retroauricular e fibrogorduroso adjacente, para facilitar o reembutimento da concha (Ray Elliott(27)).

Para que seja conseguida uma dobra da anti-helix de contornos suaves com os princípios de Gibson & Davis(14), utilizamos a técnica de Strenstrom(20), escarificação anterior da cartilagem (a cartilagem dobra-se para o lado contrário ao rompimento do pericôndrio, ou seja, para o lado do pericôndrio íntegro). Associamos o método de Mustarde(19), pontos em U com fio inabsorvível, para que tenhamos maior segurança durante o período de neoformação cartilaginosa às custas do pericôndrio íntegro, que irá definir o resultado.

Com esta associação de técnicas temos conseguido de forma simples e objetiva abordar as várias alterações da "orelha em abano".

Summary

This paper brings a review of different surgical procedures used for the treatment of prominent ear. The indication of each different types of each different technique is discussed.

The proposition made is an association of these techniques to correct all the different types of prominent ear.

We present results of 74 ears operated by this associatìon (38 patients).

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* Médico Assistente do Hospital dos Defeitos da Face - Departamento de Cirurgia Plástica e Queimados; Médico Assistente Colaborador do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - Departamento de Dermatologia (Cirurgia Plástica-Dermatológica); Titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica e Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (TCBC).

** Professor Responsável pela Disciplina de Cirurgia Plástica Dermatológica - Curso de Pós-Graduação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; Médico Supervisor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - Departamento de Dermatologia (Cirurgia Plástica-Dermatológica), Titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica e Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (TCBC).

*** Membro Associado da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.

Endereço para correspondência: Hospital Israelita "Albert Einstein" Av. Albert Einstein, 627 - Sala 355-São Paulo- SP.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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