Acometimentos do sistema labiríntico por doenças infecciosas são notórios. Não é tarefa fácil englobá-los dentro de síndrome topográfica precisa, pois pode haver lesão do órgão sensorial, do nervo ou dos núcleos. São causados por treponemas (lues), por bactérias (meningite cerebro-espinhal epidémica, meningite tuberculosa, febre tifóide, brucelose, difteria, tifo exantemático), ou por virus. No grupo das viruoses, assinalaram-se casos devidos à gripe, a rubeola, ao sarampo, à varicela, à parotidite epidémica, à poliomielite, à encefalite epidémica, à hepatite epidémica e a zona. A ação do agente causador pode se dar diretamente ou através de toxinas.
No tocante à poliomielite, a extrema raridade da lesão do VIII nervo craniano é fato assente.
Conhece-se a possibilidade do virus da doença de Heine Medin lesar o tronco cerebral, assim como atingir o córno anterior da medula, os nervos ou gânglios espinhais, ou os gânglios simpáticos. O acometimento do nervo-eixo dá-nos explicação para a eventual lesão nuclear do III, VI, VII, VIII, IX, X, XI e XII nervos cranianos. CLAVERIE recorda-nos a frequência da paralisia do VII, assim como do IX, X e XI, e traduz seu espanto pela integridade habitual da via auditiva, sobretudo ao se assenhorear que a anatomia patológica demonstrara que lesões de neurónios sensitivos eram amiúde observadas, embora nenhuma manifestação clínica tivesse sido assinalada durante a vida do doente. A eletividade do tropismo do virus pelos neurónios motores não se mostrara, por outro lado, tão marcante, para justificar o respeito ao VIII nervo craniano.
Em levantamento da literatura, que nos foi possível efetuar, de 1950 para cá, conseguimos apenas observações esparsas sóbre a questão.
HUBER assinalou caso de surdez unilateral, que se instalou bruscamente de forma total, com regressão parcial posterior. Como apresentasse síndrome meníngico acentuado e não houvesse sinais bulbares, HUBER acredita que se tratasse de meningonevrite.
WINKLER registra caso de poliomielite anterior aguda em que apareceu disacusia unilateral, sem que houvesse vertigem ou presença de nistagmo espontâneo. A queda auditiva foi de 20 a 30 dbs até 500 c/s de 80 dbs acima de 2.000 c/s. Um ano após, a disacusia mantinha-se inalterada. WINKLER examinou 48 doentes de poliomielite anterior aguda; apenas dois apresentaram discreta hipoacusia possivelmente correlacionadas à doença.
FILIPPI e colab. examinaram 50 doentes com poliomielite anterior aguda e em todos a função acústica foi normal. A função vestibular evidenciou-se normal em quase todos os casos; apenas observaram hiperexcitabilidade à prova térmica em casos com distúrbios bulbares.
Se na doença de HENE MEDIN o acometimento do VIII se dá esporàdicamente, que dizer do mesmo em relação à vacinação antipoliomelítica? Surpreendeu-nos bastante, desta forma, a observação de três casos com alterações otoneurológicas bem caracterzadas em consequência do uso da vacina Salk. Não conseguimos encontrar o registro de caso semelhante em busca bibliográfica a partir da época em que se empregou esta vacina.
OBSERVAÇÕES:
Caso I - M.P., 19 anos, masculino, brasileiro, branco.
Anamnese. Passou bem até julho de 1959, quando contava 14 anos de idade. Nesta ocasião, foi vacinado em Engenheiro Beltrão, Estado do Paraná, contra a poliomielite, através de injeção intramuscular, tendo se submetido a uma única aplicação.
No dia imediato à vacinação, apresentou febre alta e teve uma crise convulsiva. A febre cedeu após quatro dias, ao fins dos quais passou a andar com dificuldade, em consequência de acentuado desequilíbrio e falta de fôrça nas pernas. Além disto, ficou surdo e foi acometido por vertigens de tipo giratório objetivo, que duravam alguns minutos; estas vertigens se atenuaram e se tornaram mais raras; atualmente ainda as apresenta, mas esporàdicamente. Daquela época para cá, manifestou-se ainda certa dificuldade na fala.
Antecedentes pessoais: Nega moléstias ou traumatismos dignos de nota.
Antecedentes familiares: Refere que o avô paterno se tornou surdo em idade avançada e o avô materno morreu paralizado dos quatro membros. Não forneceu mais informações.
Exame clínico: Doente bastante emagrecido, não evidenciando comprometimento dos aparelhos circulatório, respiratório e urinário.
Exame psíquico: Doente tímido, um pouco alheio ao ambiente. Não apresenta sinais de diminuição da capacidade intelectual.
Exame neurológico: l - Motricidade: Equilíbrio precário quando de olhos fechados, oscilando em tôdas as direções. Marcha atáxica, com alargamento da base de sustentação. Fôrça muscular conservada. Tonus universalmente diminuido. Reflexos profundos hipoativos nos membros superiores e abolidos nos membros inferiores. Não há Babinsky ou outros sinais de comprometimento do sistema piramidal. 2 - Cerebelo: Marcha atáxica. Dismetria à movimentação bilateral. 3 - Nervos cranianos: I - II - III - IV - V - VI - VII - IX - X - XII nervos cranianos: não se observam alterações.
Exame labiríntico (VIII nervo craniano).
Exame otorrinolaringológico de rotina:
Nada de interêsse particular no caso em aprêço.
I - Audição
Audimetrica tonal:
Audiometria vocal:
Discriminação.
0% a 90db dos dois lados, com lista de monossilabos FB 3 A de Geraldo de Sá.
II - Sinais vestibulares espontâneos: Nistagmo: não há.
III - Vertigem e nistagnto de. posição não há.
IV - Sitiais vestibulares provocados: Prova térmica (Hallpike):
Ouvído direito - 30º, 40'' = 0
Ouvído direito - 44º, 40'' = 0
Ouvido esquerdo - 30º, 40'' = 55''
Ouvido esquerdo - 44º, 40'' = 1' 35''
Ouvido direito - 18º, 1' = 0
Ouvido esquerdo - 18º, 1' = 1' 40''
Em conclusão:
I - Disacusia ner1ro-sensorial bilateral.
II - Inexcitabilidade vestibular direita.
Hipoexcitabilidade vestibular esquerda.
4 - Sensibilidade superficial respondendo aos estímulos dolorosos. Tactil e térmica, prejudicada pela falta de colaboração. Sensibilidade profunda levemente diminuida ao diapasão de 128 V.D. por seg. nos membros superiores, e abolida nos membros inferiores; posição segmentar com respostas desencontradas em todo o corpo.
5 - Fala: Degeneração da voz.
6 - Praxia: Normal.
7 - Estereo-gnosia: Prejudicada por falta de colaboração.
Exame subsidiário: Líquido cefalo-raquiano, por punção sub-occiptal: normal.
Diagnóstico.
Síndrome bilateral de deficit das vias cerebelares, da sensibilidade profunda e do XIII nervo craniano, por acometimento do tronco cerebral, consequente a uso de vacina antipoliomielítica tipo Salk.
Caso II - J.P., 9 anos, masculino, brasileiro, branco.
Anamnese. Como seu irmão, estava bem até julho de 1939, quando contava 4 anos de idade. Nesta época, foi também vacinado na mesma localidade do Paraná, contra poliomielite, através de uma única injeção intramuscular de Vacina Salk.
No dia seguinte, teve febre alta com duração de quatro dias, durante os quais apresentou várias crises de perda de consciência sem que se manifestassem movimentos convulsivos. Após êste período, a febre desapareceu, mas começou a apresentar dificuldade na marcha. Seu andar se mostrava desequilibrado; não tinha fôrças nas pernas. Nesta mesma ocasião, o pai percebeu deficiência da audição, e, a seguir, da fala.
Antecedentes pessoais: Nada digno de nota.
Antecedentes familiares: Os mesmos do irmão.
Exame clínico: Doente pouco desenvolvido, bastante magro. Nada digno de nota ao exame dos aparelhos circulatório, respiratório e urinário.
Exame psíquico: Doente negativista, parecendo bastante traumatisado pela moléstia. Não aparenta deficit mental, compreendendo às ordens quando dadas por mímica.
Exame neurológico: 1 - Motricídade: Equilíbrio estático: instável, com tendência a cair para qualquer lado, quando de olhos fechados. Equilíbrio cinético: marcha atáxica, com aumento da base de sustentação. Fórça muscular: diminuida de fórma global. Tonus: moderada hipotonia de todo o corpo. Reflexos profundos: hiporreflexia de todos os segmentos. Babinski: negativo, sem outros sinais de comprometimento do sistema piramidal.
2 - Cerebelo: marcha atáxica; dismetria moderada de todos os segmentos.
3 - Nervos cranianos: I - II - III - IV- V - VII - IX - XI - XII nervos cranianos normais.
VI nervo craniano: parecia bilateral, com estrabismo convergente. Exame labiríntico (VIII nervo craniano).
Exame otorrinolaringológico de rotina: Nada de interèsse particular no caso.
1 - Exame da audição.
Exame efetuado por audiometria com condicionamento por brinquedos, por Sra. Delia Z. Felmanas, fonoaudilogista do Serviço de Otorrinolaringologia.
Exame realizado por andimetria por reflexo eletro-dérmico actuou níveis semelhantes.
II - Sinais vestibulares expontâneos: Nistagmo: não há. Desvio do Index: não há.
III - Vertigem e nistagmo de posição: não há.
IV - Sinais vestibulares provocados: Prova térmica (Hallpike).
Ouvido direito - 30º, 40'' = 0
Ouvido direito - 44º, 40'' = 0
Ouvido esquerdo - 30º, 40'' = 1' 10''
Ouvido esquerdo - 44º, 40'' = 0
Ouvido direito - 18º, 1' = 0
Ouvido esquerdo - 18º, 1' = 1' 30"
Em conclusão:
I - Disacusia neuro-sensorial bilateral.
II - Inexcitabilidade vestibular direita. Anomalia da refletividade vestibular à esquerda com resposta diminuída a prova fria e falta de resposta à prova quente (44º). Preponderância de direção do nistagmo.
4 - Sensibilidade: Superficial - respondendo bem aos estímulos dolorosos, tactil e térmica-prejudicada por falta de colaboração. Sensibilidade profunda: vibratória diminuida (sente o diapasão vibrar, mas não nota quando para); posição segmentar diminuida não percebe movímentos de pequena amplitude.
5 - Fala: Degeneração intensa da voz.
6 - Práxia: Normal.
7 - Esterco-gnosia: Prejudicada por falta de colaboração.
Exame subsidiário: Líquido céfalo-raquiano, por punção sub-occiptal: normal.
Diagnóstico.
Síndrome bilateral de deficit de vias cerebelares da sensibilidade profunda, do VI e do VIII nervos cranianos por acometimento do tronco cerebral, consequente a uso de vacina antipolimiclítica tipo Salk.
Caso III - D.P., 8 anos, masculino, brasileiro, branco.
Anamnese. Assim como seus dois irmãos, gozava boa saúde até julho de 1959, quando contava três anos de idade. Após tornar a mesma vacina, apresentou febre, sem que tivesse perda; de consciência ou convulsões. Ao fim de quatro dias cessou a febre e passou a evidenciar dificuldade na marcha e surdez. A dificuldade em andar parece ter aumentado com o decurso do tempo; concomitantemente surgiu deficiência da fala.
Antecedentes pessoais e familares idênticos ao dos dois outros irmãos.
Exame clínico: Doente desnutrido, mostrando deficit de desenvolvitnento de estatura. Nada digno de nota no exame dos aparelhos circulatório, respiratório e urinário.
Exame psíquico: Mostra pouco contacto com o ambiente, embora sua atenção não seja completamente alheia.
Exame neurológico: 1 - Motricidade: Equilíbrio estático: instável, oscilando em tôdas as direções, quando de olhos fechados. Equilíbrio cinético: marcha levemente atáxica, com pequeno alargamento da base de sustentação. Fôrça muscular: diminuida globalmente. Tonais: levemente diminuido. Reflexos profundos: hipoativos nos membros superiores e abolidos nos membros inferiores. Não há sinal de Babinski ou outros sugestivos de lesão piramidal.
2 - Cerebelo: Marcha atáxica e leve dismetria nas provas de calcanhar - joelho e dedo - nariz. Disdiadococinesia nos quatro membros.
3 - Nervos cranianos: I - II - III - IV - V - VI - VII - IX - X - XI - XII nervos cranianos seus alterações.
Exame labiríntico (VIII nervo craniano).
Exame otorrinolaringológico de rotina seus particularidades dignas de registro no caso.
1 - Exame de audição.
Exame realizado por condicionamento com brinquedos pela fonoaudiologista do Serviço, Sra. Delia Z. Felmanas. Via óssea de ambos os ouvidos sem mascaramento, dada a dificuldade existente em face do nível da criança.
Em exame através do reflexo eletro-dérmico, os níveis auditivos se evidenciaram, em ambos os lados, bem piores que os observados com o condicionamento por brinquedos.
II - Sinais vestibulares espontâneos:
Nistagmo: não há.
Desvio do Index: não há.
III - Vertigem e nistagmo de posição: não há.
IV - Sinais vestibulares provocados:
Prova térmica (Hallpike).
Ouvido direito - 30º, 40'' = 0
Ouvido direito - 44º, 40" = 0
Ouvido esquerdo - 30º, 40" = 0
Ouvido esquerdo - 44º, 40" = 0
Ouvido direito - 18º, 1' = 0
Ouvido esquerdo - 18º, 1' = 0
Em conclusão:
I - Disacusia nervo-sensorial à direita e verosimilmente, à esquerda, por dados do reflexo eletro-dérmico.
II - Inexcitabilidade vestibular bilateral.
4 - Sensibilidade: Superficial - respondendo bem aos estímulos dolorosos; tactil e térmica - prejudicada por falta de colaboração. Sensibilidade profundo: vibratória diminuida (sente o diapasão, mas não percebe quando para); posição segmentar: diminuida em moderado grau nos membros inferiores (não percebe movimentos de pequena amplitude)
5 - Fala: voz degenerada.
6 - Práxia: Normal.
7 - Gnosia:. Prejudicada por falta de colaboração.
Exame subsidiário: Liquido celaloraqueano, por punção sub-occiptal: normal.
Diagnóstico.
Síndrome bilateral de deficit das vias cerebelares, da sensibilidade profunda, e do VIII nervo craniano por acometimento do tronco cerebral, consequente a uso de vacina antipoliomelítica tipo Salk.
Como complemento destas observações, é interessante acrescentarmos que, nesta família de quatro filhos, uma irmã, que contava na época um anca de idade, não foi vacinada e nada lhe sucedeu. Por outro lado, segundo informação do progenitor, que continuou residindo na região por mais sete meses, nenhum outro vacinado apresentou sintomatologia semelhante.
Considerando-se que a vacina Salk é feita com vírus mortos, não se torna tarefa fácil responder à indagação sôbre a etiopatogenia da síndrome encefalítica apresentada por êstes doentes. Seria de origem alérgica ou infecciosa por presença de virus vivos no material de vacinação? A favor da primeira hipótese estaria o fato do não aparecimento de caso idêntico entre os demais vacinados na região. Chama a atenção, porém, a contingência de apenas êstes três irmãos, em todo o grupo, possuirem condições particulares propícias ao desencadeamento do fenômeno alérgico. Ainda mais, é estranhável o acometimento simultâneo dos vários sistemas, como se observou nestes três casos. A pesquisa na literatura de fato semelhante foi negativa.
Por outro lado, no tocante ao ouvido, a experiência nos ensina que a eventualidade de alterações cocleares e vestibulares se dá muito raramente em relação com a alergia alergénica, como ocorre, por exemplo, em relação a ingestão de certos alimentos. Os raros casos que conhecemos, dêste teor apresentaram sinais audiológicos e vestibulares de topografia intra-labiríntica; não se tratavam, além disso, de síndromes cocleo-vestibulares bilaterais, com corteja de sinais neurológicos, como aqui.
SUMMARY
The A. present the observations of three brothers who, after Salk's vaccination, were suddenly committed by encephalites. This encephalites has left, as sequel, a cochlear-vestibular lesion, associated with damage of cerebelar and proprioceptive pathways.
BIBLIOGRAFIA
1) CLAVERIE, G. - Considérations sur les surdités au cours des maladies a virus. Rev. Laryng., Otol., Rhin. 77 (N.º 1-2): 116-146, 1946.
2) FILIPPI, P., SCARABICCHI, I., BARBIERI, A. - Ricerche sulla funzione acustica e vestibolare in soggetti affetti da poliomielite anteriore acata. Minerva Pediat. 11: 193-198, 1959. In Zentralbl. f. H. N. Ohrenh. 65: 295, 1960.
3) HUBER, J. P., cit., por AUBRY, M., PIALOUX, P. - Maladies de Poreille interne et oto-neurologie, Masson Cie., Paris, 1957.
4) WINKLER, H. - Beitrag zur Actisticus-Shädigung bei Poliomyelitis. H. N. O. - Wegweiser. 7: 23-25, 1918. In Zentralbl. f. H. N. Oltrenh. 61: 335, 1958.
Trabalho da Clínica Otorrinolaringológica (Prof. Dr. Paulo Mangabeira Albernaz) e da Clínica Neurológica (Prof. Dr. Paulino Watt Longo) da Escola Paulista de Medicina.
* Assistentes.