IntroduçãoDesde que foi identificada, em 1981, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida transformou-se em assunto de suma importância. As causas desse impacto podem sei atribuídas, principalmente, a forma pela qual a doença é transmitida e pelo seu prognóstico sombrio(1). Geralmente é caracterizada por uma ou mais doenças oportunísticas (câncer e/ou infecções) que são indicativas de imunodeficiências na ausência de qualquer outra causa que possa provocar essa deficiência imunológica.
Homossexuais e bissexuais masculinos são o principal grupo de risco, seguidos por usuários de drogas injetáveis, hemofílicos e politransfundidos, parceiros heterossexuais de pessoas do grupo de risco(1, 2).
O diagnóstico laboratorial é baseado em provas sorológicas. O teste de ELISA (Enzyme Linked Immunosorbent Assay) é o mais utilizado, sendo de alto valor preditivo, porém apresentando falsos-negativos e positivos. O teste western-Blot é usado como teste confirmatório assim como a detecção da presença do vírus HIV.
As manifestações otorrinolaringológicas na SIDA são de fundamental importância visto que, de acordo com a literatura, de 41 a 71% dos pacientes apresentam patologias em áreas examinadas por otorrinolaringologistas(1).
O presente estudo tem por objetivo chamar a atenção da classe médica para a importância do reconhecimento dessas manifestações:
Mostramos a análise retrospectiva de um grupo de 115 pacientes com SIDA do Hospital de Clinicas de Porto Alegre cujas manifestações otorrinolaringológicas foram estudadas e comparadas com as da literatura.
Material e métodosForam revisados 161 prontuários de pacientes com diagnóstico de Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, conforme o CDC2, internados no Hospital de Clínicas de Porto Alegre entre os anos de 1986 a 1988. Desses, foram selecionados 115 pacientes que apresentaram manifestações otorrinolaringológicas em algum momento da evolução da doença. Um protocolo foi aplicado para a coleta dos dados clínico-epidemiológicos mais relevantes: incidência por sexo, raça, distribuição por faixa etária, procedência, grupo de risco e lesões relacionadas anatomicamente com a cabeça e pescoço.
ResultadosA distribuição por sexo mostrou que 106 (92,2%) eram do sexo masculino e 9 (7,8%) do sexo feminino. A maioria dos pacientes, 107 (93,0%), eram brancos, 5 (4,3%) mistos e 3 (2,6%) eram pretos. Quanto ao estado civil, 74 (64,3%) eram solteiros e 29 (25,2%) casados. As faixas etárias predominantes foram dos 20 aos 30 anos (30,4%) e dos 30 aos 40 anos (38,3%). Houve apenas um caso (0,9%) abaixo dos 10 anos de idade e um caso acima dos 60 anos (0,9%) (Gráfico 1). Dos pacientes, 95 (82,6%) eram procedentes de Porto Alegre ou da Grande Porto Alegre. Os restantes (17%) procediam do interior ou de outros estados brasileiros. Em relação ao grupo de risco, 83 pacientes (72,2%) eram homossexuais ou bissexuais, 4 pacientes (3,5%) eram heterossexuais que mantinham relações sexuais com parceiros pertencentes aos grupos de risco. Em 3 casos (2,6%) não se pode determinar a via de transmissão (Tabela 1). Quanto as lesões otorrinolaringológicas, verificou-se que a candidíase orofaringeana foi a mais prevalente, acometendo 99 pacientes (86,0%) (Tabela 2). Sinusites ocorreram em 22 casos (19,1%), sendo o seio maxilar o mais atingido (48,6%) (Tabela 3), Herpes simples em 11,3% dos casos, com o labial perfazendo 76,9% dos casos (Tabela 4). Constatou-se tuberculose na laringe em 4 pacientes (3,5%). A prevalência de Sarcoma de Kaposi foi de 7,8% tendo a seguinte distribuição: pele 4 casos, cavidade oral 5 casos (Tabela 5). Leucoplasia pilosa ocorreu em 7,8% dos pacientes. A ocorrência de otites (média e externa) foi de 3,5% dos casos. Outras lesões menos freqüentes foram em ordem decrescente de aparecimento: amigdalites, periodontites, estomatites, lues secundários, micoses, molusco contagioso.
DiscussãoAs regiões anatômicas da cabeça e pescoço são freqüentemente acometidas em pacientes com Síndrome de Imunodeficiência Adquirida. Neste estudo observou-se que, de 161 pacientes, 115 (71,4%) apresentavam lesões nessas áreas. Trabalhos da literatura mostram uma variação de 41% a 71% na incidência de lesões em áreas anatômicas tratadas pelos otorrinolaringologistas(2, 3, 4, 5, 6).
Quanto ao sexo, os homens foram acometidos na maioria dos casos (92,2%). Esta proporção assemelha-se as observadas nos estudos realizados por Rosemberg(7), Kelsper(8), Ferreira(9).
Em relação a idade dos pacientes, observou-se uma maior prevalência nas faixas etárias sexualmente ativas (20 a 50 anos). Rosemberg(7), Kelsper(8), Kohan(10), Ferreira(9) encontraram prevalências similares.
O grupo de risco mais freqüentemente observado foi o de homossexuais e bissexuais masculinos (72,2%), semelhante a outros estudos(2, 7, 11, 9).
Das lesões otorrinolaringológicas observadas, candidíase orofaringeana foi a mais prevalente (86,0%), confirmando outros estudos que demonstraram prevalência entre 25% a 75%(2, 5, 12, 13). Candidíase oral é a infecção oportunística mais freqüente em pacientes com SIDA(2). Existe relação entre candidíase oral e esofágica assim como um maior acometimento por Sarcoma de Kaposi em pessoas com candidíase prévia(14). Klein descreveu como sendo uma manifestação inicial da doença em 59% dos pacientes(2, 14).
Pouco existe acerca da relação de SIDA com sinusite. Observou-se nessa mostra que 22 pacientes (19,1 %) apresentaram sinusites, diagnosticadas clínica e radiologicamente, durante o percurso da doença. Os agentes etiológicos não foram pesquisados. Na sua maioria são causadas por agentes bacterianos (H. influenzae e S. pneumoniae) e por fungos, sendo Pseudallescheria boydii o mais comum(2, 15).
As lesões causadas pelo herpes simples são caracterizadas por vesículas com base eritematosa, podendo estar presente borda avermelhada na mucosa oral(13). Tendem a ser maiores e mais severas nos pacientes com SIDA(12). Já foram relatadas lesões ulceradas intra orais medindo de 1 a 3 cm de diâmetro(2). Herpes simples foi encontrado em 11,3% dos pacientes (sendo o labial o mais freqüente 76,9%) comparado com estudo de Marcusen(5) onde foi encontrado em apenas 4% dos casos.
Atualmente acredita-se que o vírus Epstein-Baar e o papiloma vírus estejam implicados na etiologia da leucoplasia pilosa(12, 13). Ela consiste em lesão brancacenta, elevada, pilo sa encontrada na borda lateral da língua(2). Sua prevalência nesse estudo foi de 7,8%, bem inferior aos 25% encontrados num estudo de 110 pacientes(2).
O Sarcoma de Kaposi um tumor mesenquimal que apresenta-se como lesões muco-cutâneas de coloração violácea ou pardacentas, maculares ou nodulares(2, 16). Acomete principalmente a pele, sistema nervoso central e o trato gastrointestinal, sendo que neste, o sitio mais freqüente é o palato duro(1, 2, 8, 13), Nessa amostra confirmam-se esses achados, demonstrando a grande importância do exame da cavidade oral quando há suspeita de Sarcoma de Kaposi. Marcusen num estudo de 165 pacientes demonstrou que 35% apresentavam Sarcoma de Kaposi na cavidade oral, faringe ou na pele(5).
Infecção por Mycobacteriron tuberculosis ocorre em aproximadamente 10% dos pacientes com SIDA(11, 17, 18). O risco de infecção está relacionado a vários fatores, incluindo a incidência da doença na população e condições sócio-econômicas(11).
Nesse estudo foi demonstrado em 3,5% dos pacientes. Foram consideradas apenas lesões que comprometeram regiões da cabeça e pescoço.
Otites médias e externas foram pouco freqüentes (3,5% dos casos), o que está de acordo com outros trabalhos(2). Existem relatos na literatura de otites médias por pneumocystis carinnii, um organismo raramente encontrado fora do sítio pulmonar. Aventou-se a hipótese de contaminação via retrógrada pela trompa de Eustáquio(19, 20).
ConclusãoO número de casos de Síndrome de Imunodeficiência Adquirida tear aumentado significativamente desde a sua descoberta. Sendo a cabeça e o pescoço regiões anatômicas freqüentemente acometidas por lesões oportunísticas na evolução da doença, é de grande importância o reconhecimento destas pelos otorrinolaringologistas, a fim de que possam identificá-las e tratá-las, bem como planejar e adotar medidas de controle das mesmas. Candidíase Orofaringeana é uma das mais freqüentes doenças oportunísticas nos pacientes com SIDA. Seu aparecimento em pessoas do grupo de risco exige investigação.
Um diagnóstico precoce e tratamento adequado permitem melhorar a qualidade de vida de uma doença invariavelmente fatal.
SummaryIn this study the authors analyse retrospectively 161 patients with Acquired Immunodeficiency Syndrome interned at the Hospital de Clínicas de Porto Alegre. 115 (71,4%) presented otorhinolaryngologic lesions. 92,2% were males. The great majority were white and aged between 20 and 50 years (88,7%). Homossexual and bissexual males were the most frequent risk group (72,2%). Oropharyngeal candidiasis was the most prevalent head and neck manifestation (86,0%). Other less common lesions were sinusitis in 19,1 % and Kaposi's sarcoma in 7,8%, mainly on the hard palate. The recognition of these manifestations by the otorhinolaryngologists is important in order to make early diagnose and to treat them.
Bibliografia1. Sprinz, E. - SIDA/AIDS Para o clínico: Uma revisão. Revisão Amrigs 1989; 33(2): 127-34.
2. Sody, CD. - The Impact of AIDS on Otolaryngology Head and Neck Surgery. Chicago. Year Book Medical Publishers Inc. 1987; 1: 1-27.
3. Rosemberg, R.A.; Schneider, K.L.; Cohen, N.L. - Update on AIDS. Otolaryngology Head and Neck Surgery 1986; 95:127-30.
4. Hommel, D.J.; Brown, M.L.; Kinzie, J.L. Response to radiotherapy of head and neck tumor in AIDS patients. The American Journal of Surgery 1987;154: 443-46.
5. Marcusen, D.C.; Sooy, C.D. - Otolaryngologic and head and neck manifestations of AIDS. Laryngoscope 1985; 95: 401-05.
6. Smith, M.E.; Canalis, R.F. - Otologic manifestations of AIDS. The otosyphilis connection. Laryngoscope 1989; 99: 365-72.
7. Rosemberg, R.A.; Schneider, K.L.; Cohen, N.L. - Head and Neck Presentations of Acquired immunodeficiency Syndrome. Laryngoscope 1984; 94:642-46.
8. Helsper, J.; Formenti, S.; Levine, A. -Initial Manifestation of AIDS in the Head and Neck Region. The American Journal of Surgery 1986;152: 403-06.
9. Ferreira, J.; Loureiro, R.; Silveira, V.B. - Informe epidemiológico AIDS/R.S. Revista Amrigs 1989; 33(2): 155-58.
10. Kohan, D.; Rothstein, S.G.; Cohen, N.L. Otologic disease in patients with AIDS. Ann OtolRhinol Laryngol 1988; 97: 636-40.
11. Genro, C.H.; Silveira, R.C.; Vieira, M. V. Manifestaçõees radiológicas das patologias pulmonares na SIDA. Revista Amrigs 1989; 33(2): 101-08.
12. Rosemberg, R.A.; Schneider, K.L.; Cohen, N.L. - Head and Neck Presentations of Acquired Immunodeficiency Syndrome. Otolaryngol Head Neck Surg, 1985; 93:700-05.
13. Lucent, F.E.; Meitelez, L.Z.; Pincus, R.L. - Bronchoesophageal manifestations of AIDS. Ann Otol Rhinol Laryngol 1988; 97: 530-33.
14. Klein, R.S.; Harris, C.A.; Small, C.B.; Moll, B.; Lesser, M.; Friedland, G.H. Oral Candidiasis in High-risk patients as the initial manifestation of the AIDS. The New England Journal of Medicine 1984; 9: 354-58.
15. Mancusen, D.C.; Sooy, C.D. - Bacteriology and treatment of sinusitis in the AIDS. Laryngoscope 1987; in press.
16. Napier, B.L.; Mctighe, A.H.; Czako, R.G.; Snow, J.F.; Leavitt, R.D.; Blanchard, C.L. - AIDS presenting as oral pharyngeal and cutaneous Kaposi's Sarcoma. Laryngoscope 1983; 93: 1466-69.
17. Fournier, A.M.; Dickinson, G.M.; Erdfrocht, I.R.; Cleary, T.; Fischl, M.A. -Tuberculosis and nontuberculosis mycobacteriosis in patients with AIDS. Chest 1988; 93: 772-75.
18. Hopewell, P.C.; Luce, J.M. - Pulmonary involvement in the AIDS. Chest 1985; 87: 104-12.
19. Schinella, R.A.; Breda, S.D.; Hammerschlag, P.E. - Otic infection due to pneumocystis catinii in an apparently healthy man with antibody to the human immunodeficiency virus. Annals of Internal Medicine 1987;106: 399-400.
20. Gherman, C.R.; Ward, R.R.; Bassis, M.L. Pneumocystis carinii otitis media and mastoiditis as the initial manifestation of AIDS. The American Journal of Medicine 1988; 85: 250-52.
Trabalho realizado no Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre - Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Rua Ramiro Barcelos, 2350 - CEP 90210 - Porto Alegre - RS.
* Médicos-Residentes do Serviço de ORL - Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
** Acadêmicos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
*** Auxiliar de Ensino do Departamento de ORL da Faculdade de Medicina da UFRGS - Hospital de Clinicas de Porto Alegre.
Endereço para correspondência: Geraldo Druck Sant'Anna - Rua Riveira, 225 apto. 701 - Porto Alegre - RS - CEP 90610.