ISSN 1806-9312  
Sábado, 23 de Novembro de 2024
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228 - Vol. 33 / Edição 2 / Período: Abril - Junho de 1965
Seção: - Páginas: 45 a 52
TRAUMA ACÚSTICO EM PILOTOS E RADIO-OPERADORES DE VÔO DAS LINHAS AÉREAS COMERCIAIS BRASILEIRAS
Autor(es):
Dr. Pedro Luiz Mangabeira-Albernaz (*)
Dr. Walter Gonçalves Freitas (**)

A enorme quantidade de monografias e artigos sôbre o problema do trauma acústico dá uma idéia exata da importância e interêsse por êle despertado em grande número de investigadores.

Há, porém, que distinguir dois tipos diferentes de trabalhos sôbre o trauma acústico. De um lado temos os trabalhos experimentais, quer realizados com animais de laboratório, quer baseados na investigação cuidadosa de populações humanas cientificamente controladas. De outro lado, temos os trabalhos clínicos, que se limitam a observar populações, medir-lhes os limiares auditivos, e estabelecer conclusões a respeito da ocorrência de trauma nessas populações.

Éste último tipo de estudo, em geral, não se utiliza das noções e fatos resultantes dos trabalhos experimentais. Na sua maioria, os estudos clínicos se limitam à análise dos audiogramas obtidos, reportando a porcentagem de ocorrência de alterações auditivas atribuíveis a trauma acústico.

Ésses fatos nos levaram a empreender a análise dos dados clínicos relativos a uma população de pilotos comerciais e rádio-operadores de vôo, orientando-a segundo as normas adotadas nos trabalhos experimentais.

Estudos anteriores sôbre uma população semelhante foram, até certo ponto, contraditórios. SALEM (1), baseando-se nas médias audiométricas, concluiu pela inexistência de trauma acústico em aviação. MONTEIRO (2), demonstrou audiogramas típicos do trauma acústico em pessoal de vôo. Mais recentemente, NEVES PINTO publicou estudo cuidadoso,de audiogramas de pilotos e rádio-operadores de uma linha aérea comercial, concluindo pela existência de casos típicos de trauma acústico, muito embora as médias audiométricas sugerissem a não ocorrência de trauma (3).

Em nosso estudo, procuramos restringir ao mínimo o fator variação individual. Obtivemos medidas de valor central e de variação, por métodos estatísticos correntes.

Material e método

Êste trabalho incluiu inicialmente 311 pilotos de linhas aéreas comerciais, e 87 ràdio-operadores de vôo.

Não estão incluídos nessa população as tripulações de aviões a jato ou turbo-hélice. Uma história auditiva sumária de cada caso foi inicialmente obtida, conjuntamente com audiograma tonal liminar, por via aérea e via óssea. Foram afastados da investigação todos os casos de disacusia de transmissão, bem como os de otite média evidente, e também aquêles cuja perda auditiva era anterior ao início da presente ocupação. Com isso os números iniciais reduziram-se a 284 pilotos e 75 rádio-operadores.

Os audiogramas foram obtidos em sala acústicamente revestida, na Policlínica da Aeronáutica em São Paulo. Empregou-se em todos os testes um audiômetro Peters SP-D2.

Um fator freqüentemente deixado de lado em estudos dêste tipo, e que é fundamental para o nosso objetivo, é o da duração dos estímulos sonoros. Duas eram as alternativas para o presente trabalho: levar em conta o número de anos de trabalho, como se faz em relação ao ruído nas indústrias, ou basear-nos no número de horas de vôo. Essa última alternativa nos pareceu preferível, pois mantém relação mais exata com a presença de estímulos sonoros.

Os audiogramas foram, então, classificados, segundo o número de horas de vôo, em cinco classes, a saber:

Classe A - menos de 2000 horas de vôo
Classe B - de 2001 a 4000 horas de vôo
Classe C - de 4001 a 8000 horas de vôo
Classe D - de 8001 a 16000 horas de vôo
Classe E - mais de 16000 horas de vôo

Os intervalos de classe foram escolhidos em progressão geométrica, uma vez que, teòricamente, o trauma acústico é proporcional ao logaritmo do tempo. Teóricamente, teríamos assim (o que de fato aconteceu, como se depreenderá dos gráficos apresentados) uma relação linear entre os limiares e o tempo.

Em seguida, cuidamos de afastar a influência do componente de presbiacusia sôbre os limiares obtidos. Baseamo-nos nas curvas de presbiacusia publicadas por GLORIC e DAVIS (4), que foram obtidas no estudo de uma população não exposta a trauma acústico. (figura 1) .

A partir dos audiogramas corrigidos, obtiveram-se então, para cada uma das freqüências de 1000, 2000, 3000 e 4000 cps, as médias e desvios padrões dos limiares.

Para o grupo dos ràdio-operadores de vôo ambos os ouvidos de cada caso foram analisados simultâneamente. Testes estatísticos revelaram a inexistência de diferenças significantes entre as médias dos ouvidos melhores e ouvidos piores.

Para os pilotos, procedemos a análises separadas de todos os ouvidos melhores de um lado, e de todos os piores de outro. Resultados preliminares, em que ambos os ouvidos foram estudados simultâneamente, foram já publicados (5). Pilotos com audição igual dos dois lados foram incluídos indiferentemente. O julgamento do ouvido melhor baseou-se na média das freqüências consideradas importantes para a audição da voz humana, isto é, 500, 1000 e 2000 cps. Houve casos em que havia mais evidência de trauma no ouvido melhor, mas ésse dado não entrou em consideração quanto a êste julgamento. A separação dos ouvidos se baseou na observação de NEVES PINTO (3) de maior incidência de trauma acústico nos ouvidos que, durante o vôo, fazem uso de fones. Em geral os comandantes o fazem do lado esquerdo, e os co-pilotos do lado direito. Os ràdio-operadores, evidentemente, usam fones em ambos os ouvidos. Com efeito, observam-se mais casos típicos de trauma acústico nos ouvidos com fones.

Resultados

As tabelas I, II e III apresentam as médias e respectivos desvios-padrões relativos aos limiares auditivos da população estudada.

Para a freqüência de 4000 cps verificamos estatisticamente a significância da diferença entre os ouvidos melhores e os ouvidos piores dos pilotos. A tabela IV mostra os coeficientes de correlação momento-produto (Pearson) entre os ouvidos, bem como a porcentagem de probabilidade de a diferença entre ambos ser acidental.

As figuras 1, 2 e 3 apresentam, em forma de gráfico, os dados constantes das tabelas, para as freqüências de 2000, 3000 e 4000, respectivamente.



TABELA I - Médias e desvios-padrões dos limiares auditivos de 75 ràdio-operadores de vôo.



TABELA II - Médias e desvios-padrões dos limiares auditivos de 284 pilotos de linhas aéreas comerciais (sòmente os ouvidos melhores)



TABELA III - Médias e desvios-padrões dos limiares auditivos de 284 pilotos de linhas aéreas comerciais (sòmente os ouvidos piores)



TABELA IV - Significação estatística das diferenças entre os ouvidos melhores e piores dos pilotos comerciais na freqüência de 4000 cps.



Os círculos claros referem-se à audição dos ouvidos melhores dos pilotos, enquanto os cheios reportam-se aos ouvidos piores. A linha cheia é a reta que melhor se ajusta às médias dos limiares; as linhas pontilhadas unem os pontos correspondentes à soma das médias mais um desvio-padrão. A linha de pontos e traços corresponde à soma média + um desvio padrão relativa à população dos ràdio-operadores de vôo. Para simplificação foram omitidas as médias dos ràdio-operadores, que são, todavia, extremamente próximas das médias correspondentes aos piores ouvidos dos pilotos.

Discussão

Para a freqüência de 1000 cps não há desvios significativos nas médias dos limiares obtidos. Gráficos do tipo das figuras 1, 2 e 3 revelariam essencialmente linhas retas horizontais ou, talvez, um tanto inexplicàvelmente, ascendentes, mas sem significância estatística.

Na freqüência de 2000 cps a média dos limiares cai aproximadamente 5 db em relação aos ouvidos melhores, e cêrca de 10 db em relação aos ouvidos piores e os dos ràdio-operadores, desde as 2000 até as 16000 horas de vôo. Os desvios-padrões são pequenos em relação aos ouvidos melhores, nos ouvidos piores, a partir das 2000 horas de vôo, existe um significativo aumento da variabilidade da população, o que indica o aparecimento de casos de disacusia. Na população de ràdio-operadores a variabilidade só aumenta depois das 8000 horas de vôo.

Na freqüência de 3000 cps as médias caem mais abruptamente do que na freqüência anteriormente considerada, particularmente no que reporta aos ouvidos piores e ouvidos dos ràdio-operadores. A variação também aumenta significativamente, agora mesmo em relação aos melhores ouvidos, a partir das 2000 horas de vôo.

Na freqüência de 4000 cps encontramos médias igualmente de crescentes com o tempo de exposição sonora, e índices de variação extremamente significativos, que certamente caracterizam o aparecimento de muitos casos típicos de trauma acústico.

Êstes dados nos mostram que as médias auditivas destas populações parecem enquadrar-se na previsão de NIXON e GLORIG (6), confirmada em condições experimentais por ELDREDGE, COVELL e GANNON, (7) da proporcionalidade entre o trauma e o logaritimo do tempo de exposição sonora.

Não se trata, evidentemente, de perdas auditivas médias muito importantes do ponto de vista social. A maior média encontrada foi de 17 db, o que, clinicamente, é aceito como audição normal. Oneremos demonstrar, contudo, a existência de uma alteração estatisticamente significante dessas médias conseqüente ao aumento do tempo de exposição sonora.

O estudo das variações revela que elas aumentam com o decorrer do tempo de exposição, em virtude do aparecimento de novos casos típicos de trauma acústico.

NEVES PINTO (3) apresenta a sugestão de que. a maior incidência de trauma nestas populações se deva ao uso de fones nos ouvidos. A relativa concordância entre a população de ràdio-operadores e os ouvidos piores dos pilotos vem corroborar esta sugestão. A observação da tabele IV mostra o alto grau de significância das diferenças entre os ouvidos dos pilotos, até o limite de 16000 horas de vôo. No grupo de pilotos com mais de 16000 horas de vôo, entretanto, a probabilidade da diferença entre os ouvidos melhores e piores ser acidental é relativamente grande (8%). Êsses dados nos sugerem a possibilidade de os ouvidos melhores se tornarem, aos poucos, iguais aos piores, pela continuação do trauma acústico, independentemente do uso de fones.

Conclusões

O estudo estatístico de uma série de audiogramas relativos a uma população de pilotos e ràdio-operadores de vôo das linhas aéreas comerciais brasileiras revela que o ruído das aeronaves se comporta como causa de trauma acústico moderado, mas estatisticamente significante.

As perdas auditivas médias, observadas em relação ao tempo de exposição sonora (número de horas de vôo) são crescentes, porém mantêm-se dentro dos limites da audição socialmente útil. À medida que aumentam as horas de vôo, aumenta a variabilidade da população, em virtude do aparecimento de casos mais acentuados de trauma acústico. Êsse aumento da variabilidade deve decorrer de fatôres individuais de susceptibilidade. Para ouvidos normais a quantidade de trauma observada nas médias não traz prejuízos de natureza social. Os ouvidos particularmente susceptíveis poderiàm ser fàcilmente identificados por meio de testes de exposição sonora experimental que deveriam ser feitos por ocasião da admissão de pessoal para estas funções.

A forma de realização dêste estudo revela a possibilidade da utilização dos mesmos métodos de trabalho usualmente empregados na experimentação científica, em circunstâncias de âmbito clínico.
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SUMÁRIO

Os audiogramas de 284 pilotos e 75 ràdio-operadores de vôo das linhas aéreas comerciais brasileiras foram analizados estatisticamente em categorias correspondentes ao tempo de exposição sonora, ou seja, o número de horas de vôo. O componente de presbiacusia foi subtraído de cada audiograma a partir das curvas de GLORIG e DAVIS. Ficou demonstrado que o ruído das aeronaves se comporta como causa de trauma acústico moderado mas estatisticamente significante. Para ouvidos normais a quantidade de trauma observada nas médias não traz prejuízos de natureza social. Os ouvidos susceptíveis poderiam ser fàcilmente identificados por testes experimentais por ocasião da admissão do pessoal de vôo.

SUMMARY

Audiograms of 284 pilots and 75 flight radio operators of brazilian comercial air lines were statistically analysed according to exposure fine, or flight hours. The presbaycusis component was deducted from each audiogram according to the curves published by GLORIG and DAVIS. It was found that airplane noise is a definite, through moderate, cause of acoustic trauma. For normal ears the amount of trauma found in the means does not account fev any social problems. Susceptible ears could be detected at admission time through experimental noise exposive.


BIBLIOGRAFIA

1) SALEXI, W. - Existe a Surdez Profissional em Aviação? I Jornada Serv. Saúde Aeron., Rio de Janeiro, 1951.
2) MONTEIRO, A. R. C. - Occupational Deafness of Flight Radio Operators. J. Aviation Med. 25: 476, 1954.
3) NEVES PINTO, R. M. - Trauma Sonoro entre o Pessoal de Vôo da Viação Aérea Rio Grandense (VARIG). Rev. Bras. Med., 19: 118, 1954.
4) GLORIG, A., e DAVIS, H. - Age, Noise and Hearing Loss. Annals Otol. Rhinol. Laryngol. 70: 556, 1961.
5) MANGABEIRA-ALBERNAZ, P. L. - Aspectos Clínicos y Experimentales del Trauma Acústico. Revista de Otorrinolaringologia (Chile) 24: 5, 1964.
6) NIXON, J. C., e GLORIO, A. - Noise-induced Permanent Threshold Shift at 2000 cps and 4000 cps. J. Accoust. Soc. Amer. 33: 904, 1961.
7) ELDREDGE, D. H., COVELL, bV. P., e GANNON, R. P. - Acoustic Trauma Following Intermittent Exposure to Tones. Annals Otol. Rhinol. Laryngol. 68: 758, 1959.

(*) Assistente de Clínica Otorrinolaringológica da Escola Paulista de Medicina.
(**) Ex-Otorrinolaringologista da Policlínica da Aeronáutica, S. Paulo.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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