INTRODUÇÃOOs Zigomicetos constituem a única classe dentro de um grande grupo de fungos conhecidos como ficomicetos que têm importância médica. Nesta classe há duas ordens de microorganismos capazes de produzirem doenças em humanos: os Mucolares e os Entomophthorales (1, 2). As infecções causadas por Mucolares em nariz e seios paranasais, de intensa malignidade e muitas vezes fulminantes, são bem conhecidos pela maioria dos otorrinolaringologistas; já as causadas por Entomophthorales são muito menos freqüentes e, por este motivo, mais desconhecidas (1).
Dentre as catorze famílias que compõem essas duas classes de fungos, poucos gêneros são patógenos humanos. Na ordem Mucolares, temos os gêneros Rhizopus, Absidia, Mucor, Cunninghamella, Saksenaea, Rhizomucor e Apophysomyces. Na ordem Entomophthorales, temos os gêneros Basidiobolus e Conidiobolus. As infecções causadas por este conjunto de microorganismos são agrupadas sob o nome genérico de Zigomicoses, descritas como infecções agudas de características clínicas bastante variadas e muito agressivas (3).
O primeiro caso de Zigomicose de que se tem relato remonta a 1855, quando Kurchenmeister descreveu um caso de infecção pelo gênero Mucor, (segundo Espinel-Ingroff e cols.) (3). Já o primeiro caso de Entomophthoramicose foi descrito por Joe et al. em 1956, (segundo Towersey e cols.) (2). Desde então, há relatos de literatura provenientes das Américas, África e Ásia (2). A maioria dos casos ocorre em países situados entre os paralelos 15 ao norte e ao sul, parecendo configurar patologia característica de climas tropicais (4, 5).
Até recentemente, pouco mais de 150 casos de infecções por Entomophthorales haviam sido descritas em humanos. A maioria ocorreu na África Central e Ocidental: alguns poucos casos têm sido também descritos no Brasil, na Colômbia e no Caribe (6, 7, 8).
Os autores apresentam um caso de Zigomicose em paciente previamente sadio, envolvendo tecido subcutâneo da face e seios paranasais, causada por fungo da ordem Entomophthorales.
RELATO DO CASOPaciente PFD, 12 anos de idade, sexo feminino, procedente de Manaus, AM, procurou o Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, com história de há dois meses vir apresentando edema periorbitário esquerdo e na região maxilar esquerda, de forma progressiva, acompanhado de hiperemia, dor local e febre ocasional, além de obstrução nasal ipsilateral. Em sua cidade de origem, foi tratada clinicamente com antibiótico (amoxacilina), antiinflamatórios não hormonais e mucolíticos.
Como não apresentasse melhora, foi substituído o antibiótico por cefaclor, também sem resultado
positivo. A paciente foi então internada e submetida a terapêutica com cefalotina e clorafenicol, além de tratamento cirúrgico do seio etmoidai, com drenagem de secreção sugestivamente purulenta. No pós-operatório, a paciente foi medicada com ceftriaxone associado a amicacina. Como não apresentasse evolução favorável, foi encaminhada ao nosso Serviço.
Ao exame físico de admissão, a paciente apresentava-se hipocorada, com secreção de aspecto purulento em fossa nasal esquerda, ao nível do meato médio, e com adcnomegalia cervical. Apresentava abaulamento doloroso, coalescente, em regiões malar e frontal à esquerda, com edema e hiperemia de conjuntiva palpebral e bulbar. Notava-se fina descamação cutânea sobre a região abaulada, além de discreto desvio da comissura labial para a direita (Fig. 1).
A paciente foi internada com impressão diagnóstica de pan-sinusite com comprometimento dos seios frontal, etmoidal e maxilar esquerdos, sendo prescrita terapêutica com ceftriaxone e metronidazol. A avaliação através de tomografia computadorizada de seios da face mostrava envolvimento das estruturas da hemiface esquerda por tecido que sugeria processo inflamatório atingindo partes moles e seios maxilar e fronto-etmoidal (Figs. 2 e 3).
No sétimo dia de internação, como não apresentasse melhora, foi submetida a nova exploração cirúrgica dos seios. O achado cirúrgico mostrou espessamento mucoso dos seios maxilar e etmoidal, porém sem secreção purulenta, e presença de coágulos no seio frontal. A cultura do material encontrado em seio maxilar foi negativa, enquanto a cultura do coágulo evidenciou crescimento de cocos e bacilos Gram positivos, aneróbicos facultativos (S. viridans) e estritos (bacilos Gram positivos não esporulados).
Figura 1. Abaulamento em regiões malar e frontal à esquerda na paciente no ato da internação.
Figura 2. CT - Sinusite Etmoidal.
Figura 3. CE - Sinusite frontal.
A paciente apresentou febre desde a internação até o segundo dia de pós-operatório. No vigésimo primeiro dia de internação, foram suspensos os antibióticos. Uma semana após, a febre retornou, sendo então introduzida terapêutica com clindamicina.
A discreta melhora clínica da paciente após 38° dia de internação levou à indicação de biópsia de pele da hemiface esquerda, cujo resultado foi inconclusivo, e da mucosa jugal, com diagnóstico compatível com zigomicose de partes moles. No 45° dia de internação, foi iniciada terapêutica anti-fúngica com iodeto de potássio, com redução rápida da leucocitose demonstrada pelo hemograma. A medicação teve que ser substituída no 15° dia, devido a intolerância gástrica, iniciando-se cetoconazol, 200 mg/dia. Houve diminuição do edema facial, tendo a paciente recebido alta hospitalar no 77° dia.
Dois meses após a alta, ainda em uso da medicação, a paciente retornou ao serviço com queixas de dor epigástrica, náuseas e vômitos. Suspeitou-se de toxicidade hepática ou pancreática pela droga, sendo suspensa a mesma. As provas de função hepática, bem como a dosagem da amilasemia, foram normais. Houve piora do edema em hemiface, sendo a paciente internada novamente, iniciando-se itraconazol. Nova tomografia computadorizada revelou quadro compatível com sinusite maxilo-etmoidal à esquerda, associada a lesão óssea de assoalho de órbita esquerda.
Foi adminstrado itraconazol na dose de 250 mg/d 25 dias, em regime hospitalar, após o que foi dada alta, com regressão evidente do abaulamento facial e sem ocorrência de picos febris, mantendo-se tratamento ambulatorial.
Aproximadamente três meses após a alta hospitalar, a paciente voltou a procurar o Serviço, queixando-se de nova piora do quadro clínico, com retorno do edema e hiperemia em hemiface esquerda. Ao exame físico, notava-se edema facial intenso à esquerda, acompanhado de hiperemia e dor. A evidente recorrência do quadro motivou a reinternação da paciente, sendo suspenso o itraconazol e iniciando-se anfotericina B em regime hospitalar a qual só foi suspensa após o uso de 3 025 mg no total, durante 4 meses. Desde então, o paciente está sem lesões na face, com discreta parecia facial periférica esquerda, fazendo uso já 1 ano de iodeto de potásio 50%, 20 g de 8 em 8 horas (Fig. 4).
Figura 4. Regressão dos sinais pós tratamento com Anfoteriana B
DISCUSSÃOOs Mucorales são responsáveis por uma série de padrões clínicos, que podem ser resumidos em: a) Fino-orbitocerebral; b) pulmonar; c) disseminada; d) gastrointestinal; c) cutânea;
f) miscelânia (7). O tipo mais comum é o ripo-orbitocerebral (9). A Mucormicose sistêmica é particularmente grave, devido a seu efeito devastador, com rápido acometimento dos pulmões, dos rins e obstrução dos vasos sangüíneos(6).
Apesar de existirem poucos relatos de mucormicose ocorrendo em indivíduos saudáveis, quase todos os pacientes têm uma doença severa subjacente. Diabetes mellitus é a mais freqüente, mas outros fatores de comprometimento imunológico, como quimioterapia para câncer, terapia imunossupressora para transplante de órgãos e tratamento com corticosteróides para leucemia e linfomas têm aumentado a prevalência da doença na última década.
Os Entomophtorales, por sua vez, normalmente acometem crianças e adultos jovens sadios, produzindo duas condições clínicas distintas de acordo com o gênero implicado. As infecções por Basidiobolus haptosporus manifestaram-se como granulomas subcutâneos de crescimento lento, que podem localizar-se sobre qualquer parte do corpo e são causados por implante do fungo secundário a trauma ou picada de insetos. Conidiobolus coronatus são responsáveis por granulomas submucosos nasais que se espalham nos seios paranasais e através das linhas de suturas ósseas, envolvem os tecidos moles faciais. Sua transmissão ocorre por inalação de esporos ou por trauma digital sobre o nariz. Pode também apresentar-se como pólipo nasal (1).
O diagnóstico se baseia no quadro clínico, exame histológico da região acometida e cultura do material.
As culturas são positivas em apenas 15% dos casos. A semeadura é feita em meio de Agar-Sabouraud, ou em qualquer outro meio fúngico sem ciclohexamide. Os microorganismos são aeróbicos, e na ausência de oxigênio, o crescimento é limitado. A temperatura ideal de crescimento abrange 25 a 55°C (3). A análise histológica mostra algumas diferenças entre Mucorales e Entomophtorales:
a) as hifas de Entomophtorales, ao contrário das de Mucorales, são bem coradas por PAS e mal coradas por HE. Em PAS, as primeiras freqüentemente encontram-se circundadas por um halo de material eosinofílico amorfo, constituindo-se no fenômeno de Splenddore-Hoeppli, o qual provavelmente representa resposta imunológica do hospedeiro e é patognomônica de entomofitoramicose;
b) Entomophtorales possuem geralmente hifas septadas e Mucorales não septadas;
c) a infecção por Mucorales promove invasão e trombose dos vasos.
Sangue, fluido gástrico e "swab" nasal podem dar resultados de cultura negativo.
O diagnóstico sorológico tem sensibilidade de 73% e especificidade de 100%, quando usados antígenos homogêneos, podendo se observar reações cruzadas de Rhizopus, Mucor e Absidia com espécies Morturella.
A detecção e identificação do fungo nos tecidos, fixados com formaldeido é feita através de imunofluorescência (3, 4). Apesar de no caso relatado não termos conseguido isolar o fungo no material enviado para cultura, o mesmo foi diagnosticado histologicamente através da biópsia da mucosa jugal.
Iodeto de potássio tem sido a droga de escolha para tratamento das infecções Entomophtorales (4). Em casos de longa duração, recomenda-se o uso de altas doses da mesma, ou a associação com sulfametoxazol-trimetropim. Cetoconazol também tem sido usado com sucesso no tratamento desta patologia. Anfotericina B é recomendada nos casos que não respondem bem às outras medicações e, devido à sua toxicidade, não deve ser utilizada como droga de primeira escolha (2, 4, 10).
Os Zigomicetos são ainda sensíveis, "in vitro", à nistatina, ciclohexamida, clotrimazol e miconazol, porém a escassez de experiências clínicas não permite fiel avaliação quanto à eficácia destas drogas. São resistentes à glucitosina (1).
Em casos localizados, o debridamento cirúrgico dos tecidos infectados pode ajudar na terapia; oxigênio hiperbárico tem se mostrado útil como método terapêutico coadjuvante nos caos resistentes (1, 5).
O paciente em questão foi inicialmente tratado com iodeto de potássio mas, devido à intolerância gástrica, substituiu-se a droga por cetoconazol e novamente devido a alterações gástricas, esta pelo itraconazol. O recrudescimento das lesões levou-nos finalmente à indicação da terapêutica com anfotericina B.
CONCLUSÃOÉ importante salientar a necessidade de seguimento prolongado para estes pacientes com zigomicose, devido a alguns relatos do caráter altamente recorrente desta patologia, o que é perfeitamente compatível com o caso em observação. Não há descrição sobre método quimioprofilático para prevenir a ocorrência de Zigomicose em pacientes com patologias predisponentes. Deve-se suspeitar desta patologia em paciente com quadro de sepsis e culturas negativas, ou em pacientes diabéticos e imunossuprimidos que desenvolvem sinusite com descarga nasal escurecida ou sinais peri-orbitários. O diagnóstico precoce, associado à terapêutica adequada e ao controle da doença de base, é necessário para o sucesso do tratamento, devendo-se estar sempre atento quando ao efeito devastador das Zygomicoses.
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10. FERRY. A. P.; ABEDI, S. - Diagnosis and Management of Rhino-orbitocerebral mucormycosis. A report of 16 personally observed cases. Ophthalmology 90 (9): 1096-1104, 1983.
* Residente de Otorrinolaringologia do HCFMRP-USP.
** Professor Assistente contratado do HC.
*** Professor Assistente Doutor do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da FMRPUSP.
**** Professores Associados dos Departamentos de Otorrinolaringologia e Dermatologia da FMRPUSP.
***** Professor Titular do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da FMRPUSP.
Trabalho desenvolvido pelas disciplinas de otorrinolaringologiaeDermatologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP.
Endereço para correspondência: Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia - Campus Universitário - Monte Alegre - CEP 14049-900 - Ribeirão Preto - SP - FAX (016) 633-0186.
Artigo recebido em 15 de março de 1996.
Artigo aceito em 15 de abril de 1996.