ISSN 1806-9312  
Sexta, 26 de Abril de 2024
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2253 - Vol. 43 / Edição 2 / Período: Maio - Agosto de 1977
Seção: Relato de Casos Páginas: 113 a 121
ANOMALIAS DO OUVIDO MÉDIO NA SÍNDROME DE TREACHER-COLLINS-FRANCESCHETTI
Autor(es):
José Ottoni Araujo Lima, MD *
Diran O. Mikaelian, MD **
Jefferson Medical ***

Resumo: A síndrome de Treacher-Collins resulta de um defeito de maturação das estruturas derivadas do mesoderma maxilar e do primeiro e segundo arcos branquiais. Os indivíduos afetados apresentam características faciais bastante típicas e graus variáveis de defeito auditivo relacionado com malformações do ouvido externo e médio. Um paciente com surdez bilateral do tipo condutivo é apresentado. As anomalias do ouvido médio e a reconstrução levada a cabo durante exploração cirúrgica serão comentados à luz dos modernos conceitos de embriologia e cirurgia otológica.

INTRODUÇÃO

A síndrome de Treacher Collins-Franceschetti é uma entidade hereditária que segue um padrão irregular de dominância na sua transmissão. (12) Ela consiste de anormalidades faciais tais como: Coloboma palpebral inferior, ausência de cicios na porção medial da pálpebra inferior, uma peculiar inclinação antimongolóide dos olhos, ossos zigomaticos achatados, abóbadas palatinas altas e curtas, e Migrognatia. O aparelho auditivo dos indivíduos sofre variáveis alterações: Malformação da orelha, Atrevia do ouvido externo, Pneumatização anormal do ouvido médio e mastóide, Defeitos múltiplos da cadeia ossicular e anormalidades de curso e posição do nervo facial.

Os primeiros casos foram descritos por Berry e Treacher-Collins (1,19), oftalmologistas ingleses que discutiram as anormalidades oculares, mas falharam em comentar as anormalidades auditivas que deviam estar presentes. Foi Franceschetti (10) quem metade de um século depois, descreveu pormenorizadamente vários outros casos da mesma entidade, denominando-a Disostose mandibulo-facial. Foi este médico Suíço que definiu a síndrome, e pela primeira vez apresentou uma classificação sistemática dos indivíduos de acordo com as diferentes variáveis apresentadas.

Por esta razão, a síndrome é conhecida entre autores europeus por síndrome de Franceschetti, embora na literatura anglo-saxônica, o nome de Treacher-Collins predomine. Um significante número de novos casos foram registrados posteriormente, atestando a relativa freqüência da síndrome. (3,9,12,16).

Os pacientes são definidos como apresentando a aparência de pássaro ou peixe, que é resultante da relativa proeminência do nariz e maxilar sobre uma mandíbula micrognatica. O efeito desta desproporção realmente lembra o bico dos pássaros ou a extremidade cefálicados peixes. Estas características situam ainda mais salientes devido ao achatamento dos ossos malares e ausência dos arcos zigomáticos. Esta falha de desenvolvimento ósseo, com consequente falta de suporte de parede lateral da órbita, explica a inclinação antimongolóide característica dos olhos.

Apesar da curiosa aparência, estes indivíduos não apresentam debilidade mental, e a maioria deles goza de uma existência normal, reproduzindo e desempenhando funç5es regularmente.

O palato é comumente do tipo curto e alto, e pode apresentar defeito de fusão na sua porção muscular em 30% dos casos (5).

As orelhas podem estar totalmente ausentes, localizadas em nível abaixo do normal, ou apresentar apenas mínimas alterações de consumo.

Este conjunto de características faciais é tão típico, que em se vendo um caso, jamais se erra um segundo diagnóstico.

Os defeitos otológicos são vários, e quase invariavelmente se expressam clinicamente por surdez bilateral do tipo condutivo. O meato acústico externo pode ser estreitado ou mesmo atlético, substituído por uma rolha óssea.

O ouvido médio é freqüentemente pequeno, e as células e antro da mastóide podem se encontrar mal desenvolvidos. Os ossículos apresentam diversas combinações de anomalias, em geral provocadas pelo desenvolvimento defeituoso do martelo, bigorna e estribo. (3,9,12,16) São as alterações da cadeia ossicular, na maioria das vezes, que explicam o defeito acústico comum a quase todos os pacientes.

Raramente, anomalias do ouvido interno tem sido descritas em associação com Treacher-Collins. (7,16). E no entanto, impressão destes autores, que a associação é puramente casual, tendo em vista que o desenvolvimento do ouvido médio é tão independente embriológicamente do ouvido interno.

APRESENTAÇÃO DE UM CASO

(L.L.)Mulher negra de 32 anos de idade, foi encaminhada ao serviço de Otorrino do Hospital Universitário Thomas Jefferson, em Filadélfia, para avaliação de surdez bilateral do tipo condutivo desde a infância.

Seu passado médico era de pouca significância, exceto por uma paratireoidectomia executada 2 anos antes. Um adenoma das paratireóides havia sido diagnosticado durante uma crise renal em associação com hipercalcemia.

Esta mulher apresentava as características faciais típicas da síndrome de Treacher-Collins, constituindo o chamado "quadro completo" de acordo com a classificação Franceschetti. ( Fig. lEr2) Notem o coloboma bilateral na junção do terço lateral com os dois terços mediais da pálpebra inferior.

Os cílios são ausentes na metade medial das mesmas pálpebras, contribuindo para a aparência de pseudo ectropion. A inclinação anti-mongoloide dos olhos é mais pronunciada no lado esquerdo, em associação com ossos zigomáticos achatados. 0, palato é curto, mas não há defeito de fusão ou úvula bífida. A mandíbula é micrognática, e um discreto defeito de oclusão é observado.




Fig. 1 Fotografia de frente. A inclinação antimongolóide é marcante, principalmente ne olho esquerdo. Os ossos zigomáticos achatados e as orelhas pequenas são também bastante nítidos.



Fig. 2 Perfil. Note-se a relativa proeminência da maxila, devido ao micrognatismo. A orelha é pequena e faltam-lhe o tubérculo de Darwin e a bifurcação da ante hélix.



As. orelhas apresentam pequenas alterações. 0 tubérculo de Darwin e a bifurcação da antehelix são mal desenvolvidos, conferindo uma aparência plana à parte superior do órgão. 0 ouvido externo é moderadamente estreitado, mas a membrana timpânica está intacta e o cabo do martelo é visível bilateralmente. 0 teste de Rinne é negativo bilateralmente, sugerindo defeito de condução.
0 audiograma confirma os achados clínicos, revelando um gap médio bilateral de 60 decibéis. 0 limiar de recepção da palavra é 65 decibéis nos dois ouvidos, e a discriminação, 88 no ouvido direito e 84 no ouvido esquerdo. (Fig 3) Cortes politomográficos do ouvido médio mostraram pequenos espaços epitimpánicos nos dois ouvidos, e a presença de uma massa ossicular disforme. (Fig. 4) As estruturas do ouvido interno eram normais.



Fig. 3 - Representação gráfica do gap condutivo bilateral.



Fig. 4 Corte politomagráfico do ouvido médio esquerdo, ao nível da coclea. O ático é estreito, e uma massa ossicular disforme é notada.



O Paciente submetido a uma timpanotomia exploradora esquerda, sob anestesia local. Um retalho timpanomeatal posterior foi elevado, e o nervo Corda do Tímpano facilmente identificado. A Bigorna estava totalmente ausente e o martelo não possuía parte do seu corpo, embora o cabo estivesse relativamente normal. (Fig. 5)



Fig. 5 Os achados de Timpanotomia exploradora. Ausência da bigorna e de parte da cabeça do martelo. O estribo e pequeno e sua platina não chega a cobrir a totalidade da janela oval. 0 nervo Facial deiscente é afastado do campo superiormente. 0 tendão Estapediano tem origem diretamente no perineuro do nervo Facial.



Fig. 6 Correção do gap observada após a colocação da prótese do tipo guarda-chuva entre a membrana timpânica e a platina do estribo.



A porção horizontal do nervo Facial estava completamente deiscente, projetando-se no Mesotímpano. A inspeção da Janela Oval só foi possível com cuidadosa elevação da parte deiscente do nervo, e revelou um estribo hipoplastico, cuja platina não oclusa a totalidade da fenestra. 0 tendão Estapediano estava firmemente aderido à porção perineural adjacente do nervo Facial, e curiosamente mostrava-se extremamente excitável, contraindo-se ao mínimo toque ou ruído. 0 processo cocleariforme e o músculo Tensor do Tímpano ocupavam posições anatômicas corretas.

Uma prótese do tipo "Guarda-chuva" para substituição total da cadeia, foi utilizada entre a membrana timpânica e a platina do estribo, promovendo imediato ganho auditivo. O audiograma obtido um mês após a cirurgia revelou significante diminuição do defeito de condução área. (Fig. 6)

DISCUSSÃO

A sucessão dos eventos que ocorrem nas estruturas faciais durante os primeiros meses de vida intrauterina, nos permitem algumas especulações das modificações que têm lugar na síndrome de Treacher-Collins.

As pálpebras, os ossos malares e o palato dificilmente podem ser considerados estruturas branquiais. Black (2) reporta um caso de aplasia do primeiro arco branquial, com severa deformidades das estruturas derivadas deste arco, em que o mesoderma maxilar desenvolveu-se dando origem a pálpebras, maxilar e zigomas relativamente normais.

Classificar Treacher-Collins como síndrome do primeiro ou segundo arcos, é portanto, oferecer explicação para somente uma parte dos caracteres morfológicos da entidade. (13)

Ida Mann em 1943 (11) hipotetizou que as alterações próprias à síndrome resultavam do retardamento do mesoderma maxilar em diferenciar-se. Todavia esta teoria deixa de apresentar explicação para a micrognatia e os distúrbios auditórios da enfermidade. A mandíbula deriva da ossificação domesênquimada porção anterior do primeiro arco. Os ossículos do ouvido médio têm dupla origem, derivando da ponte interbranquial que conecta as extremidades posteriores do primeiro e segundo arcos branquiais. (6,14,17) A orelha e o meato acústico externo têm também dupla origem. (2,14) Parece que o tragus e a porção anterior do meato são derivados do primeiro arco, enquanto que o segundo é responsável pela formação da maior parte da orelha e o resto do ouvido externo.

McKenzie em 1958 formulou a teoria de que a supressão da artéria estapediana (13), que da terceira até a oitava semana de vida intrauterina é a maior fornecedora de sangue para as estruturas branquiais, era responsável pelas anomalias verificadas em Treacher-Collins, que ele chamou de síndrome do primeiro arco, falhando em notar a contribuição do segundo arco para algumas das estruturas anormais.

É nossa impressão que ambos, Mann e McKenzie, tiveram em suas mãos a metade da verdade. Combinando-se as duas teorias, é possível encontrar uma explicação razoável para as anomalias hereditárias da Disostose mandibulo-facial de Treacher-Collins.

Embora o mesodemia maxilar não se relacione com os arcos branquiais em origem,,existe evidência de que o desenvolvimento desta estrutura depende também de tributários da artéria estapediana nas primeiras semanas. (8) A terceira e talvez a segunda porção da artéria maxilar interna derivam do sistema estapediano.)

A mandíbula, a cadeia ossicular e a orelha são estruturas brânquias, e seu desenvolvimentodependedasarteriasbranquiaisquesãoramosdaartériaestapediana. (8) Desta forma, pode-se expiicartôdas asanormalidades da síndrome pela supressão da artéria estapediana. Dela resultam o desenvolvimento defeituoso das estruturas originadas do mesoderma maxilar e dos dois primeiros arcos branquiais. 0 exato momento e severidade da supressão provavelmente variam, explicando a existência deformas completasse incompletas.

Analisando os achados otológicos dêste paciente; observamos que a bigorna não existias que faltava a cabeçaido rnartelo: A cabeça do martelo e o corpo da bigorna são derivados do primeiro arco branquial, enquanto que o processo longo da bigorna e o cabo do martelo derivam do segundo arco. O estribo, que foi encontrado mal formado, é originado do segundo arco exceto na porção mais interna da platina que é originada da cápsula ótica. (14)

Os achados acima mencionados sugerem portanto, deficiência branquial mista no nosso puta.

A significante deiscência do nervo facial e a inexistência do processo piramidal também refletem distúrbios estruturais relacionados ao segundo arco, pois é sugerido que a parede lateral do canal' de Falópio e o processo piramidal, bem como o tendão estapediano derivam deste arco. (4)

Apesar do aparente sucesso na correção do gap condutivo com a prótese, temos que encarar a possibilidade de deterioração de audição a longo prazo, se ocorrer rejeição do material. Experiências prévias com substitutos ossiculares outros, têm sido desalentadoras. (9,10) A nosso favor, no entanto, estão os fatos de que este não é um ouvido cronicamente infectado, e que a prótese utilizada tem baixo índice de rejeição.

Achamos no entanto, que se tivéssemos quando da operação, disponibilidade de uma bigorna homóloga para tentar a transposição da mesma, teríamos provavelmente oferecido ao paciente uma melhor chance de tratamento definitivo. A recente literatura parece sugerir que o uso de ossiculos homólogos em reconstrução de ouvidos médios crônicos, oferece resultados superiores. O ossiculoé invadido por células do recipiente e passa a fazer parte ativa da cadeia transmissora. (18)

Levaremos este fato em consideração, quando o ouvido direito deste paciente for submetido a exploração em futuro próximo.

RESUMO

A disostose mandíbula facial de Treacher-Collins é uma síndrome facial hereditária, provavelmente resultante da supressão fetal do sistema arterial es tapediano. As deformidades envolvem estruturas oriundas do mesoderma maxilar e dos dois primeiros arcos branquiais.

Um caso é apresentado em detalhe, e os achados otológicos e o tratamento aplicado, são discutidos.

SUMARY

The Mandibulo facial dissostosis of Treacher Collins-Franceschetti is a hereditarian facial syndrome, probably resulting from the supression of the Stapedial Artery system during the first weeks of fetal life. The deformities envolve structures derived from the maxillary mesoderm and the first and second branchial archas.

One case is presented, and its tympanotomy findings and treatment are discussed in detail.

BIBLIOGRAFIA

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* Residente-senior de Otorrinolaringologia
** Professor de Otorrinolaringologia
*** College of Thomas Jefferson University - Philadelphia, Penna 19107
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Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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