Resumo: Uma paciente do sexo feminino, branca, de 21 anos, procurou nosso serviço queixando-se de zumbido objetivo contínuo de alta frequência emanando de seu ouvido esquerdo desde a infância. Entretanto, nos últimos dois anos, após ter entrado na universidade, ele tornou-se extremamente incômodo, perturbando-lhe o sono, a concentração nos estudos e agravando seu estado emocional. A paciente negava inibição do zumbido com o sono, medicações, rotação da cabeça ou com suave compressão cervical sobre a veia jugular. Sua audiometria revelou uma discreta disacusia neurossensorial em agudos no ouvido esquerdo, sendo normal no ouvido não acometido. O mascaramento do zumbido foi obtido com um som externo de 8000 Hz a 55 dB SPL. Todos os exames radiológicos estavam normais (tomografia computadorizada de crânio e mastóides, ressonância magnética e angiorressonância), assim como o exame liquórico (pressão inicial e quimiocitólogico). Sem nenhuma outra pista que levasse ao diagnóstico, e dado o forte estresse emocional em que se encontrava a paciente, optamos por realizar uma timpanomastoidectomia exploradora com um pequeno microfone estéril para tentar determinar mais precisamente a real fonte causadora do zumbido. Entretanto, durante o ato anestésico, o zumbido desapareceu completamente. Desse modo, concluímos que a causa do zumbido só poderia ser muscular e optamos pela secção dos tendões de ambos os músculos do ouvido médio. A paciente evoluiu assintomática desde o pós-operatório imediato até a presente época, com 8 meses de acompanhamento. Os autores gostariam de ressaltar a importância da ausculta do canal auditivo externo para se confirmara objetividade do zumbido, uma vez que o paciente pode ser apropriadamente diagnosticado e tratado, obtendo melhora importante na sua qualidade de vida.
Abstract: A 21-year-old white female was referred to us complaining of a high frequency continuous objective tinnitus emanating from her left ear since childhood. For lhe last two years, since she entered the university, it had been tremendously bothersome, disturbing sleep, concentration in study and aggravating emocional conditions. She denied inhibition of tinnitus with sleep, drugs, head rotation and slight pressure over the jugular vein.The audiometry revealed amild high- frequency sensorineural hearing loss and the tinnitus was masked by a 55dB-8KHz external tone. All radiologic evaluation was normal, including cranial and mastoids computed tomography, MRI and MRA, as well as CSF puncture (initial pressure). With no further clues, and because of the tremendous distress caused by the tinnitus, we decided to perform an exploratory tympanomastoidectomy with a small sterile microphone and try to find more accurately the real source of tinnitus, but during the anaesthetic induction, the tinnitus was completely gome. Thus, we realized that the real cause of tinnitus should have been a muscular mioclonus in the middle ear and tenotomy of both tensor tympani and stapedial muscle were performed. The patient recovered thoroughly asymptomatic and she is still doing well after 8 months of follow-up. The authors would like to present this very unusual case and show the important role of the otolaryngologist in auscultating the external auditory cannal to confirm an objective tinnitus, once the patient might have his/her tinnitus appropriately diagnosed and treated, improving the quality of life.
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INTRODUÇÃO
O zumbido pode ser classificado sob várias formas, mas uma das mais utilizadas classificações divide o zumbido em subjetivo ou objetivo. O zumbido subjetivo é a forma mais comum e se traduz por uma atividade espontânea nas vias auditivas percebida como sensação sonora apenas pelo paciente. No zumbido objetivo, tanto o paciente como um outro observador podem ouvir um som que emana do conduto auditivo do paciente ou das regiões adjacentes. Existe, ainda, um tipo mais raro de zumbido que não pode ser encaixado em nenhuma das opções anteriores, manifestando-se por um som ouvido apenas pelo observador, e não percebido pelo próprio paciente (1).
ATKINSON, em 1947, enumerou as possíveis causas de zumbido objetivo como sendo: sopros vasculares, espasmos musculares, sons da nasofaringe e diques da ATM (2). Posteriormente, em 1968, HENTZER subdividiu os sopros vasculares em dois subtipos: tipo A, no qual a angiografia mostraria alguma anormalidade arterial e tipo B, no qual nenhuma alteração seria demonstrada, sendo chamado de zumbido objetivo essencial (3). Em 1973, COLES descreveu alguns tipos de zumbido objetivo e propôs a seguinte classificação para o zumbido objetivo:
- extrínseco: causado pela presença de corpo estranho animado no conduto do paciente
- intrínseco: compreendendo sopros vasculares, mioclonia palatal, sons da nasofaringe e cliques da ATM, sendo que os sons manifestados por essas alterações poderiam ser pulsáteis, cliques musculares ou sons contínuos de alta frequência (4).
A mioclonia dos músculos da orelha média é uma condição rara, na qual geralmente ocorrem contrações anormais e repetitivas dos músculos da caixa timpânica. Frequentemente ocorre de modo unilateral, manifesta-se por cliques rápidos de curta duração e parece ser evocado por determinados sons. Pode estar associado a espasmos hemifaciais ou tremores palpebrais, podendo também ocorrer em situações de ansiedade excessiva. Entretanto, em muitos casos nenhum fator predisponente pode ser encontrado e a etiologia da mioclonia permanece obscura.
Neste estudo, os autores descrevem um raro caso de zumbido objetivo contínuo de alta freqüência causado por mioclonia dos músculos da orelha média e discutem alguns aspectos do diagnóstico e tratamento, atentando para a importância da investigação das características do zumbido.
RELATO DE CASO
Paciente de 21 anos, sexo feminino, branca, estudante universitária, queixava-se da presença de um sorn contínuo de alta frequência em seu ouvido esquerdo desde a infância, de caráter constante e sem ser inibido pelo sono. Sempre pensara que esse zumbido era normal, até que ele foi notado com estranheza pela primeira vez por um colega aos 14 anos de idade. Há dois anos, após entrar na universidade, começou a referir que seu zumbido havia piorado, atrapalhando de modo importante sua concentração nos estudos, provocando distúrbios no sono e alterando significativamente seu equilíbrio emocional. Referia, ainda, discreta hipoacusia no ouvido afetado pelo zumbido, sem plenitude auricular. Há cinco meses iniciara um quadro de tonturas rotatórias que atribuía à forte tensão emocional em que se encontrava devido ao zumbido. Mostrava-se afetada psicologicamente pelo fato de que virara atração, pois todas as pessoas ouviam o som que emanava de seu ouvido. Negava qualquer outro dado relevante em relação à anamnese, interrogatório dos diversos aparelhos, antecedentes pessoais e familiares. Já havia sido avaliada por vários especialistas, apresentando normalidade nos seguintes exames: tomografia computadorizada de crânio e osso temporais, angiorressonância e coleta de líquor (pressão inicial e quimiocitológico).
Ao exame físico otorrinolaringológico podia-se perceber com facilidade a presença de um som contínuo de alta frequência emanando do conduto auditivo externo esquerdo da paciente, som esse que podia ser ouvido a cerca de 10 a 15 cm de distância do pavilhão auditivo. A otoscopía, rinoscopia e oroscopia eram normais. Não foi visualizada a presença de contrações do pálato mole durante a passagem do fibroscópio flexível, afastando a hipótese de mioclonia palatal. Nenhuma massa foi identificada à palpação do pescoço. O zumbido manteve-se inalterado durante as manobras de rotação da cabeça ipsi e contralateralmente ao ouvido afetado, assim como à compressão das veias jugulares internas, dificultando a hipótese de etiologia vascular.
A audiometria tonal mostrou uma disacusia neurossensorial discreta / moderada no ouvido esquerdo, sendo normal à direita. A imitanciometria não revelou alteração de complacência da membrana nem captou movimentos repetidos da mesma.
A acufenometria realizada com fones revelou que o zumbido da paciente apresentava uma intensidade de 55 dB e uma frequência de 8000 Hz, havendo boa confiabilidade de respostas por parte da paciente durante a repetição do mesmo. Não foi possível mascarar o zumbido com nenhum tipo de som apresentado.
As otoemissões espontâneas da paciente estavam presentes em ambos os ouvidos, sendo maiores em freqüência e intensidade no ouvido esquerdo.
Devido à raridade do caso, da escassez de literatura específica e da importante queixa que afetava o comportamento social e psicológico da paciente, bem como da ausência de alterações nos exames realizados, optou-se pelo planejamento de uma timpanomastoidectomia exploradora com uso de pequeno microfone estéril, a tentativa de identificar com maior precisão a fonte geradora do zumbido. A essa altura, a hipótese que parecia mais provável era a de uma pequena malformação arteriovenosa a nível de dura-máter que não tivesse sido identificada nos exames anteriores.
De modo inesperado, a indução anestésica provocou total desaparecimento do zumbido. Esse fato conduziu os autores à hipótese diagnóstico de mioclonia dos músculos do ouvido médio, sendo realizada a secção dos tendões do estapédio e do tensor do tímpano. A cirurgia transcorreu sem intercorrências e a paciente ficou assintomática logo após a mesma, confirmando-se o diagnóstico de mioclonia dos músculos do ouvido médio. Após seis meses de acompanhamento pós-operatório, não houve retorno do zumbido e a paciente deixou de apresentar tonturas rotatórias, referindo grande melhora na sua qualidade de vida após a cirurgia.
DISCUSSÃO
Muitas pessoas já experimentaram a sensação de ter zumbido, o que pode ser fisiológico até certo ponto, principalmente em ambientes silenciosos. Muitas vezes, apesar de extensa avaliação médica, o zumbido permanece sem elucidação diagnóstico. Entretanto, a pequena parte de pacientes que apresenta zumbido na sua forma objetiva é mais propensa à elucidação diagnóstico, conseguindo resultados favoráveis com as terapêuticas disponíveis. Daí a importância fundamental do profissional otorrinolaringologista auscultar o ouvido do paciente para detectar a presença de eventuais sons objetivos. Essa ausculta deve ser feita, de preferência, em sala acusticamente isolada para sensibilizar o exame, de forma que o médico encoste seu ouvido no ouvido do paciente ou que se utilize de aparelhos como o "Toynbee tube" ou um estetoscópio modificado para essa finalidade, conforme descrito por Sismanis (5).
O zumbido associado a contrações anormais do músculo estapédio em pacientes com paralisia facial já foi descrito por vários autores: Watanabe, em 1974, descreveu 8 pacientes com paralisia facial e zumbido subjetivo durante o fechamento dos olhos (6); Marchiando, em 1983, descreveu 2 casos de zumbido por contrações do estapédio em pacientes que não apresentavam paralisia facial, tendo havido melhora após secção do tendão do estapédio (7). A causa dessa mioclonia associada à recuperação da paralisia facial parece estar relacionada a sincinesias durante a regeneração do VII par, produzindo reflexos estapédicos mesmo na ausência de sons de alta intensidade. A mioclonia do estapédio também pode estar associada a espasmos hemifaciais e provavelmente é causada por compressão do nervo facial na fossa posterior, seja por um vaso aberrante ou por algum processo patológico envolvendo a saída do nervo facial, próximo ao sistema nervoso central.
Entretanto, alguns pacientes apresentam mioclonia do estapédio sem nenhum sinal de envolvimento do nervo facial e essa etiologia parece não estar esclarecida ainda. É possível que haja a formação de arcos reflexos altamente sensíveis, como ocorre nas mioclonias de outros músculos do corpo (8). Essa hipótese pode ser corroborada pelo fato de que, em alguns pacientes, essa contração parece ser desencadeada por determinados sons exógenos, terminando-se as contrações assim que o som extingue-se.
Em 1981, Klochoff descreveu a "síndrome do tensor do tímpano", que seria causada por um aumento do tônus muscular com flutuações na imitanciometria e variados sintomas auditivos e vestibulares. A síndrome foi identificada como uma resposta a fortes tensões emocionais e ansiedade, obtendo sucesso terapêutico com técnicas de relaxamento. Porém, em casos de necessidade, o autor admitia a possibilidade de tcnotomia do tensor do tímpano como opção de tratamento (9).
Vários tratamentos clínicos já foram descritos, obtendo-se resultados discutíveis, seja com o uso de relaxantes musculares, sedativos ou anticonvulsivantes. A toxina botulínica já tem um papel estabelecido no tratamento de espasmos hemifaciais e blefaroespasmo, pois age promovendo um bloqueio pré-sináptico da placa motora, evitando a liberação de acetilcolina. Entretanto não foram encontrados relatos de uso de toxina na mioclonia do ouvido médio, porém essa pode vir a ser uma opção futura de tratamento.
De modo geral, a anamnese do paciente com zumbido causado por mioclonia dos músculos da orelha média pode ser sugestiva do diagnóstico, incluindo dados como unilateralidade, presença de sons semelhantes a cliques repetidos ou bater de asas de borboleta, associação com paralisia facial, espasmos hemifaciaias, blefaroespasmo, fortes tensões emocionais ou ansiedade, etc. Entretanto, nossa paciente referia um zumbido contínuo de alta frequência desde a infância, sem nenhum outro precedente, o que não nos fez pensar nessa hipótese. Os relatos da literatura envolvendo zumbidos objetivos contínuos de alta frequência eram sugestivos de origem vascular, apesar da ausência de pulsatilidade, e esse mecanismo foi explicado por Glanville, em seu artigo publicado em 1971 (10). Segundo o autor, as fibras dos vasos podem permanecer em estado prolongado de tensão numa determinada região de fluxo contínuo e gerar um som tonal não pulsátil. Isso ocorreria porque, apesar das paredes dos vasos serem bastante elásticas, essa elasticidade seria limitada pelas estruturas adjacentes, fazendo com que o estado de tensão das fibras se mantivesse num nível contínuo, perdendo, pois, o caráter de pulsatilidade.
Desse modo, nos parece que esse seja o primeiro relato de zumbido objetivo contínuo de alta frequência causado por mioclonia do ouvido médio. O mecanismo responsável pelas contrações em tão alta frequência e por tão longo período, sem sofrer inibição pelo sono ou fadiga muscular não nos parece óbvio. Durante a cirurgia, nenhuma alteração no aspecto dos músculos do ouvido médio nos pareceu relevante, apesar de acharmos que provavelmente haveria uma hiperplasia e/ou hipertrofia das fibras musculares após tantos anos de contrações em alta freqüência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1- HUIZING, E. H.; SPOOR, A. - An Unusual Type of Objective Tinnitus. Arch Otolaryngol. 98: 134-136, 1973. 2- ATKINSON, M. - Tinnitus aurium. Arch. of Otolaryngol. 45: 68-76, 1947. 3- HENTZER, E. - Objective Tinnitus of the Vascular Type. Acta Otolaryngol. 66: 273-281, 1968. 4- COLES, R. R. A.; SNASHALL, S. E. AND STEPHENS, S. D. G. - Some Varieties of Objective Tinnitus. Br J Audiology. 9: 1-6, 1975. 5- SISMANIS, A.; BUTTS, F. M. - A Practical Device for Detection and Recording of Objective Tinnitus. Otolaryngol. Head Neck Surg. 110(4): 459-462, 1994. 6- WATANABE, W. L; KAMAGAMI, H.; TSUDA, T. - Tinnitus due to Abnormal Contraction of Stapedial Muscle. J Otorhinolaryngol. 36: 217-226, 1974. 7- MARCHIANDO, A.; PER-LEE, J. H.; JACKSON, R. T. - Tinnitus due to Idiopathic Stapedial Muscle Spasm. ENT Journal. 62: 8-13, 1983. 8- SWANSON, P. D.; LUTTRELL, C. N.; MAGLADERY, J.W. - Mioclonus: a Report of 67 Cases and Review of the Literarture. Medicine. 41: 339-356,1962. 9- KLOCHOFF, I - Impedance Fluctuation and a "Tensor Tympani" Syndrome. In: Proccedings of the 4th International Symposium on Acoustic Impedance Measurement, Penha and Pizarro eds., Universidade Nova de Lisboa, 1981. 69-76. 10- GLANVILLE, J. D.; COLES, R. R. A.; SULLIVAN, B. M. - A Family with High-Tonal Objective Tinnitus. J LaryngolOtol. 85: 1-10, 1971.
* Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. ** Médica Assistente e Doutoranda do Curso de Pós-Graduação da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. *** Professor Titular da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. **** Professor Associado da Disciplina de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Trabalho realizado na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (serviço do Prof. Aroldo Miniti) - LIM 32.
Endereço para correspondência: R. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 - 6o andar - sala 6002 - CEP 05403-000 - São Paulo - SP - Brasil
Trabalho apresentado na XI Reunião da Sociedade Brasileira de Otologia e II Encontro de Trabalhos Científicos, Belo Horizonte, 1 a 4 de novembro de 1995.
Artigo recebido em 05 de janeiro de 1996. Artigo aceito em 26 de fevereiro de 1996.
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