IntroduçãoO ouvido externo origina-se do primeiro arco branquial: enquanto todo o aparelho branquial está envolvido, no feto humano, na formação da cabeça e pescoço, o primeiro arco relaciona-se, especificamente ,com a face, de sorte que seu desenvolvimento anormal resulta em várias malformações congênitas dos olhos, orelhas, mandíbulas e palato, que, em conjunto, constituem a síndrome do primeiro arco e se manifestam através de duas entidades principais: a disostose mandíbulo-facial associada a anormalidades de orelha média e interna (síndrome de Treacher Collins) e a síndrome de Pierre Robin, caracterizada por hipoplasia de mandíbula, fenda palatina e defeitos de olho e orelha (MOORE, 1984).
Lembrando que mais recentemente foram delineadas as disostoses acrofaciais de Nager e a pós-axial (ambas de ocorrência, em sua maioria, esporádica, embora com relatos de irmandades afetadas, o que leva a interrogar possível natureza autossômica recessiva), EMERY & RIMOIN, 1983, explicitam que "tecnicamente qualquer síndrome com uma orelha malformada pode ser qualificada como "síndrome do arco branquial", ainda que tal termo "possa implicar a constatação errônea de que o envolvimento seja limitado à face, quando, na realidade, anomalias cardíacas, renais e esqueléticas podem ocorrer também".
Pavilhão grosseiro, implantação baixa e apêndice auricular são anomalias aí incluídas e que segundo SMITH, 1976, constituem anomalias menores, i.e., "características morfológicas que carecem de consequências médicas ou inestéticas sérias; o valor de seu reconhecimento, inobstante, é que pode constituir pista valiosa no diagnóstico de um tipo específico de malformação. "De fato, o quadro 1 apresenta sinopse de características semiológicas e diagnósticas de tais agravos, do ponto de vista de suas associações genético-clínicas, relatadas na literatura pertinente.
Epidemiologicamente, i.e., quanto a sua ocorrência e características a nível do coletivo, as informações disponíveis são bastante díspares. O quadro 2, a propósito, ao apresentar valores de sua freqüência encontrados em diferentes populações estudadas, revela que amplas são tais variações. Anteriormente (GONÇALVES E FERRARI, 1982), já se teve oportunidade de discutir que são elas, aparentemente, fruto muito mais de variações metodológicas (como, por exemplo, diferenças em critérios amostrais, em procedimentos de alocação, na adoção de alternativas operacionais, e em faixa etária dos indivíduos investigados) do que de características biológicas populacionais estudadas.
A presente comunicação relata e discute resultados referentes a agravos constitucionais do ouvido externo, obtidos em inquérito exploratório conduzido com a finalidade de conhecer o comportamento de características clínicas e epidemiológicas de malformações congênitas de pré-escolares da rede municipal de ensino de São Paulo (GONÇALVES et al, 1985).
Material e métodosOs referidos agravos do ouvido externo foram averiguados com componente de investigação maior, em que se pesquisou a variabilidade das lesões constitucionais de pré-escolares da cidade de São Paulo, já descrita anteriormente (GONÇALVES et al, 1985).
Em síntese, procedeu-se a inquérito epidemiológico exploratório nas unidades da Secretaria de Educação do Município de São Paulo, averiguando-se, em cada criança amostrada, 103 sinais somatoscópicos malformativos. Os dados foram coletados por equipe médica formada por nove elementos no nível executivo, treinados na semiologia especializada e supervisionados diariamente por um de nós (A.G.).
Para a definição do tamanho amostral, apurou-se que a população alvo, na época, era constituída de 59.986 crianças matriculadas nas pré-escolas da rede municipal de ensino. No entanto, necessitava-se da freqüência esperada dos agravos a serem investigados e isto não se conseguia dispor, nas referências bibliográficas pertinentes, por se tratar de população de pré-escolares e não de recém-nascidos. Frente a tal dificuldade, recorreu-se aos dados relativos a estes, tomando-se, das estimativas de proporções representativas, 3/1000 como uma das mais desfavoráveis. Admitiu-se uma confiança de 90%, como adequada para investigações epidemiológicas desta natureza, em que riscos teratogênicos concretos, como se observaram no conhecido episódio da embriopatia talidomídica, podem não ser detectados se apenas valores maiores foram considerados (KLINGBERG & PARTIER, 1979). Adotando-se, portanto, tais pressupostos, definiu-se amostra de 2.549 crianças, alocadas através de procedimento estratificado proporcional, em que a malha de unidades pré-escolares do município foi agregada em regiões institucionais (Centro, Norte, Sul, Leste e Oeste), já em uso pela administração pública municipal.
A seguir, as informações obtidas foram transferidas para planilhas de codificação, respeitando-se estritamente o sigilo médico envolvido, por um auxiliar de Saúde do Departamento de Assistência Escolar, de acordo com Manual de Instruções para Preenchimento da Planilha de Codificação, sob supervisão e verificação direta de um de nós (A.G.).
A etapa de computação dos dados foi realizada parcialmente no Centro de Processamento de Dados da Faculdade de Medicina de Santo Amaro e parcialmente na retaguarda de processamento eletrônico da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
ResultadosApurou-se um número total de 5.457 agravos em 2.549 crianças, com um número, portanto, de agravos por criança igual a 2,14. Como os agravos constitucionais do ouvido ocorreram 214 vezes, têm-se que aproximadamente uma em cada onze crianças apresentou um deles. A tab. 1 revela a distribuição dos agravos constitucionais averiguados segundo sexo e cor: tais valores, quando comparados com os observados em todas as crianças estudadas, não revelam diferenças estatiscamente significativas (X² = 3,72 e 0,75, respectivamente). As tabelas 2, 3, 4 apresentam as distribuições segundo faixa etária, peso, altura e associação com outros grupos de agravos investigados. Neste sentido, observa-se que os agravos mais freqüentes estudados (pavilhão grosseiro unilateral, bilateral e implantação baixa bilateral) são os que mais associações apresentam; estas, por seu turno, localizam-se menos freqüentemente em pele e tórax, predominando em membros, boca, crânio, abdómen e olhos.
DiscussãoA respeito de estudos de associação genético-clínica de agravos Otológicas é clássico o estudo de KONIGSMARK, 1971, em relação a surdez, sumariado no quadro 3. Como se observa, todas as condições aí apresentadas são hereditárias, mas lesões localizadas na orelha também são verificadas em síndromes de etiologia ambiental. Nesse sentido, lembra FRASER, 1969, o antológico exemplo da ação do vírus da rubella, para o qual, tal sintopia, além da cardíaca e ocular, seriam "loci minoris resistenciae", que alertariam para a investigação de uma "síndrome expandida da rubella", que, significando uma doença generalizada do feto, envolve baixo peso ao nascer e alterações dermatoglificas. A apreciação de tais considerações associadamente a ubiquidade do referido vírus, sobretudo em países do terceiro mundo (onde as más condições de higiene ambiental dos locais onde se fazem avaliações de
pré-natal podem ser fator importante de difusão do vírus, ROSEMBURG, 1985) identifica-se com aspecto relevante a remeter a questão ao âmbito da Saúde Coletiva.
Nesse sentido, ANDRADE & JORGE, 1983, relatam resultado de estudo epidemiológico de apêndices pré-auriculares em 387.636 nativivos de 54 hospitais sul-americanos, sendo detectado um total de 772 ocorrências, mais freqüentemente em meninos e à direita e, quando acompanhado de malformações associadas, bilateral. Nenhuma diferença quanto ao lado afetado foi encontrada em associação com outras malformações, sexo ou reconrência familial.
Igualmente a considerar-se em relação às malformações de ouvido externo, além dos aspectos já mencionados de associação com outros agravos somatoscópicos e de sua distribuição epidemiológica, situa-se seu papel de indicativo diagnóstico no processo de indentificação do retardo mental e variações comportamentais, sejam afetivas, volitivas ou cognitivas.
De fato, MENES, 1983, referindo extensa série de investigações que "acumulam evidências em relação a conexão entre malformações e desenvolvimento mental alterado, resultante em subnormalidade intelectual ou anomalias comportamentais na infância "apresentam resultados obtidos em inquérito em 246 crianças institucionalizadas por retardo mental grave, indicando uma distribuição de freqüência significativamente preferencial: os valores de prevalência de tais agravos mais elevados foram constatados em retardos de origem pré-natal, enquanto os mais inferiores associaram-se com as deficiências de origem ambiental peri ou pós-natal; posto intermediário foi observado no grupo de retardo mental idiopático".
Orelhas foram estruturas, além de cabeça, olho, boca, mãos e pés, incluídas em pesquisa em que se investigou correlação de anomalias congênitas menores e comportamento infantil em diferentes ambientes domésticos (LAVECK et al, 1980): sediado em Seatle, consistiu em estudo longitudinal de crianças primogênitas de coorte de 193 mães; não foram obtidos valores significativos com variáveis cognitivas tanto para o sexo masculino como para o feminino.
SummaryResults obtained in an exploratory survey ear congenital anomalies on prescholar children of municipal school system of São Paulo City are presented and discussed. 103 types of isolated or associated types of malformations were investigated in 2549 children. Low set, rudimentary auricles and preauricular pits and appendages were the most frequent ear congenital anomalies observed. Data are presented on frequencies of such malformations, distributions according to sex, color, age, weight, height and associations with congenital anomalies of different locations. Epidemiological and genetic-clinical aspects are particularly considered.
Referências bibliográficas 1. MOORE, K.L. -Embriologia básica. Rio de Janeiro. Interamericana, 1984.
2. EMERY, A.E.H. & RIMOIN, D.L. -Principies and practice of Medical Genetics. Edierburgh, Churchill Livingstone, 1983.
3. SMITH, D.W. - Recongnible patterns of humman malformations. Philadelphia, Saunders, 1976.
4. GONÇALVES, A. & FERRARI, I. - Relatos epidemiológicos de agravos constitucionais. Medicina 15 (4): 183-198,1982.
5. GONÇALVES, A.; FERRARI, I. & ARMANDO, I. - Variabilidade dos agravos constitucionais em pré-escolares da cidade de São Paulo. Rev. paul. Med 113 (3): 142-149,1985.
6. GONÇALVES, A. & FERRARI. I. - Registro de dados de Genética Clínica em Saúde Pública. Medicina 15 (4): 123-138, 1982 b.
7. KLINGBERG, M.A. & PAPIER, C.M. - Enviromnental teratagens: their significance and epidemiologic methods of detection. Contr. Epidem. Bioestatist (Karger, Basel) 1:1-22,1979.
8. KONIGSMARK, B.W. - Syndromal approaches to the nosology of hereditary deafness. Birth. Defects Orig. Art. Ser 7(4): 2-17, 1971.
9. FRASER, G.R. - Malformation syndromes with eye or ear involvement. Birth Defects Orig. Art. Ser. (5) (2):130-137,1969.
10. ROSEMBURG, C. - Comunicação pessoal, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, 1985.
11. ANDRADE, O.M.N. & JORGE, S.M. -An epidemiologic study of preauricular appendages in newboms. Rev. brasil. Genetic. 6 (4):761-758,1983.
12. MEHES, K. Minor malformations in the neonate. Budapest, Akademiai Kiado, 1983.
13. LAVECK, B., HAMMOND, M.A. & LAVECK, G.D. - Minor congenital anomalies and behavior in different home environments. J. Ped 96 (5): 940-943, 1980.
Endereço para Correspondência:
Prof. Dr. Aguinaldo Gonçalves HIGS 703, Conj. "R", casa 68 70331- Brasília, DF.
(*) Pesquisador - Visitante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e (**) Prof. Titular, de Genética do Departamento de Biologia Animal da Universidade de Brasília.