IntroduçãoO reflexo do músculo do estapédio por estímulo acústico passou a ser estudado após o advento da impedanciometria, fornecendo informações objetivas e mais seguras em relação aos testes audiométricos, no que se refere ao diagnóstico de localização de disfunção coclear e do primeiro neurônio da via auditiva pelos fenômenos de encurtamentoe "fadiga" do reflexo, respectivamente.
A característica patológica chamada "alargamento" do reflexo contralateral consta do aumento do limiar de resposta do reflexo contralateral em relação ao limiar tonal e ao limiar do reflexo ipsilateral. O fenômeno do "alargamento" é visto em disfunções da via auditiva localizada no primeiro e nos neurônios subseqüentes de um reflexo complexo ao nível do tronco do encéfalo. Quando a disfunção está localizada no primeiro rieurônio, o "alargamento" do reflexo está associado ao aumento do limiar tonal, entretanto, em casos de disfunção localizada nos neurônios subseqüentes do tronco do encéfalo, observa-se apenas o "alargamento" do reflexo estapediano.
A impedanciometria, por ser um teste muito difundido e tido como teste de respostas confiáveis na imensa maioria dos casos, é utilizado, geralmente, para localização de patologia periférica. Não encontramos na literatura pertinente alteração do reflexo estapediano condicionado por disfunção de estruturas supratentoriais. O presente trabalho se propõe a estudar os limiares contra e ipsilateral do reflexo estapedíano em pacientes portadores de epilepsia com audição normal e sem evidências clínica ou radiológica de lesão do tronco do encéfalo.
MetodologiaForam avaliados 21 pacientes epilépticos matriculados no Setor de Investigação e Tratamento das Epilepsias do Hospital São Paulo, Escola Paulista de Medicina. Todos os pacientes apresentavam epilepsia parcial, segundo a classificação internacional das epilepsias (COMMISSION ILAE, 1985), com atividade paroxística ao exame eletrencefalográfico (EEG) localizada na região têmporo e/ou parietal, restrita a um hemisfério cerebral, sem difusão ou generalização para o hemisfério contralateral.
A anormalidade paroxística foi detectada em pelo menos 2 traçados intercríticos, com intervalo mínimo de 1 mês.
A casuistica inclui 21 pacientes, 13 do sexo masculino e 8 do sexo feminino, 18 casos na faixa etária de 6 a 16 anos e três na faixa etária de 25 a 37 anos. Todos os pacientes foram submetidos à avaliação radio1ógica e clínica, sendo subdivididos em 2 grupos a dizer:
1. Epilepsia parcial lesional: conceito reservado aos casos com anormalidade evidenciada à tomografia computadorizada de crânio (TCC), incluindo atrofia localizada, áreas de infarto, calcificação e/ou déficit motor lateralizado observado ao exame neurológico (hemiparesia).
2. Epilepsia parcial não lesional: engloba os casos com TCC normal e sem déficit motor ao exame neurológico.
Foi realizado o exame otorrinolaringológico, para afastar de nossa casuística quaisquer alterações de ouvido, nariz e garganta que pudessem repercutir em nossa avaliação. A seguir, todos os pacientes foram submetidos aos seguintes testes audiológicos:
a. Audiometria tonal liminar e teste de discriminação vocal: realizados de acordo com os critérios adotados por MANGABEIRA ALBERNAZ e col. (1981) com a finalidade de excluir perdas auditivas. Utilizamos o audiõmetro marca AMPLAID 300 (calibração ANSI-69) com fones TDH 39 e coxim MX 41.
b. Impedanciometria: Foi realizada a curva timpanométrica e a medida da máxima complacência estática. A pesquisa do limiar do reflexo estapediano foi feita nas freqüências de 500, 1000, 2000 e 4000 Hz para os reflexos contralaterais e nas freqüências de 1000 a 2000 Hz para os reflexos ipsilaterais. Apos a pesquisa do limiar do reflexo, realizamos a pesquisa do "decay" do músculo do estapédio. O impedanciômetro utilizado foi o de marca MADSEN ZO 72.
Para a interpretação dos resultados foram consideradas como "alargamento" do reflexo estapediano as respostas em que o limiar do reflexo contralateral foi maior do que o ipsilateral em 15 dB ou mais, nas freqüências de 1000 e 2000 Hz.
ResultadosOs resultados dos limiares dos reflexos estapedianos estão descritos na Tabela 1. Pudemos observar que em 10 casos (47,6%) os reflexos estapedianos se apresentaram "alargados", na comparação contra e ipsilateral, nos outros 11 caso (52,38%), as respostas estavam presentes e normais. O "decay" do reflexo estava normal em todos os casos.
A partir destes resultados, procuramos observar a distribuição etária dos pacientes que apresentaram alterações do reflexo estapediano e verificamos que, dos 18 na faixa etária de 6 a 16 anos examinados, 8 apresentaram alterações no reflexo e, entre os adultos, verificamos que, dos três casos examinados, 2 pacientes apresentaram estas alterações (Tabela 2).
Procuramos realizar outras comparações, como, por exemplo, o tipo e a duração da epilepsia. Constatamos que em 4 casos de epilepsia parcial primária (Rolândica), 2 casos apresentaram "alargamento" dos reflexos. Em 12 casos de epilepsia parcial idiopática (não lesional), 4 pacientes tiveram os resultados alterados e em 5 casos de epilepsia parcial sintomática (lesional), também observamos alterações em 4 casos (80,0%), ver Tabela 3. Quanto à duração da epilepsia, verificamos que os reflexos apareceram "alargados" nos pacientes com cerca de 6 anos de duração.
Comparamos, a seguir, a localização eletrencefalográfica do foco e a presença de "alargamento" do reflexo estapediano. Como mostra a Tabela 4, o foco na região têmporo e/ou parietal direita apareceu em 11 casos e em 5 destes pacientes houve o "alargamento do reflexo". Em 9 casos que apresentaram o foco na região têmporo-parietal esquerda, 4 pacientes (44,4%) tinham os reflexos "alargados".
Por último, relacionamos o tipo de droga antiepiléptica que estava sendo usada, nos casos de "alargamento do reflexo estapediano". Demonstramos na Tabela 5 que dos 7 pacientes que tomavam o Fenobarbital, 6 casos (85,7%) mostraram o "alargamento" do reflexo. Dos 6 pacientes que tomavam a Carbamazepina, 3 (50,0%) apresentaram os reflexos alterados. Apenas 1 paciente tomava Difenilhidantoína e o exame estava normal. Dos 2 pacientes que estavam tomando o ácido dipropilacético, a resposta estava alterada em apenas 1. Ainda observamos 1 caso que não está sendo medicado em que os reflexos se mostraram "alargados".
ComentáriosOs reflexos do músculo do estapédio em termos anatômicos e fisiológicos envolvem 2 circuitos neuronais: O circuito oligosináptico que tem seu primeiro neurônio situado no núcleo coclear ventral, onde se encaminham impulsos via corpo trapezóide à porção medial do complexo olivar. Esta região fornece fibras aos núcleos do VII par e porção motora do V par craniano, formando, então, um arco-reflexo oligosináptìco composto de 3 a 4 sinapses. O estímulo auditivo contralateral provoca contração do músculo do estapédio bilateralmente devido ao cruzamento de vias no tronco do encéfalo (BRODAL, 1984).
O circuito multisináptico, por sua vez, é pouco estudado na literatura e, ao contrário do primeiro, sofre influência de centros auditivos superiores. Em experimentos com animais, CARMEL & STÀR (1963) observaram a contração do músculo do estapédio por reflexo condicionado por sons intensos mesmo sem a presença do estímulo acústico, o que supõe que este tipo de reflexo pode ser desencadeado por estruturas supratentoriais.
BRODAL (1984) refere que o ar co-reflexo multisináptico, em contraste com os circuitos oligosinápticos, tem latências maiores e é sensivel à anestesia barbitúrica, portanto envolve centros auditivos superiores. A via auditiva descendente, por sua vez, projeta-se para os núcleos do tronco cerebral (núcleo pericentral externo do colículo caudal) e influencia as respostas do circuito o gosináptico (MASSOPUST & ORDY, 1962). O circuito da via audi va descendente para os núcleos pe central externo do colículo caudal a influência destes núcleos ao nível do tronco encefálico inferior possivelmente está envolvida na interação entre os sistemas oligo e multisináptico (MASSOPUST, 1962; AMATO, 1969).
PAGE (1985) observou q crianças com disfunção auditiva central geralmente apresentam um alargamento ou ausência do reflexo contra ou ipsilateral na presença de audição normal, sem precisar o local da lesão.
Fig. 1 - Influência do desbalanço córtico-cortical sobre o tronco encefálico e o possível mecanismo de sua Infúência sobre o reflexo do estapédio.
Não encontramos referências na literatura sobre alterações do reflexo estapediano em pacientes epilépticos. A partir dos nossos achados e utilizando os conhecimentos de neurofisiologia clínica em epilepsia, algumas hipóteses podem ser levantadas para tentarmos elucidar este fato.
Há na epilepsia um desbalanço entre influências inibitórias e facilitadoras ao nível córtico-cortical é por sua vez uma interferência de natureza tanto facilitatória como inibitória ao nível dos circuitos aferentes, veiculados pelo tronco do encéfalo, que chegam ao córtex cerebral. Por exemplo, é descrita em pacientes epilépticos uma maior preferência auditiva em testes de estimulação dicótica no ouvido contralateral à atividade irritativa (KIMURA; 1961; MAZZUCHI, 1985). Estudos esperimentais com modelo "Kindling" e foco em espelho apontam para a influência dos circuitos neuronais superiores nas aferências veiculadas pelo tronco encefálico com mensagem facilitadora no caso de epilepsia não lesional e inibitória na presença de lesão cerebral.
A forma pela qual as vias auditivas corticais influenciam centros do tronco inferior é desconhecida, mas a evidência fisiológica fala a favor de ações de natureza inibitória (MASSOPUST, 1962; AMATO, 1969).
A integridade do reflexo ipsilateral fala a favor da existência de uma via de associação entre os reflexos direito e esquerdo. O "alargamento" do reflexo contralateral em relação ao ipsilateral em pacientes epilépticos pode envolver um "relé sináptico" responsável pela integração entre os impulsos inibitórios e excitatórios para os 2 lados do tronco do encéfalo.
Fig. 2 - Duas hipóteses para a inibição do reflexo contralateral.
Em Resumo:
O "alargamento" do reflexo estapediam é considerado característico de disfunção localizada no tronco do encéfalo (GERGER, 1981). As nossas observações desta alteração em pacientes epilépticos, sem qualquer evidência de disfunção do tronco do encéfalo, mostra que disfunções supratentoriais também são capazes de alterar o reflexo do músculo do esta pédio.
O uso de drogas antiepilépticas não pode ser descartado como responsável pela alteração do reflexo, já que é citado na literatura que barbitúrieos em doses anestésicas podem alterar este reflexo. Em contraposição, ressaltamos que um paciente portador de epilepsia, que não estava fazendo uso de medicação, apresentou também alteração do reflexo, sendo, portanto, este distúrbio neurológico o único achado evidente para a alteração observada.
Em nossos resultados, duas circunstâncias sugerem maior relação com o "alargamento" do reflexo; a presença de lesão cerebral e o maior tempo de epilepsia.
SUMMARYThe authors evaluated epilepsic patients whithout any evidente of the brainstem disorders. It was observed abnormal elevated acoustic reflex, in the crossed condition, in 47,6% ofthe cases.
Discussions about the possible mecanism that could explain this alteration and the importante of those findings to the clinical diagnostic were also described.
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* Mestre em Fonoaudiologia pela Escola Paulista de Medicina
** Pós-graduando em Neurologia Clínica da Escola Paulista de Medicina
*** Prof. Titular da Otorrinolaringologia da Faculdade de Jundiaí.
**** Prof. Adjunto Doutor e Chefe do Setor de Investigação e Tratamento das Epilepsias da Escola Paulista de Medicina
Trabalho realizado em Serviço Privado -Rua Prof. Artur Ramos 96 cep 71- CEP 01454 - tel. 813-9122 -São Paulo - SP - Brasil