INTRODUÇÃOA comunicação oral distingue o homem dos outros seres viventes e é obtida por meio de uma corrente de aquisições, cujo elo mais importante é a audição. É através do sentido da audição que o ser humano adquire linguagem e se comunica com seus semelhantes.
A surdez, definida como a perda ou diminuição considerável do sentido da audição, é o principal distúrbio da comunicação, concorrendo com 60% dos casos. A surdez é um complexo infortúnio, pois representa a perda do estímulo mais vital: o som da voz humana, que veicula a linguagem, agita os pensamentos e nos mantém na companhia intelectual do homem. (2)
A audição é tão importante para a educação normal e o desenvolvimento global da criança que sua falta pode ser devastadora. Ela é necessária para a aquisição da linguagem e da fala, para o reconhecimento dos sons, identificação dos objetos e eventos e a interiorização de conceitos. Possibilita ao homem abstrair-se: viajar no pensamento. (3)
Através da imitação de modelos, pessoas que rodeiam as crianças, palavras e sentenças são formadas, idéias e sentimentos expressados.
IDENTIFICAÇÃO DO GRUPO DE RISCO PARA AS DEFICIÊNCIAS AUDITIVAS (D.A.)
A deficiência auditiva durante a infância sempre resulta em "déficits" na recepção e expressão da linguagem, o que se torna comprometedor no desempenho das funções cognitivas, emocionais, sociais e comunicativas da criança. Nos últimos anos, tem havido crescente interesse na identificação e educação precoce dos deficientes auditivas.
Figura 1 - Protocolo de Identificação das Deficiencias Auditivas
FATORES DE RISCO PARA AS DEFICIÊNCIAS AUDITIVAS1.História familiar de D.A. infantil
2.Infecções Congênitas (rubéola, sífilis, toxoplasmose, cito megalovirus, herpes)
3.Anomalias craniofaciais ou Síndromes congênitas
4.Peso de nascimento < 1500g
5.Hiperbilirrubinemia >20mg/100m1 soro
6.Medicação ototóxica por mais de 5 dias (eg, Aminoglicosídeos, diuréticos)
7.Meningite bacteriana / Encefalite viral
8.Sofrimento neonatal (Apgar aos 5 minutos de 0-3, ausência de respiração espontânea em 10 minutos e hipotonia persistente por 2 horas)
9.Ventilação mecânica por mais de 10 dias
l0.Septicemia neonatal grave
Figura 2.
Em 1990, The Joint Commitee on Infant Hearing, junta composta por organizações norte-americanas (American Speech Language Hearing Association - ASHA; American Academy of Otolaryngology; American Academy of Pediatrics) preocupadas em priorizar a nível nacional uma responsável abordagem do deficiente auditivo, propôs o desenvolvimento de um programa de triagem em recém nascidos, que consistia na seleção de um protocolo de identificação precoce (Fig. 1) e na definição de fatores de risco para as deficiências auditivas(D.A.) (Fig. 2), que motivariam cuidadosa avaliação audiológica.(4)
Em se tratando de crianças maiores (29 dias a 2 anos), o comitê americano propunha a observação de outros critérios de risco, além daqueles mencionados na Fig. 2, que serão importantes na identificação das D.A.:
1. Suspeita de alterações no comportamento auditivo da criança: não responde aos estímulos sonoros;
2. Atraso no desenvolvimento da fala e linguagem: crianças que não articulam quaisquer palavras com significado de comunicação até o final do segundo ano de vida;
3. Traumatismo crânio-encefálico com fraturas dos ossos temporais; longa exposição a ruídos;
4. Doenças neurodegenerativas (por ex. Leukodistrofias);
5. Otite Média Aguda de repetição; Otite Média Serosa persistente.
Após minuciosa análise da literatura sobre audição na infância, incluindo resultados de estudos retrospectivos, e da observação de expressivos dados estatísticos da ASHA (Fig. 3), o comitê americano concluiu que todos os recémnascidos(RN) do grupo de risco, ou seja, aqueles com pelo menos um fator de risco para as D.A., deveriam ser submetidos à triagem audiológica através do BERA (audiometria de respostas evocadas de tronco cerebral).
CASUÍSTICA DA FUNDAÇÃO PAPARELLA
Na nossa experiência, na investigação objetiva (ECoG e BERA) dos limiares auditivos de 1497 crianças, constatouse média de idade de identificação de 3 a 4 anos e somente 7% destes pacientes foram examinados ainda no primeiro ano de vida. A maioria desses pacientes nos foi encaminhada com alto índice de suspeita de deficiência auditiva.
Esses pacientes foram submetidos à ECoG e BERA na clínica (sob sedação quando necessário), utilizando-se equipamento de registro de potenciais evocados (Multisensory System Amplaid MK-10) e, mais recentemente, a nível de triagem audiológica em berçários, um modelo portátil (GSI 55 ABR Screener). Os eletrodos de superfície são aplicados sobre a pele na linha de implantação do cabelo e nos lóbulos das orelhas.
Os estímulos sonoros utilizados são sinais acústicos ("clicks") de curta duração e banda larga, que próximo aos limiares contém energia capaz de estimular a cóclea na faixa de freqüência da fala humana (2.0 a 4.0 KHz) (5,6).
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Diversas patologias foram responsáveis pelas deficiências auditivas infantis (Gráfico 1), sendo a maioria passível de detecção já no berçário (grupos de risco - Fig. 2), o que reforça a necessidade de avaliação audiológica objetiva precoce, seguindo o protocolo de identificação das deficiências auditivas (Fig. 1) .
DISCUSSÃODentre os métodos de audiometria de respostas elétricas, o registro dos potenciais evocados auditivos (ECoG e BERA) é considerado pela maioria dos autores o de melhor escolha para a avaliação da acuidade auditiva em crianças (7,8,9). Trata-se de método prático e objetivo na investigação audiológica de RN ou qualquer criança não cooperativa, incapaz de ser submetida à audiometria convencional. Os potenciais evocados auditivos proporcionam estimativa válida e irei sobre asensibilidade auditiva destes pequenos pacientes.
DADOS ESTATÍSTICOS (ASHA) 60% dos casos dos distúrbios da comunicação são representados pelas deficiências auditivas
1 em 1000 crianças nasce surda
2% das crianças em idade escolar são portadoras de D.A. que exigiriam o uso de aparelhos de amplificação sonora
10 a 15% das crianças em idade escolar são portadoras de D.A. leves e flutuantes
7 a 12 % de todos recém-nascidos tem pelo menos 1 fator de risco para D.A.
2,5 a 5% dos recém-nascidos do grupo de risco são portadores de D.A., moderada ou severa
50 a 75% das D.A. são passíveis de serem diagnosticadas no berçário através da triagem audiológica (BERA)
Figura 3
Característica marcante do protocolo proposto pelo comitê americano (1990) é a realização da triagem audiológica através do BERA previamente à alta hospitalar, assegurando acesso a todos os RN do grupo de risco para as D.A..
Seriam considerados positivos para as D.A. aqueles RN que não apresentassem respostas evocadas por estímulos "clicks" de imensidades maiores que 40 dBnHL em um dos ouvidos (10). Estas crianças seriam reavaliadas (EcoG, BERA, testes comportamentais aos seis meses, impedanciometria) e encaminhadas aos serviços de intervenção precoce para adequada orientação familiar e programas de habilitação para o bebê deficiente auditivo.
Qualquer grau de privação do sentido da audição na infância poderá acarretar sérios prejuízos na aquisição da fala e da linguagem, afetando sobremaneira o aprendizado e o desenvolvimento social e emocional da criança. Além do mais, habilidade reduzida para ouvir na juventude compromete adversamente o potencial vocacional e econômico da pessoa.
Apesar destas graves conseqüências a média de idade de identificação das D.A: está em torno dos 3 anos nos Estados Unidos da América do Norte (E.U.A.), longe do período crítico para o desenvolvimento da fala e linguagem (11).
O ideal seria o diagnóstico das D.A. no berçário ou no mais tardar aos 6 meses de idade, quando após o irrestrito consentimento dos pais seria deflagrado serviço de intervenção precoce, que nos E.U.A. é regulamentado por lei pública (P.L: 99-457 - USA). Este serviço consistiria na formação de grupo de apoio aos familiares, avaliação da criança por equipe multidisciplinar (otologistas, neuropediatras, fonoaudiólogos, psicólogos, foniatras), adaptação de aparelhos de amplificação sonora, monitorização do "status" audiológico e o desenvolvimento das habilidades auditivas da criança.
Infelizmente, o que se observa via de regra é a conduta expectante de médicos, familiares e educadores frente a alterações do comportamento auditivo e a atrasos na aquisição da linguagem das crianças; atribuindo-se tais fatos a inúmeras razões e postergando a investigação da acuidade auditiva destes pacientes.
A abordagem precoce dos pais nos possibilita lidar logo cedo com a angústia familiar de possuir um filho deficiente auditivo. Em geral, os pais procuram dissimular frente aos circunstantes a deficiência do filho, propiciando assim o desenvolvimento de atitude anti-social que certamente mais tarde levará a criança a afastar-se do convívio das pessoas normouvintes. Deste modo, cria-se um círculo vicioso, no qual o deficiente revida o ultraje, tornando-se intratável.
Quando a ansiedade familiar é dissipada e a criança logo cedo inserida no meio social, não haverá marcas na sua personalidade e teremos a oportunidade de nos deparar com dóceis criaturas.
CONSIDERAÇÕES FINAISA detecção e a tratamento precoces das perdas auditivas vêm-se tornando, nos últimos anos, aspecto de grande importância na prática pediátrica.
Principalmente por tratar-se de privação sensorial, o diagnóstico precoce da surdez infantil é arma imprescindível para a sucesso terapêutico. Além disso, avanços nos métodos de detecção tem propiciada aos especialistas (otologistas, fonoaudiólogos) diagnóstico precoce e objetivo da surdez infantil, não havendo necessidade da colaboração da criança, que às vezes é submetida ao BERA sob sedação.
Gráfico 1: Número de Casos X Patologia: Total de casos = 1497
A identificação do grupo de risco para as D.A. no berçário ou no mais tardar aos 6 meses, a avaliação audiológica através do BERA e a deflagração do serviço de intervenção precoce seria o ideal, muito embora ainda passassem despercebidas as D.A. por obra da "loteria genética", infecções congênitas subclínicas etc...
O esquema proposto pelo comitê americano de 1990, regulamentado por lei pública, constitui-se crivo considerável para as D.A..
Obviamente, temos nossas prioridades sociais o que tampouco nos impede pensar na questão das D.A. Podemos avaliar a resposta aos estímulos sonoros de uma criança utilizando-se um computador mediador de sinais (potenciais evocados), ou através de simples observação comportamental ou pesquisando o reflexo cócleo-palpebral, batendo palmas atrás do pequeno paciente.
O que precisamos é pensar na possibilidade das D.A., seja no período neonatal, frente a presença de fator de risco ou, mais tardiamente, quando nos deparamos com crianças desatenciosas, com mau desempenho escolar, portadoras de dislalias e atrasos na aquisição da linguagem verbal ou com comportamento auditivo suspeito(por exemplo assistir televisão com volume alto).
Após quinze anos de experiência no diagnóstico e tratamento precoces das deficiências auditivas infantis, propomos algumas razões para o diagnóstico das D.A. antes dos seis meses de idade:
1. Até a criança chegar ao maternal, quando se intensifica o convívio social, os pais tiveram tempo suficiente para dissipar a ansiedade de possuir um filho deficiente auditivo;
2. A criança não revida o ultraje(rejeição) e não desenvolve atitudes anti-sociais;
3. O processo de adaptação do aparelho de amplificação sonora é muito mais tranqüilo; observa-se melhor aceitação da prótese por parte da criança12;
4. A estimulação auditiva precoce mantém a integridade neurotisiológica das vias auditivas periféricas e centrais, não havendo degeneração pelo desuso13;
5. A criança será submetida precocemente à estimulação diferenciada pelos familiares, psicólogos e fonoaudiólogos durante o período crítico para o desenvolvimento da linguagem;
6. A criança tem oportunidades para desenvolver suas habilidades comunicativas e freqüentar escolas de normouvintes.
Somando-se a capacidade de adaptação do ser humano à intervenção precoce da privação sensorial, teremos condições ideais para o desenvolvimento social, educacional e vocacional da criança deficiente auditiva.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos nossa secretária, Srta. Lúcia Maria Peixoto, por sua inestimável colaboração na preparação desse artigo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. American Speech-Language-Hearing Association Committee on Infant Hearing: Guidelines for Audiologic Screening of Newborn Infants who are at risk for hearing Impairment. ASHA, 31(3): 89-92, 1989.
2. LAZMAR, A.; CRUZ, A. C.; NAVÉGA, R. A. B. - Temas de Audiologia, Pfizer S. A., Vol I, pág. 3, 1983.
3. YELLIN, M. W. - Hearing Measurements in Children. In PAPARELLA, M. M.; SHUMRICK, D. A.; GLUCKMAN, J. L.; MEYERHOFF, W. L. ed. Otolaryngology, Terceira Edição, Saunders, 951-959, 1991.
4. Jdint Committee on Infant Hearing 1990: Position Statement. Audiology Today, 3(4): 14-17, 1991.
S. COATS, A. C.; MARTIN, J. L. - Human auditory nerve action potencials and brainstem evoked potentials. Arch Otolaryngol, 103: 605-622, 1977.
6. HYDE, R. G.; RIKO, K.; MALIZIA, K. - Audiometric accuracy of the click ABR in infant for hearing loss. 1. AM Acad Audiol., 1: 59-66, 1990.
7. DIEDENDORF, A. O.; RENSHAW, J. J.; COX, J. B.; TEITZ, P. S. - Infant Hearing Impairment. ENT Journal, 71(10): 503-307, 1992.
8. DAVIS, H. - Brainstem and other responses in electric response audiometry. Ann Oto, 85: 3-14, 1976.
9. KLEIN, A. J. - Properties of the Brainstem response slow-wave components. I. Latency, amplitude and threshold sensitivity. Arch Otolaryngol, 109: 6-12, 1983.
10. TURNER, R. G. - Recommended guidelines for infant hearing screening: Analisys. ASHA, September. 57-62, 1990.
11. NIH Consensus Development Conference: Early identification of hearing impairment in infant and young children. March, 1993.
12. MATKIN, N. D. - Hearing aids for children. In HOGSON, W. R.: Hearing aid assessement and use in audiologic habilitation. Terceira edição 1986, William & Wilkins, 170-190.
13. WEBSTER, D.; WEBSTER, M. - Neonatal sound deprivation effects on brainstem auditory nuclei. Arch Otolaryngol., 103: 392-396, 1976.
* Ex-Fellow do Departamento de Otorrinolaringologia, Universidade de Minnesota.
** Ex-Research Fellow, International Hearing Foundation, Minneapolis, Minnesota.
*** Médico da Fundação Paparella de Otorrinolaringologia, Hospital Santa Lydia, Ribeirão Preto, S.P.
Endereço para correspondência: Dr. Luiz Carlos A. Sousa - Clinica Paparella -Rua Bernardino de Campos, 1503 - CEP 14015-130 - Ribeirão Preto, SP - Fone (016) 634-4740 - FAX: 634-4916.
Este trabalho foi realizado no Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Santa Lydia, com o patrocínio da Fundação Paparella de Otorrinolaringologia, Ribeirão Preto, SP.
Artigo recebido em 17 de julho de 1995.
Artigo aceito em 02 de agosto de 1995.