Eis uma questão da mais evidente atualidade. Sempre se disse e escreveu traqueotomia, mas, nos últimos tempos, ouvimos dizer e lemos traqueostomia. Há, em verdade, êrro no têrmo traqueotomia? Há, ainda, motivos ponderáveis, justos, para que, em seu lugar, se passe a dizer e escrever traqueostomia?
A verdade é que o têrmo médico sempre foi traqueotomia. Sempre, não digo bem. A operação já era mencionada nos tempos de HIPÓCRATES, mas, segundo o declararam as autoridades de GALENO e de ARETEU, o primeiro a praticá-la foi ASCLEPÍADES, de Prusa (Bitínia), no ano 124 de nossa era. E é feito sabido que a primeira intervenção dêsse tipo, coroada de êxito, isto é sem ser seguida da morte do paciente, é atribuida ao médico italiano ANTÔNIO BRASSÁVOLA, que a realizou em 1546. Quem se interessar pela história minuciosa da traqueotomia, leia o trabalho de ROBERT E. PRIEST, dado à estampa nos Annals of Otology etc. v. 61, dezembro de 1952, p. 1038-1045.
A operação era, entretanto, denominada bronchotomia (broncotomia). Quem sugeriu a substituição dêste nome pelo de tracheotomia (traqueotomia) foi o afamado cirurgião germânico LORENZ HEISTER (1683-1758) e o "Lexicon medicum graeco-latinum" de Castelli, na edição refeita por BRUNO, de 1746, já registra o têrmo.
É, portanto, do século XVIII em diante, que a operação vem a receber o nome que só se tornou vulgar após os trabalhos magistrais de BRETONNEAU e de TROUSSEAU, relativos à difteria.
É de data recente o aparecimento da palavra traqueostomia.
A citação mais afastada que me foi dado encontrar do neologismo, cabe a MATIS (de Kaunas, Lituânia) em seu artigo "Plastic by tracheostomy", publicado na revista americana "The Laryngoscope, v. 51, de junho de 1941". Neste artigo, quer por falha da revisão, quer por qualquer outro motivo, ora se lê tracheostomy, ora tracheotomy.
No mencionado periódico, no v. 67, de 1957 (Outubro), NEGUS, de Londres, em artigo intitulado "Tracheostomy", declara no subtitulo "definição":
O têrmo prèviamente adotado traqueotomia significa incisão ou abertura da traquéia para exame, retirada de corpo estranho, inserção de agulhas de radium, ou para exérese de simples proliferação, após o que a traquéia é fechada.
Fazer uma janela na traquéia para a inserção temporária ou permanente de uma cânula é a operação de traqueostomia, justamente porque palavras semelhantes são empregadas em outras regiões de referência a gastrostomia, colostomia, jejunostomia. A distinção talvez seja subtil, mas digna de descrição acurada.
Nas revistas de língua inglêsa é que o têrmo tracheostomy (traqueostomia) vem sendo empregado. Não me recordo de o ter encontrado nem em livros, nem em periódicos franceses, alemães, italianos, espanhóis, etc.
Segundo recentes informações de um colega que esteve por anos na Clínica Otorrinolaringológica de Washington University, em São Luiz (E.U.A.), é evidente o esfórço que lá se faz por substituir o têrmo tracheotomy por tracheostomy.
Entre nós, de S. Paulo, o movimento tem por sede o Hospital das Clínicas, e já tenho ouvido a palavra empregada no Hospital S. Paulo (é sabidamente o hospital das clínicas da Escola Paulista de Medicina), não porém no meu serviço.
Cabe aqui uma pequena explicação terminológica, embora o fato seja de conhecimento geral. Os têrmos médicos terminados em tomia designam corte, secção, incisão, laparotomia, flebotomia, etc. A desinência tomia do grego tomé, corte, incisão. Designa igualmente, de acôrdo com o idioma de origem, corte com ablação polipotomia, por exemplo.
Os têrmos médicos terminados em stomia referem-se a criação ou formação de uma bôca: gastrotomia, jejunostomia, etc. A desinência stomia origina-se de grego stoma (geri. stomatos), cujo significado principal é a bôca, e, por analogia, qualquer abertura que se lhe possa comparar.
Em linguagem médica, os têrmos em stomia designam até hoje a formação de uma bôca artificial, formação que é evidentemente cirúrgica e que obedece a determinada técnica. Assim, se fizermos uma punção do abdome em caso de ascite, não estamos fazendo uma estomia; se puncionarmos ou mesmo abrimos a bexiga, não estamos fazendo uma estorcia. Pelo menos, a cirurgia não adimte tal terminologia nesses casos. Em qualquer tratado de técnica cirúrgica, encontraremos nefrotomia e nefrostomia, cistotomia e cistostomia etc., o que demonstra claramente que a terminologia médica distingue bem os dois métodos cirúrgicos.
Quando se incisa a traquéia pelo método clássico (incisão vertical simples) ou pelo atual, de Chevalier Jackson (incisão horizontal seguida de ressecção de parte de parede anterior do tubo), faz-se de fato, como na gastrostomia, na jejunostomia, uma bôca? É claro que não.
Duas intervenções são feitas na traquéia, nesse particular. Em uma, incisa-se o dueto, com ou sem ressecção da parede, e introduz-se um tubo metálico para assegurar a respiração. Em outra, secciona-se o tubo, adaptam-se os lábios da secção inferior à pele, e pratica-se uma sutura completa. Desta sorte, só neste caso, foi feita na realidade uma bôca tal como nos casos de gastrostomia, de colostomia, da sigmoidostomía, etc. Em sendo assim, nas laringectomias o que de fato se faz, na fase final, é uma traqueostomia.
No primeiro caso, não. A traquéia foi aberta, mas não foi suturada. Pode ser aberta para aspiração - tão comum em certos casos de emergência, para garantir a respiração, no tétano, na paralisia infantil, etc, para exploração cirúrgica, para realizar operações na hipofaringe e na estomatofaringe, etc. Se a cânula é retirada dez minutos ou dez dias ou dois meses depois, tem-se o direito, como quer NEGUS e tentam admití-lo os americanos de dizer que foi feita uma estomia?
A meu ver, não. A traquéia foi aberta e na abertura inserido um tubo metálico apropriado, a cânula. Cirùrgicamente, não foi feita uma bôca. O que foi feito, foi uma abertura, uma incisão, cujo fechamento se impede, por certo tempo, por meio de um aparelho adequado. Para haver uma traqueostomia, no sentido cirúrgico do têrmo, ter-se-ia de tomar dos lábios da incisão, fazer uma ressecção da parede anterior e suturá-la convenientemente à pele. Aí sim, havia sido feita uma estomia.
Tem a intervenção que se pratica freqüentemente qualquer relação com êste modo de operar? Evidentemente não. Nada há, pois, que justifique usar traqueostomia por traqueotomia. A operação corrente e freqüente, que fazemos para resolver problemas respiratórios de qualquer espécie, fique o dueto aberto um minuto, uma hora, um dia, um mês, é sempre traqueotomia (sem s). A que fixa em definitivo a traquéia à pele por meio de sutura tal como em certos setores do organismo, esta sim, é traqueostomia com s).
A abertura criada chamam os médicos gastrotôma, traqueostôma, etc. A pronúncia exata não pode ser esta. Devemos dizer gastróstoma, traqueóstoma (cf. ancilóstomo, que termina em o porque vem do latim ancylostomum). Traqueóstoma pode ser masculino ou feminino, pois que stoma em grego é do gênero neutro. Assim: o traqueóstoma ou a traqueóstoma.
Em conclusão: traqueotomia é uma coisa, traqueostomia, outra. A operação corrente, que consiste em abrir a traquéia é traqueotomia. Traqueótomo só pode ser um aparelho que permita, por si só, efetuar a traqueotomia (cf. o de BUTLIN-POIRIER).
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