ISSN 1806-9312  
Segunda, 29 de Abril de 2024
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2085 - Vol. 61 / Edição 4 / Período: Julho - Agosto de 1995
Seção: Artigos Originais Páginas: 274 a 280
OTITE MÉDIA CRÔNICA SECRETORA: BACTERIOLOGIA NEGATIVA.
Autor(es):
Moacyr Saffer*,
José Faibes Lubianca Neto**,
Otávio B. Piltcher***,
Victor F. Petrillo****.

Palavras-chave: Otite média com derrame, bactérias

Keywords: Chronic secretory with effusion, bacteria

Resumo: Existem discordâncias sobre o papel das bactérias na gênese e na perpetuação da otite média crônica secretora (OMCS). Grandes séries de outros países reportam até 40% de culturas do ouvido médio com crescimento bacteriano. No presente trabalho, foram colhidos materiais de 94 ouvidos de crianças com diagnóstico clínico e timpanométrico de OMCS, os quais foram enviados para estudo bacteriológico. Em apenas 1 ouvido ocorreu o crescimento de Staphylococcus epidermidis, considerado contaminação. Não houve recuperação de bactérias em nenhum outro ouvido estudado. Discutem-se as possíveis causas que podem explicara discordância desses resultados rom a literatura internacional.

Abstract: There are disagreements about the bacterial role in the genesis and maintenance of chronic secretory otitis media (CSOM). Large foreign series report even 40% of positive middle ear cultures. In this investigation, samples of 94 children's ears with clinical and tympanometric diagnose of CSOM were send to bacteriological study. There was just one positive culture among all. It had grown Staphylococcus epidermidis, considered contamination. The possible causes of this disagreement with the literature were discussed.

INTRODUÇÃO

A otite média crônica secretora (OMCS) é doença comum na infância, tendo seu pico de incidência entre 2 e 4 anos de idade. Após os 6 a 7 anos, ocorre declínio significativo1. Define-se a doença como a presença crônica de secreção inflamatória no ouvido médio, sem outra sintomatologia que não a hipoacusia2. A etiologia do processo não está ainda definida. Existem, no entanto, várias teorias tentando explicá-la.

O "contínuo da otite média" atualmente é uma das teorias mais estudadas3. O real papel das bactérias nesse contexto é foco de discordâncias, embora haja evidências bacteriológicas e imunológicas da sua participação na gênese e na manutenção do processo4. Estudos encontram bactérias patogênicas viáveis em 20 a 40% das culturas do ouvido médio em casos de "otite média secretora"5. Essa porcentagem aumenta se considerarmos a presença de fragmentos bacterianos ou bactérias não viáveis6. Para alguns autores, esses achados definem o quadro como secundário à presença de infecção, levando-os a defender o uso rotineiro de antibióticos nessa condição7.

Todavia, evidências recentes demonstram que o uso de antibióticos não altera a história natural da doença8, 9. Uma explicação para esse aparente paradoxo seria a de que tais estudos utilizam pacientes em diferentes estágios do "contínuo", incluindo em suas amostras pacientes em processos subagudos ou de regudização10.



TABELA I - Características dos 47 casos estudados.



Figura 2. Tempo de acompanhamento antes da cirurgia.



O objetivo desse trabalho é descrever a bacteriologia da secreção do ouvido médio em pacientes brasileiros com otite média crônica secretora.

MATERIAL E MÉTODOS

Foi realizado um estudo transversal para descrição dos resultados microbiológicos obtidos através de miringotomia em 94 ouvidos de crianças entre 2 e 6 anos de idade, no período de setembro de 1991 a outubro de 1993. Todos os pacientes estavam em acompanhamento clínico pelo primeiro autor por no mínimo 45 dias antes da miringotomia, com o diagnóstico otomicroscópico (retração, alteração da translucidez, variação de cor e vasculatura radial aumentada da membrana timpânica) e tini pano métrico (curva tipo B de Jerger) de OMCS. O tempo real de doença foi maior do que o aqui estimado, pois a maioria das crianças vinha sendo acompanhada por pediatras antes do seu encaminhamento. Nesse trabalho, o tempo de doença considerado foi aquele compreendido entre a data do diagnóstico do otorrinolaringologista e a data da cirurgia. Nenhum caso tinha recebido antibioticoterapia nos dois últimos meses e nenhum apresentava sintomas (otalgia, febre, irritabilidade) e/ou sinais (abaulamento, hiperemia, secreção purulenta) de processo agudo.

As miringotomias foram realizadas sob anestesia geral, após prévia antissepsia do conduto auditivo externo com iodofor aquoso. As secreções do ouvido médio foram colhidas através do coletor de Senturia e levadas imediatamente para o laboratório. No laboratório, além de lâminas coradas pelo método de GRAM, o material era semeado em meios de Mac Conkey (para gram negativos) e ágar sangue (para grani positivos) por 24 horas a 37 graus. Se fossem identificados germes no método de Gram, seriam também realizados antibiogramas no meio de Mueller Hington. Não foram realizados cultivos para anaeróbios.

RESULTADOS

A tabela 1 apresenta a descrição do sexo e da idade da amostra estudada.

A maioria dos pacientes era do sexo masculino e a faixa etária mais prevalente foi de crianças entre 2 e 5 anos de idade.

A figura 2 apresenta o tempo de acompanhamento dos pacientes (tempo entre o diagnóstico otorrinolaringológico e a data da cirurgia).

Como se pode ver, nenhum paciente foi puncionado antes de 45 dias de observação clínica.

A figura 3 mostra a característica da secreção obtida na paracentese.

Em todos os casos o diagnóstico clínico de OMCS ficou confirmado pelo encontro da secreção. Nos casos de secreção muito espessa, recorreu-se à contra-incisão na membrana timpânica para facilitar sua aspiração.

A tabela 4 traz o resultado cios exames bacteriológicos realizados nas secreções obtidas elo ouvido médio.

Em apenas um caso identificou-se Staphylococcus epidermidis na cultura da secreção do ouvido médio. Nos demais, não foram identificadas bactérias no Grain ou no exame cultural das secreções. Em 57 ouvidos foram identificados leucócitos, demonstrando a etiologia inflamatória do processo na maioria das crianças.

DISCUSSÃO

A maioria dos estudos disponíveis na literatura encontra bactérias viáveis no ouvido médio de pacientes com "otite média secretora". Dados provenientes dos Estados Unidos apontaram para o crescimento de bactérias patogênicas em 31% dos 4483 ouvidos relatados.



Figura 3. Características da secreção obtida nas 94 paracenteses.



TABELA IV - Resultado do GRAM e do Cultural dos 94 ouvidos puncionados.



Em 34% dos casos, os exames culturais foram negativos. No restante, isolaram-se bactérias tidas como não-patogênicas11. Os resultados finlandeses são diferentes. Dos 510 ouvidos puncionados, 16% obtiveram bactérias patogênicas, percentual este que aumenta para 23,5% se considerarmos o S. epidermidis como patogênico. No total, 66,3% tias culturas foram negativas11. Outro estudo finlandês, envolvendo 2575 crianças (4952 ouvidos) com otite média secretora e otite média aguda recorrente, apresentou 67,6% de culturas negativas e crescimento de bactérias patogênicas em apenas 21,1% dos casos. Convém lembrar que tal estudo envolveu também casos em fase agudizada, não havendo discriminação na apresentação dos resultados sobre a qual tipo de otite média correspondiam as culturas positivas10.

Talvez a explicação mais plausível para a discordância entre os nossos resultados e os da literatura seja a diferença na temporalidade da execução da paracentese timpânica. Provavelmente, os casos tenham sido puncionados em diferentes etapas do processo contínuo da otite média. Acredita-se que os organismos dentro do ouvido médio tenham evolução natural, pois nesse local já foi demonstrado um sistema imunológico secretor, similar ao de outras áreas do trato respiratório superior, que tem a capacidade de esterilizar a secreção12, 13, 14. Isso é ilustrado, por exemplo, pelo alto índice de resolução espontânea das otites médias agudas não tratadas com antibióticos15, 16, 17. Essa também poderia ser uma das explicações para o alto percentual de miringotomias negativas, as quais não encontraram secreção na caixa timpânica (27%) em um estudo de Giebink18. Acredita-se na validade de tais observações, porque urna das formas de tratamento para a OMCS advogada em importante conferência dinamarquesa é a de que se deixe a OMCS seguir o seu próprio curso, sem interferências médicas, levando em conta o considerável percentual de cura espontânea19.

A evolução natural da infecção bacteriana no ouvido médio pode ser evidenciada através dos estudos bacteriológicos. Inicialmente, nos processos agudos, as bactérias viáveis podem ser identificadas nas culturas. Na segunda fase, pela ação de substâncias inibitórias, as mesmas só podem ser identificadas no método de GRAM. Finalmente, nas secreções cronicamente instaladas, as bactérias podem não ser identificáveis, trem no exame cultural e nem no GRAM, aparecendo somente com a utilização de técnicas especiais, como a contraimunoeletroforese e a reação da cadeia da polimerase (PCR)20. A amostra aqui estudada não apresentou crescimento bacteriano nem nos exames culturais e nem no GRAM, possivelmente representando casos realmente crônicos, de longa duração, cujas únicas possibilidades de identificação bacteriana recairiam sobre os testes especiais supracitados, os quais não foram utilizados. Reforçando o que foi dito, em trabalho adequadamente delineado, a freqüência de isolamento do S. aureus, S. pneumoniae e do H. influenzae declinou de forma estatisticamente significativa com o aumento do tempo da duração da otite média secretora21.

A amostra de pacientes aqui relatada é muito reduzida, quando comparada com as grandes séries mundiais. No entanto, a observação ganha em homogeneidade na seleção dos casos, por ser resultado do exame de um único otoscopista validado22. Parece pouco provável que os resultados negativos aqui encontrados se expliquem por falha no exame microbiológico, o qual foi realizado seguindo normas padronizadas internacionais. Saliente-se também alue o método utilizado nesse trabalho já se demonstrou eficaz em isolar bactérias em casos de otite média aguda22, e em casos de sinusite em trabalhos anteriores23.

CONCLUSÃO

Não se isolaram bactérias patogênicas nem no método de Gram e nem nos exames culturais de 94 ouvidos de crianças com o diagnóstico clínico e timpanométrico de otite média crônica secretora. Esse resultado está em discordância com os obtidos por vários autores de outros países c aponta para a necessidade de novas pesquisas na área. Para tanto, será preciso, além de utilizar-se grande número de pacientes homogêneos com secreção crônica no ouvido médio, o uso de técnicas sofisticadas para o isolamento de resquícios bacterianos.

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* Professor Titular de Otorrinolaringologia da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre; Professor Adjunto do Departamento de Otorrinolaringologia e Oftalmologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul;
** Professor Auxiliar de Otorrinolaringologia da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Parto Alegre; Médico do Serviço de Otorrinolaringologia da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre;
*** Residente de 2° ano do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre;
**** Professor do Departamento de Medicina Interna da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Chefe do Serviço de Controle de Infecção do Hospital Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Instituição: Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.

Endereço para separatas: José Faibes Lubianca Neto. Rua dos Andradas, n° 1711, conj 501/502, Porto Alegre, RS, Brasil.

Artigo recebido em 09 de março de 1995.
Artigo aceito em 24 de abril de 1995.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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