APRESENTAÇÃO DE CASOO paciente J. A. P., 37 anos, masculino, branco, natural e procedente de São Paulo, capital, ajudante de eletricista, foi atendido no ambulatório de Estomatologia do Hospital São Paulo com queixa de manchas escuras na boca, associadas a quadro de dor há 1 ano, acompanhado de disfagia. Tabagista de 1 maço de cigarros por dia há 28 anos, etilista social, negava uso de alguma medicação, ocorrência de outras patologias ou antecedentes familiares semelhantes.
Ao exame bucal, apresentava manchas pigmentadas, enegrecidas, na mucosa jugal e labial (figuras 1 e 2), lesões brancas e vermelhas (erosivas) cm comissuras labiais de 2,00,7 em bilateralmente (figuras 3 e 4), língua lisa, despapilizada (figura 5) e faringe pálida com diminuição de muco (figura 6). O paciente não apresentava lesão em pele.
Com hipóteses diagnósticas de doença de Addison versus pseudo-Addison (tumor de hipófise, câncer brônquico, feocromocitoma, tuberculose supra-renal) versus carencial, versus síndrome de Peutz-Jegher, realizaram-se exames laboratoriais que revelaram anemia hipocrômica e microcítica, com hemoglobina de 10,8 g/dl e hematócrito de 35%, ferro sérico 18 ?g/dl (normal entre 59 e 158 ?g/di), transferrina 416 ?g/dl (taxa normal varia de 250 a 470 ?g/dl), glicemia de 94 mg%, cortisol basal de 7,8 ?g/dl (taxa normal oscilando entre 7 e 24 ?g/dl) e, após estimulação com ACTH sintético, mostrou-se em 17,6 ?g/dl aos 30 minutos e 15,7 ?g/dl aos 60 minutos (aumento de pelo menos 7 ?g/ dl acima da linha basal é observado em indivíduos normais). Protoparasitológico de fezes negativo, assim como FTAabs e HIV. Exames radiológicos mostraram normalidade de campos pleuro-pulmonares e sela túrcica.
Exame histopatológico obtido por biópsia de comissura labial mostrou-se compatível com monilíase.
De posse destes dados, com importante deficiência de ferro sérico, o paciente foi novamente interrogado, referindo então ter sido gastrectomizado há 8 anos por doença úlceropéptica. O paciente foi então submetido à reposição de ferro na dose de 100 mg diários, apresentando após 2 meses melhora das lesões inflamatórias e atróficas bucofaríngeas.
DISCUSSÃOA presença de lesões pigmentadas múltiplas em mucosa oral pode ocorrer numa série de doenças, como a presença de placas-negro azuladas ou castanho-escuras na insuficiência supra-renal primária associada também a pigmentação cutânea - Addison -, ou nos quadros de melanodermia "pseudoaddisoniana" causados por feocromocitoma, tumor de hipófise, câncer brônquico ou tuberculose supra-renal3. A Síndrome de Peutz-Jeghers pode também apresentar pontos de pigmentação em mucosa bucal, labial e região de pálato, com distribuição característica do pigmento ao redor dos lábios, nariz, olhos c mãos, concomitante à presença de polipose intestinal2.
A ingestão de alguns tranquilizantes, anticoncepcionais orais, citostáticos, hidantoínas e antimaláricos também predispõe à formação de áreas de pigmentação castanha, preta ou cinza, que desaparecem após a interrupção do medicamento, assim como ocorre com a pigmentação ao longo do rebordo gengival por metais pesados como bismuto, mercúrio e chumbo1.
Pigmentações bucais podem ocorrer também como lesões cicatriciais do líquen plano, pigmentações raciais - comum em negros, pardos e mediterrâneos, predominando em gengivas-ou como melanose da gravidez, acompanhando pigmentação cutâneas.
Outra causa responsável pela presença de. manchas pigmentadas na boca é a carencial10. Urna minoria dos pacientes portadores de anemia ferropriva, devida a uma série de fatores genéticos, ambientais e imunológicos5, 12, desenvolvem estomatite com fissuras e rachaduras angulares, língua lisa, vermelha, dolorosa, atrofia de papilas linguais, lesões pigmentadas em mucosa oral e faringite atrófica. Esta patologia é freqüente em mulheres entre a quarta e quinta década de vida, podendo também estar associada a celioniquia (unhas em forma de colher)4, 6, fragilidade das unhas e esplenomegalia em 20 a 30% dos casos9. A depleção das reservas de ferro do organismo é a causa direta da atrofia de mucosa, visto que a integridade do epitélio depende dos níveis adequados de ferro sérico.
Figura 5. Glossite atrófica.
Figura 6. Faringite atrófica com palidez e diminuição do touco orofaríngeo.
Dentre as várias causas de carência de ferro, a perda crônica ele sangue é urna das mais importantes, representada por perdas menstruais, hemorragias gastrintestinais, como as originadas por infestações parasitárias, úlcera péptica, hérnia de hiato, diverticulose, câncer ou ainda pacientes portadores de alguma diátese hemorrágica.
Outra causa responsável pela diminuição dos níveis de ferro é a absorção diminuída do mineral, comum em algumas situações clínicas como, por exemplo, pacientes gastrectomizados total ou parcialmente. Este tipo de procedimento cirúrgico provoca aumento da motilidade intestinal, desvio do trânsito alimentar da parte proximal do intestino e hipocloridria. Apesar da participação do estômago, íleo e cólon na absorção do ferro, o local mais ativo de sua absorção é exatamente a porção inicial elo duodeno. Seu transporte através da borda em escova da mucosa intestinal ocorre com a ligação de sua forma ferrosa com a transferrina mucosa. O responsável pela redução da forma férrica presente nos alimentos é a presença de ácido clorídrico, diminuído após a gastrectomia.
A reposição do mineral não só através de medicações, mas também por dieta mais balanceada é fundamental para a resolução do processo7, 8, 11.
Concluindo, frente a quadro de lesões pigmentadas difusas na boca, principalmente quando associado a possíveis manifestações carenciais corno monilíase, glossite e faringite atróficas, uma das étiologias que se deve ter em mente é a deficiência ele ferro no organismo.
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*Professor Livre Docente do Departamento de Otorrinolaringologia e Distúrbios da Comunicação Humana da Escola Paulista de Medicina.
** Residentes do 3° ano do Departamento de Otorrinolaringologia e Distúrbios da Comunicação Humana da Escola Paulista de Medicina.
*** Estagiária do Setor de Estomatologia do Departamento de Otorrinolaringologia e Distúrbios da Comunicação Humana da Escola Paulista de Medicina.
instituição: Escola Paulista de Medicina, Rua Botucatu, 740 - Vila Clementino; CEP 04023-900; Fone: 549-7041; FAX: 570-6018. São Paulo - SP.
Artigo recebido em 01 de novembro de 1994.
Artigo aceito em 23 de janeiro de 1995.