IntroduçãoApesar de estarmos vivendo na época da antibioticoterapia, a incidência de complicações de otite média tem aumentado no Serviço de ORL da Unicamp.
Na literatura destes 10 últimos anos, encontramos algumas divergências quanto à freqüência: alguns citam que houve diminuição de casos com o advento da antibioticoterapia (4, 5, 8, 9, 12); outros, porém, acham que não houve alteração (2, 6), pelo menos, em caso de meningite otogênica, e Vaneecloo e cols. (11), em seu relato recente (1981), apresentam um número grande de abscessos cerebrais de origem otogênica.
O objetivo deste trabalho é apresentar sete casos de complicações de otite média e um de abscesso de conduto em um período de cinco meses, alertando o otorrinolaringologista para o aumento da incidência, devido aos problemas sócio-econômicos.
Apresentação dos casosCaso 1
C.R.S., sexo masculino, branco, 10 anos. Procurou o Serviço de ORL em 29/02/83, com febre, otalgia e otorréia purulenta retroauricular através de um pequeno orifício, há oito dias.
Antecedentes: Otorréia crônica intermitente há dois anos, tendo sido submetido a mastoidectomia e timpanoplastia com boa evolução.
Exame: Abaulamento retroauricular com perda do sulco retroauricular, edema de região temporal e orbitária esquerda; secreção purulenta
Diagnóstico: Internado com diagnóstico de complicação de otite média crônica - mastoidite aguda.
Conduta: Drenagem retroauricular e antibioticoterapia (penicilina). Alta após total regressão do quadro; MT hiperemiada, sem perfuração. Bom estado geral: Mastóidectomia exploradora um mês após, com tecido de granulação em mastóide e caixa média.
Caso 2
A.A.G., sexo feminino, branca, três anos. Internada em 01/05/83 com queixa de febre, inapetência, prostração, otalgia esquerda intensa, com aumento da região retroauricular esquerda, com calor e rubor. Início há 14 dias, com piora progressiva. Anteriormente foi atendida em outra cidade, tendo sido tratada clinicamente, sem óbter melhora, sendo trazida então ao nosso Serviço.
Antecedentes: Há um mês havia apresentado discreta otalgia esquerda.
Exame: Abaulamento da região retroauricular esquerda, perda do sulco, calor e rubor local, sem .flutuação. Otoscopia: conduto limpo, MT com hiperemia sugestiva de otite média serosa direita e OMA esquerda.
Diagnóstico:. Mastoidite aguda esquerda.
Tratamento: Internada para antibioticoterapia (penicilina). Após um dia de tratamento clínico, timpanotomia bilateral para drenagem. Otoscopia direita: líquido seroso; otoscopia esquerda: muco purulento em grande quantidade. Passou bem após a drenagem, tendo recebido alta cinco dias após a internação, com regressão total do quadro agudo.
Caso 3
D.B.S., sexo feminino, parda, 14 anos. Procurou o Serviço em 11/05/83, com queixa de otalgia direita e otorréia bilateral, há uma semana. Encaminhada de outro serviço, onde fora internada por meningite há três semanas e reinternada com suspeita de meningite há uma semana, tendo recebido tratamento antes de nos ser enviada.
Exame: Estado geral regular; toxemia, otalgia direita intensa, otorréia fétida abundante. Otoscopia direita: MT hiperemiada, abaulada, com massa polipóide na pars flácida. Otoscopia esquerda: secreção mucopurulenta fétida e presença de massa sugestiva de colesteatoma na pars flácida.
Diagnóstico: Complicação de otite média crônica - meningite.
Tabela
Complicações de otite média
A - Ouvido médio
1. Perfuração persistente
2. Erosão ossicular com hipoacusia
3. Paralisia facial
B - Ouvido interno
1. Fístula com: vertigem hipoacusia neurossensoríal
2. Labirintite supurativa
3. Hipoacusia neurossensorial
C - Extradurat
1. Abscesso extradural
2. Trombose de seio lateral
3. Petrosite (síndrome de Gradenigo)
D - Sistema nervoso central
1. Meningite
2. Abscesso cerebral
3. Hidrocéfalo otítico
Exame neurológico de entrada: Ausência de rigidez de nuca e de sinais de acometimento meringo-radicular. Punção liquórica:liquor límpido, incolor, citologia normal. Solicitada planigrafia de mastóide (Fig. 1). Antibioticoterapia (penicilina) com boa evolução. Após oito dias, foi submetida a mastoidectomia radical à direita, com grande massa colesteatomatosa ocupando toda a mastóide.
Caso 4
C.A.L., sexo feminino, branca, seis anos. Procurou o Serviço em 23/02/83, com queixa de otalgia esquerda e torcicolo há uma semana, sob antibioticoterapia sem resposta.
Antecedentes: Otorréia intermitente bilateral desde um ano de idade.
Exame: Edema pré e retroauricular esquerdo, com desaparecimento do sulco; flutuação e propagação para a região cervical esquerda. Otoscopia: secreção mucopurulenta fétida, em pequena quantidade, cor escura; difícil exame de MT.
Diagnóstico: Otomastoidite esquerda.
Tratamento: Antibioticoterapia (penicilina) e - drenagem cirúrgica. Alta hospitalar, com regressão do quadro agudo., mas com Rx da ocasião: destruição de ossículos; suspeita de colesteatoma atical.
Caso 5
A.A.S., sexo feminino, branca, quatro meses. Febre, otorréia e irritabilidade há 20 dias, sendo que há 15 dias iniciou abaulamento da região retroauricular esquerda.
Exame: Abaulamento da região retroauricular esquerda, flutuação. Otoscopia: MT hiperemiada, abaulada, com perfuração ântero-inferior puntiforme, drenando secreção purulenta. MT direita normal.
Diagnóstico: Mastoidite aguda.
Tratamento: Antibioticoterapia (penicilina) e drenagem cirúrgica. Alta três dias após a drenagem; MT sem abaulamento, mas com discreta hiperemia.
Caso 6
A.A., sexo masculino, branco, 35 anos. Procurou nosso Serviço em 19/05/83, com queixa de cefaléia intensa há 10 dias, com náuseas e vômitos há dois dias; queda do estado geral.
Antecedentes: Otorréia esquerda há quatro meses, após trauma por arma de fogo. Internado com diagnóstico provável de meningite pneumocócica, quando foi iniciado o tratamento.
Exame: A otoscopia revelou ouvido esquerdo com secreção purulenta, fétida, massa esbranquiçada, sugestiva de colesteatoma nos quadrantes superiores. Solicitada a planigrafia de mastóide, cujo exame foi prejudicado por causa dos estilhaços de bala da arma de fogo. Ausência de ossículos sugere colesteatoma atical. Piora do estado geral e sinais de localização, tendo a tomografia computadorizada do crânio mostrado lesão expansiva, parcialmente cística, temporoparietal esquerda (abscesso cerebral). Drenagem do abscesso. Após melhora do quadro neurológico, retornou ao nosso Serviço.
Conduta: Realizada mastoidectomia radical, com presença de colesteatoma atical.
Caso 7
R.C.C., sexo feminino, parda, 13 anos. Procurou nosso Serviço em 29/07/83, com queixa de otalgia direita e abaulamento retroauricular do mesmo lado há uma semana, com piora progressiva.
Antecedentes: Há nove anos, otorréia crônica bilateral, tendo sido submetida a três mastoidectomias à esquerda - sendo a última radical - e duas mastoidectomias à direita, conservadoras.
Otoscopia: Secreção purulenta em otoscopia direita, edema de conduto auditivo e, na MT, massa esbranquiçada, sugerindo colesteatoma em quadrantes superiores. Otoscopia esquerda: boa cavidade de mastóide, sem secreção.
Diagnóstico: Mastoidite aguda direita, por otite média colesteatomatosa.
Conduta: Drenagem cirúrgica e penicilinoterapia + sulfa. Submetida a mastoidectomia após regressão do quadro agudo. Grande colesteatoma no antro e ático.
Caso 8
S.S.S., sexo masculino, branco, 10 anos. Procurou nosso Serviço em 29/04/83, com otalgia esquerda há seis dias, com inchaço da região pré-auricular. Nega febre.
Antecedentes: Sem história de otites de repetição.
Otoscopia: Edema intenso de conduto auditivo externo, dor intensa e dificuldade de examinar a MT
Diagnóstico: Mastoidite aguda.
Tratamento: Iniciada antibioticoterapia (penicilina) e solicitada planigrafia de mastóide. Após três dias de tratamento, houve drenagem espontânea atravésde pequeno pertuito do óstio do conduto. Boa evolução, com diminuição do edema e da dor.
Alta. Três dias após a alta, retornou com recidiva do quadro; reinternado e iniciados Garamicina e Staficilin. No dia seguinte, houve drenagem de grande quantidade de material purulento. Após cinco dias com esse tratamento, o conduto estava permeável e visualizava-se a MT com aspecto totalmente normal. Suspeitamos de abscesso de conduto, e fizemos uma reavaliação da planigrafia. O abscesso era visível, com mastóide gerada e ossículos presentes (Figs. 1 e 2). Realizada nova planigrafia de mastóide, que revelou conduto permeável, com ausência da imagem sugestiva de abscesso (Fig. 3).
Figura 1 - A. Espaço subperiostal; B. espaço subdural; C. meninge, D. cérebro; E. ponta do rochedo; E. labirinto; G. nervo facial; H. pescoço.
Figura 2 - Cavidade de antro (setas).
Figure 3 - Abscesso de conduto (setas).
Figum 4 - Após abscesso agudo drenado (setas).
DiscussãoAs complicações das otites agudas e crônicas têm sido freqüentes, apesar do advento da antibioticoterapia.
Existem vias de extensão da infecção para regiões circunvizinhas, assim como isto pode-se dar devido a erosões e destruições ósseas, como no colesteatoma, ou tecido de granulação em mastóide e ouvido médio (Fig. 1).
Os diferentes tipos de complicações podem ser colocados em uma tabela (ver tabela).
Nos últimos 10 anos (1972-1982), tivemos no nosso Serviço uma média de três casos ao ano de complicações agudas de otite média. Neste ano (1985), em apenas cinco meses atendemos oito pacientes com complicações.
Verificando-se a literatura destes últimos 10 anos, pode-se constatar que a maioria dos autores relata a diminuição da freqüência de complicações de otite média. Outros enfatizam que, mesmo após o advento dos antibióticos, a freqüência destas permanece elevada.
Dentre oito casos de complicações que tivemos, cinco foram mastoidites agudas, uma meningite, um abscesso cerebral e um caso de abscesso de conduto, com todos os comemorativos sugestivos de mastoidite aguda. Este caso foi incluído no sentido de alertar o otologista para possíveis erros diagnósticos, uma vez que alguns abscessos de conduto apresentam quadros clínicos que podem ser confundidos com mastoidite (10).
Apesar de a mastoidite ter sido a complicação mais freqüente por nós encontrada, ela não é muito citada na literatura destes últimos anos que revimos.
Dentre as complicações intracranianas, a meningite é a mais freqüente (2, 3, 4, 12), fato não confirmado por outros autores. (Como o paciente com meningite é rotineiramente atendido pelo neurologista ou clínico geral, e imediatamente tratado, nem sempre é pesquisado o foco otológico (5), diminuindo com isto a freqüência de meningites de causa otológica.)
Tivemos um caso de abscesso cerebral, e esta afecção era muito freqüente antes do apareciment dos antibióticos.
Numa revisão da literatura (6), constatou-se que 4% das otites médias agudas e crônicas dão complicações intracranianas, provavelmente devido ao aparecimento de cepas bacterianas resistentes
aos antibióticos e à transformação de bactérias saprófitas em cepas patogênicas. O autor refere ainda que o antibiótico traz falsa segurança ao médico, mascarando os sinais precoces de complicações.
Todos os casos de mastoidite foram tratados com penicilina cristalina, com bom resultado, se bem que com a associação de drenagem cirúrgica. Dos sete casos de complicações de otite média, quatro eram portadores de otite média colesteatomatosa, e três crianças apresentavam mastoidite como complicação de otite média aguda.
A destruição óssea por erosão, tanto em colesteatoma como em tecido crônico de granulação de mastóide e ouvido médio, permite a extensão da doença. Mesmo a camada dura que envolve o labirinto e o tégmen que separa a dura-máter da mastóide podem sofrer erosão e infecções otológicas crônicas (1).
Acreditamos que as complicações têm aumentado de freqüência no nosso meio devido às dificuldades que o paciente encontra em relação à procura de médico ou aquisição de medicamentos, ou mesmo por fatores nutricionais, em vista da situação econômica atual.
ConclusãoO presente trabalho visa alertar o otologista para o aumento da freqüência de complicações de otites agudas e crônicas na época atual. Aponta a dificuldade em se fazer diagnóstico no caso do abscesso de conduto.
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Trabalho realizado no Departamento de ORL da Unicamp.
* Professora assistente doutora do Departamento de ORL da Unicamp.
** Professor assistente do Departamento de ORL da Unicamp.
*** Residentes de 1.° ano do Departamento de ORL da Unicamp.