INTRODUÇÃOA hemorragia nasal ou epistaxe constitui uma das causas mais freqüentes de hemorragia¹ sendo uma emergência relativamente comum ² ³. Muitas pessoas terão ou já tiveram algum episódio durante a vida³. Nas crianças, é uma queixa freqüente, principalmente na faixa dos 2 aos 10 anos.
Geralmente a epistaxe é de pequena intensidade e cede espontaneamente¹. Entretanto, em alguns casos, há um intenso sangramento inclusive com repercussão hemodinâmica. Em outros, pode ser a primeira manifestação clínica de um distúrbio ainda não detectado 2,5 .
Não é nossa intensão esgotar o assunto, mas discutir fatores epidemiológicos, recidivas, localização e intensidade do sangramento, etiologia e tratamento, correlacionando-os de acordo com o grupo de 80 pacientes pesquisados no serviço de ORL do Hospital Pronto Socorro João XXIII.
REVISÃO DA LITERATURAAlém do olfato o nariz desempenha as funções de aquecimento e umidifícação do ar inspirado. Isto só é possível através de sua rede vascular.
Anatomicamente, a irrigação sanguínea arterial é bem assegurada. Primeiro, encontra-se o ramo terminal da a. maxilar interna que passa pelo forame esfenopalatino. Asa. a. etmoidais anterior e posterior, ao chegarem às fossas nasais, dividem-se em ramos externos (irrigam a mucosa dos cornetos) e ramos internos (que se destinam a mucosa septal)¹. Estes últimos sofrem, anteriormente, múltiplas anastomoses entre si e com as a. subseptal, a. palatina superior e ramo terminal da a. maxilar interna, formando a mancha vascular ou plexo de Kisselbach, situado na borda anterior do septo cartilaginoso.
Em relação à etiologia, muitos fatores podem estar presentes e devem ser pesquisados 4 . Dentre as doenças locais há as inflamações, infecções (furunculose, micoses, etc.), sinusite crônica, pólipos nasais, tumores, alergia, agentes, químicos, anormalidades anatômicas, etc. Nas causas pós-traumáticas estão a cirurgia, corpos estranhos, atritos digitais, fraturas e o trauma propriamente dito. Nas doenças sistêmicas, as mais importantes são as coagulopatias primárias e secundárias, púrpura trombocitopênia idiopática, púrpura não trombocitopênica, moléstia de Von Willebrand telangectasia hemorrágica hereditária, a hipertensão arterial e aterosclerose. As outras causas englobam vários outros estados mórbidos: hipovitaminoses (vit. C e K), doenças infecciosas (febre tifóíde, escarlatina, impaludismo), uso de drogas (anticoagulantes AINE's, cloranfenicol, quimioterápicos), leucemias, distúrbios endócrinos, nefrite aguda, hepatopatias e as epistaxes essenciais dos jovens 1,4.
Para um diagnóstico correto, há que se lançar mão da anamnese bem feita e do exame físico. Perguntas sobre a duração, intensidade, localização e freqüência das epistaxes são fundamentais. História positiva de hemorragias prévias, história familiar de discrasias sangüíneas e tendência a sangramento devem ser pesquisados. Algumas vezes, o próprio paciente relata história de trauma que desencadeou o quadro; outras vezes, fatores como infecções, inflamações e uso de medicamentos estão presentes. As doenças sistêmicas por sua vez, acompanham-se geralmente de sintomas gerais. Entretanto, deve ser notado que a epistaxe recorrente na infância pode ser a única manifestação clínica de uma diserasia sangüínea como a moléstia de Von Willebrand 4.
No exame físico, inclui-se os sinais vitais com atenção para a determinação dos níveis pressóricos. O exame local deve ser feito com a rinoscopia anterior e posterior e recentemente através da nasofibroscopia. Procura-se determinar a localização e intensidade do sangramento assim como a presença de sinais flogísticos, traumas, desvios anatômicos, pólipos ou massas.
O tratamento da epistaxe vai depender da história clínica e do exame físico. De qualquer maneira, faz-se necessário interromper o sangramento e previnir sua recorrência interferindo sempre que possível, nos fatores associados.
Felizmente, 90% das epistaxes anteriores são resolvidas facilmente ou com pressão firme aplicada a ambas narinas logo acima das cartilagens alares ou com tampão de algodão embebido em solução anestésica com vasoconstritor.
Nos casos onde o sangramento é localizado a cauterização elétrica ou química (ac. trieloroacético a 30% ou nitrato de prata) pode ser usada. Evitando-se a cauterização prolongada e bilateral pelo risco de perfuração septal.
Em recentepalestraproferida pelo Dr. Roberto Eustáquio Guimarães foi citada a infiltração de SF 0,9% associado a anestésico no forame esfenopalatino com o objetivo de comprimir a artéria diminuindo temporariamente o sangramento e facilitando a localização do vaso sangrante. Quando os métodos anteriores falham ou o sangramento é abundante e não localizado opta-se pelo tamponamento anterior (gase própria, balonetes ou balões) que deve ser, mantido por 24 ou 48 horas e removido com cautela.
Se a hemorragia é mais intensa a rebelde, indica-se o tampornamento ântero-posterior que deve ser mantido durante 3 a 5 dias. O paciente deve receber analgésico e antibióticos. As complicações existem e podem ir desde a obstrução do complexo osteo meatal levando a sinusites até casos de morte súbita por hipóxia e arritmias devido a obstrução nasal total. Alguns balonetes novos apresentam um lúmen interno que permite a respiração nasal, porém de alto custo.
Em casos excepcionais onde todos os métodos falharam, pode-se tentar a ligadura do ramo terminal da a. maxilar interna ou ramos da a. a. etmoidais. A microeirurgia endonasal tem tido bons resultados. Entretanto, as ricas anastomose podem dificultar o controle do sangramento.
Em outros casos, a embolização arterial seletiva pode se usada. Como exemplo, pode ser coadjuvante no pré-operatório do angio fibroma juvenil. Entretanto, o método pode apresenta complicações sérias como o acidente vascular cerebral (AVC)
CASUÍSTICA E METODOLOGIAForam estudados prospectivamente 80 pacientes com quadro de epistaxe atendidos no serviço de ORL do Hospital Pronto Socorro João XXIII no período de abril a setembro de 1993. Deste total, 55% pertenciam ao sexo masculino e a idade variou dos 3 aos 79 anos com média de 47 anos.
Todos os pacientes que procuraram o hospital devido à epistaxe e concordaram em participar do trabalho foram selecionados e examinados pelos autores (F. S. e D. L.). Um protocolo foi preenchido em todos os casos e constava de: data, n° do prontuário, nome do paciente, idade, sexo, cor, procedência, história de recidivas, doenças atuais, uso de medicamentos, localização da epistaxe, intensidade e tratamento realizado.
Algumas observações devem ser feitas em relação à:
a) Idade: as diferentes idades foram agrupadas em três grandes grupos:
1° grupo: de um aos 20 anos
2° grupo: dos 21 aos 50 anos
3° grupo: acima de 51 anos
b) Cor: o item cor não foi avaliado pois a grande maioria de nossa pop. é mestiça.
c) Procedência: não foi avaliado pois a maioria era da grande Belo Horizonte; alguns poucos vieram do interior e somente 2 pacientes de outros estados.
d) História de recidivas: em muitos casos torna-se difícil avaliar a quantidade exata de episódios de sangramentos anteriores, pois os pacientes ou não sabiam informar ou não se lembravam e relatavam somente "vários episódios". Portanto, preferimos quantificar em três faixas: uma recidiva; duas recidivas; três ou mais.
e) Doenças atuais, uso de medicamentos ou drogas: estes dados junto com a anamnesé e o exame físico foram usados para classificara etiologia da epístaxe em causas locais, sistêmica e pós-traumáticas. Deste modo, entre as locais estão as inflamações, infecções, pólipos nasais, tumores, alergias, sinusite crônica, agentes químicos e anormalidades anatômicas. As causas sistêmicas englobam a hipertensão arterial, aterosclerose, cardiopatias, coagulopatias, hipovitaminoses, desnutrição, uso de drogas, distúrbios endócrinos, renais e hepáticos. As causas pós-traumáticas são aquelas em que há história de trauma como atritos digitais, cirurgias e fraturas.
f) Localização: o local do sangramento era estabelecido pela rinoscopia anterior e posterior. O serviço não dispõe de naso fibroscópios, que seria o ideal. Assim sendo, classificou-se a epistaxe em anterior e/ou posterior. A lateralidade do sangramento não foi enfocada no protocolo não sendo objetivo de avaliação.
g) Intensidade: foi tentado o uso da escala de Katsanis 4 para quantificar o sangramento. Porém sua prática foi inviável: esta apresenta a epistaxe de pequena e grande intensidade não mencionado a de média intensidade; foi originalmente elaborada para a pop. infantil o que limita seu uso. Portanto, para o sangramento de grande intensidade foi necessário a presença de repercussão hemodinâmica. Na classificação de pequena e média foram usados o relato do paciente, bom senso do examinador e quantidade de lenços, toalhas ou compressas utilizadas durante a epistaxe (< - a uma toalha: pequena intensidade; mais de uma: média intensidade).
h) Tratamento: os métodos de tratamento disponíveis em nosso serviço são restritos a pressão externa; algodão com vasoconstritor ou água oxigenada; cauterização química com ácido tricloroacético a 30%; tamponamento anterior ou posterior com gase própria. Em alguns casos foram usados o tamponamento ântero-posterior pela técnica dos Drs. José Maria Aragão / Jaôr W. Menezes 6. Nos casos de sangramento médio ou intenso, os pacientes eram internados para observação (ocasião onde eram pedidos exames complementares) e após controle clínico e estabilização do quadro recebiam alta hospitalar com retorno marcado para remoção do tamponamento dentre de 3 a 4 dias. Nos casos de tratamento cirúrgico, os pacientes seriam transferidos para o serviço de ORL da Santa Casa de Misericórdia de Beste. Neste trabalho não houve nenhum caso de tratamento cirúrgico.
Após a coleta de dados foi usado o programa Public Domain Software for Epidemiology and Disease Surveillance: Centers for Disease Control Epidemiology Program Office (Atlanta, Georgia), para a análise estatística.
RESULTADOSOs resultados estão apresentados nas tabelas 1A, 1B, 2A, 2B, 3, 4A e 4 B com seus respectivos gráficos.
As tabelas 1A e 1B referem-se respectivamente ao sexo e idade dos pacientes associados aos episódios de recidivas de sangramento.
As tabelas 2A e 2B referem-se ao sexo e idade dos pacientes em relação a localização das epistaxes.
Não foi observado diferença estatisticamente significativa (P>0,05) em relação aos dados discriminados nas tabelas anteriores.
A tabela 3 refere-se à intensidade do sangramento e ao tratamento realizado. Houve forte associação no que diz respeito a estes parâmetros (P=0,0000061).
As tabelas 4A e 4B se referem às etiologias da epistaxe e sua relação com a intensidade do sangramento e com o grupo etário, respectivamente. Houve diferenças estatisticamente significativas (P<0,05) em relação a estes parâmetros.
DISCUSSÃOO presente estudo sobre epistaxe já havia sido apresentado na literatura médica 2,3,5,8. Entretanto, a importância do trabalho encontra-se no local onde foi realizado: um serviço de Pronto Socorro, pertencente à rede pública de saúde, que apresenta dificuldades e limitações e dentro da realidade de muitas capitais brasileiras. Além disso, o número de pacientes avaliados permitiu um estudo representativo.
Como mostrando em alguns trabalhos, o sexo masculino foi predominante em 55% dos pacientes estudados. Na pesquisa de episódios anteriores de sangramento obteve-se 57,5% de relato positivo. Entretanto, o sexo e a idade não influenciaram o número de recidivas.
De acordo coma líteratura, a epistaxe anterior foi a mais encontrada com 83,8% dos casos, mas não foi observada relação estatisticamente significante entre a localização da epistaxe com o sexo e a idade dos pacientes.
Discordando da literatura 1,3,6,10 onde a pressão externa como tratamento foi eficaz, em muitos casos nós utilizamos a cauterização química em 51,3%, seguido do tamponamento anterior, com 28,8% dos casos. Isto está relacionado ao tipo de paciente atendido (muitas vezes já drenados de outros hospitais) e com o tipo de serviço prestado num hospital de Pronto Socorro onde o objetivo inicial é prestar um atendimento de urgência á população.
Em nosso trabalho, o sangramento mais comum foi o de pequena intensidade com 47,5% dos casos estando de acordo com muitos trabalhos. O estudo estatístico revelou diferenças significativas entre a intensidade do sangramento e o tratamento realizado.
Quanto a etiologia da epistaxe, as causas sistêmicas alcançaram 52,5% dos casos e evoluíram, na maioria das vezes, com sangramento de média ou grande intensidade. Entretanto as causas locais evoluíram mais vezes, com pequeno sangramento. Além disso, a etiologia apresentou diferenças quanto ao grupo etário: predominaram causas locais no 1° grupo e sistêmica no 30 grupo; no 2° grupo houve pequenas diferenças das causas sistêmicas para as locais. Em todos os grupos as causas pós-traumáticas foram minoria. Assim, a análise estatística revelou diferenças significantes entre a etiologia da epistaxe conforme o grupo etário, a intensidade do sangramento e o tratamento realizado.
CONCLUSÕESA epistaxe é considerada uma das causas mais comuns de sangramento espontâneo sendo uma entidade encontrada com freqüência nos serviços de urgência. Deste modo, torna-se importante conhecer as características dos pacientes que procuram este serviço a fim de uniformizar e padronizar o atendimento melhorando a qualidade do serviço prestado e proporcionando redução dos custos para o hospital.
Concluímos que:
A) Não existe uma escala viável para quantificar a intensidade do sangramento nasal, principalmente em adultos.
B) Não existiram diferenças significativas entre o número de recidivas e a localização da epistaxe com a idade e o sexo dos pacientes.
C) O fator etiológico varia conforme o grupo etário, influência a intensidade do sangramento determinando o tratamento realizado.
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* Otorrinolaringologista e cirurgiã de cabeça e pescoço; membro da Sociedade Brasileira de ORL; concursada prol. auxiliar do Departamento de ORL da UFMG; membro efetivo do serviço de ORL do Hospital João XXIII.
** Estudante do 6° ano da Faculdade de Medicina da UFMG; bolsista da FHEMIG (Hospital João XXIII).
*** Estudante do 6° ano da Faculdade de Ciências Médicas de MG; bolsista da FHEMIG (Hospital João XXIII).
Trabalho realizado no Hospital João XXIII.
Av. Alfredo Balena, 400 -Belo Horizonte- MG - CEP 30150-270.
Trabalho apresentado no II Encontro Médico da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte.
Endereço para correspondência: Fabrício Sanfins, Rua Brás Pires, 34 - Belo Horizonte- MG- CEP 30580-570.
Artigo recebido em 09 de março de 1994.
Artigo aceito em 25 de julho de 1994.