INTRODUÇÃO
Em 1968 Chandler utilizou pela primeira vez a expressão otite externa maligna (OEM) para caracterizar uma otite externa que evoluia com osteomielite do osso temporal causada por pseudomonas aeruginosa, que acometia pacientes imunocomprometidos, idosos e diabéticos (1-2). Desde então esta patologia tem sido diagnosticada em seus estágios iniciais, possibilitando uma melhora nos resultados terapêuticos, apesar do índice de letalidade continuar elevado (3-5).
Descrição do caso:
Homem branco, bissexual, 26 anos, não-diabético, HIV positivo assintomático, procurou o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho queixando-se de otalgia intensa, otorréia, plenitude auricular e surdez no ouvido direito há 4 meses, já tendo sido tratado por diversos especialistas sem sucesso. Negava patologia anterior no ouvido direito.
Ao exame físico observamos: linfoadenomegalia de cadeia cervical anterior direita. Hiperemia gengival difusa recoberta por exsudato branco ( tipo leite talhado) compatível com monilíase oral. Sinais flogísticos em pavilhão auricular direito. A otoscopia de ouvido direito revelou otorréia mucopurulenta, edema difuso com estreitamento da luz do conduto auditivo externo e pequeno pólipo no seu terço inferior. Membrana. timpânica íntegra.
Diante da constatação de otite externa difusa, refratária a tratamento clínico usual, em pacientes sem patologia prévia de ouvido, fizemos a suposição diagnóstica de otite externa maligna. Solicitamos então os exames complementares que a seguir descrevemos:
- Hemograma: leucocitose com desvio para esquerda ( 13.000 leucócitos / 7 bastões) - Glicemia de jejum: 81 mg% - VDRL: negativo - FTAbs: negativo - Teste de ELISA: positivo - Audiometria: disacusia mista direita - Radiografia das mastóides: sem anormalidades - Cultura da secreção do ouvido direito: crescimento de Pscudomonas aeruginosa - Cintilografia com Tecnésio 99 : hipercaptação do radioisótopo em topografia de osso temporal direito
Confirmado o diagnóstico de OEM, internamos o paciente que foi submetido a antibioticoterapia venosa por 4 semanas com ceftazidime (6g/dia) e recebeu cuidados locais no ouvido (gotas otológicas de gentamicina e cauterização do tecido de granulacão). O tratamento foi completado, a nível ambulatorial, com quinolona via oral (pefloxacin 800mg/dia ) por mais 6 semanas quando a cintilografia com gálio 67 mostrou-se normal e o paciente foi considerado curado.
DISCUSSÃO
A OEM é uma forma rara de infecção necrotizante que se caracteriza por progressiva celulite, condrite e osteomielite do canal auditivo externo, causada quase sempre pela P. aeruginosa, embora outros patógenos possam ser encontrados (Staphylococcus sp., Proteus sp., klebisiella sp.) (1,2,6-9). Acomete principalmente idosos e diabéticos (média de idade de 71 anos) (5) e paciente imunocomprometidos (usuários de quimioterapia ou corticosteróides, hipogamaglobulinemia) (7,10-14). O diagnóstico se baseia na detecção de osteomielite do osso temporal através de cintilografia óssea com Tecnésio 99,Gálio 67 ou Indium 111 (15-19). O tratamento consiste em antibioticoterapia prolongada antipseudomonas (cefalosporinas de 3a geração , aminoglicosídeo associado a penicilina ou quinolona via oral ) (6,9,20-24). Por outro lado a AIDS é uma pandemia que apresenta rápida e progressiva expansão e já atinge a proporção assustadora de 850.000 casos notificados no mundo e uma estimativa de 30.000.000 de portadores sãos do HIV. O Brasil é o terceiro país no mundo em números absolutos com um total de 52.000 casos notificados até maio de 1994. Vale ressaltar que devido à subnotificação este número certamente é bem mais expressivo.
As manifestações otorrino laringológicas relacionadas a AIDS são : a candídiase oral, leucoplasia pilosa, úlceras orais, doença periodontal, herpes labial, sarcoma de kaposi mucocutâneo, linfomas, linfadenomegalia cervical e sinusites recorrentes. Também já foram descritos casos de otossífilis, condiloma oral, e paralisia facial (24-25) . Doencas otológicas na AIDS não são muito freqüentes(25).
A AIDS é causada pelo HIV (Vírus da Imunodeficiêneia Humana) e caracteriza-se por urna progressiva depressão do sistema imunológico dos indivíduos infectados o que predispõe a ocorrência de todo o tipo de infecções oportunistas, incluindo infecções do ouvido e do osso temporal. Existem alguns relatos de otite externa necrotizante causada por Aspergillus Fumigatis em pacientes com AIDS (26). Correlação entre OEM e AIDS não é tão incomum, e na revisão da literatura encontramos alguns artigos fazendo referência ao assunto (27-30).
Os mecanismos de defesa comprometidos dos portadores do HIV, incluindo a deficiência da imunidade celular, a deficiência da resposta humoral, a inibição da atividade de imunovigilância das células NK e a perda da integridade mucocutânea podem explicar a predisposição às infecções graves por Pseudomonas Aeruginosa nos pacientes HIVpositivos, entre as quais a otite externa maligna.
O caso por nós apresentado de um jovem, não-diabético com OEM sem nenhum fator predisponente detectável para justificar esta doença grave, nos faz acreditar que a infecção pelo HIV foi o fator facilitados para o desenvolvimento da OEM. Permiti-nos ainda sugerir,devido a elevada incidência de portadores do HIV no nosso meio, que qualquer paciente com diagnóstico de OEM deva realizar um teste de Elisa coro a finalidade de detectar infecção pelo HIV.
CONCLUSÃO
Apesar da OEM ser uma doença tipicamente relacionada a idosos e diabéticos, a presença de um otite externa de difícil tratamento em jovens não-diabéticos deve fazer o otorrino suspeitar da possibilidade do diagnóstico de OEM e de sua associacão com a infecção pelo HIV (AIDS). Devido a elevada incidência de portadores do HIV no nosso meio, deve fazer parte da rotina de investigação de casos de OEM a solicitação do teste de ELISA com o objetivo de detectar infecção pelo HIV.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
1 - Chandler, J.R. Malignant External Otitis. Laryngoscope, 78:1257-1291,1968.
2 - Rubim, J.; Victor, L. Malignant External Otitis: Insights Into Pathogenesis, Clinical Manifestations, Diagnosis, and Therapy. The American Journal of Medicine, 85: 391398,1988.
3 - Strauss, M., Aber, R. C., Conner, G. H. et al. Malignant external otitis: longterm (months) antimicrobial therapy. Laryngoscope 92:397-406,1982.
4 - Meyers, B.R.; Mendelson, M.H.; Parisier, S.C. et al. Malignant external otitis. Comparison of monotherapy vs combination therapy. Arch Otolaryngol Head Neck Surg, 113:974-978, 1987
5- Chandler,J.R. Malignant external otitis: further considerations. Ann Otol; 86: 417-428,1977
6- Lang,R. etal. Successful Treatment of Malignant External Otitis with Oral Ciprofloxacin. Report of Experience with 23 patients. JID, 161:537-540,1990.
7- Cohen,D.; Friedman.P. The Diagnostic Criteria of Malignant External Otitis. J. Laryngol Otol, 101:216-221,1987
8- Babiatzki, A.; Sade, J. Malignant External Otitis. J. Laryngol Otol,101:205-210,1987
9 - Leverson,M. et al. Ciprofloxacin: Drug of Choice in the Treatment of Malignant External Otitís. Laryngoscope, 101:821-823,1991
10 - Shamboul,K.;Burns, H.Malignant External Otitis in a young Diabetic Patient. J. Laryngol Otol, 97:247-249,1983
11 - Sobie, S.; Brodsky,L.; Stanievich, J.F. et al.Necrotizing external otitis in children: report of two cases and review of the literature. Laryngoscope, 97:598-601,1987
12 - Maia, R.A.; Oliveira, L.P.Otite Externa Maligna. Rev. Bras. Otorrinolaringologia,53:43-45,1987
13-Lopes Filho,O.; Betti, E.T.; Bussoloti , I.;Castro Jr., N.P. Otite Externa Maligna, Rev. Bras. Otorrinolaringologia, 54:10,1988
14 - Fukuda,Y.;Weckx,L. Otite Externa Maligna: Apresentacão de um Caso. Rev. Bras. Otorrinolaringologia, 42:66-70,1976
15 - Uri,N. et al. Quantitative Bone and 67 Ga Scintigraphy in the Differentiation of Necrotizing External Otitis from Severe External Otitis. Arch Otolaryngol Head Neck Surg, 117:623 626,1991
16 - Ostfeld, E.;Ayiel , A.; Pelet, D. .Malignant External Otitis: The Diagnostic Value of Bone Scintigraphy. Laryngoscope, 91:960964,1981
17 - Parisier,S.C.; Lucente, F.E.; Som, P.M. Nuclear Scanning in Necrotizing Progressive "Malignant"External Otitis. Layngoscope, 92:1016-1010, 1982
18 - Cohen, D.; Friedman, P.; Elion, A. Malignant External Otitis versus Acute External Otitis. J. Laryngol Otol, 101:211-215,1987
19 - Redleaf, M.I. et al. Indium 111-labeled white blood cell scintigraphy as an unreliable indicator of Malignant External Otitis Resolution. Ann Otol Rhinolaryngol, 103:444 - 448, 1994
20 - Piccirillo, J. F. and Parnes,S.M.:Ciprofloxacin for the treatment of chronic ear descase. Laryngoscope 99:51-513,1989
21 - Esposito,S.; D'Erico, G.; and Montanaro, C..Topical and Oral treatment of chronic otitis media with ciprofloxacin-a preliminary study. Arch Otolaryngol Head Neck Surg 116:548-551,1990
22 - Ferreira,N.G.M. et al. Otite Externa Maligna: Antibioticoterapia com quinolomas. F Med (BR),101(5-6):311314,1990
23 - Bambirra, S.; Feres, M.C.L.G; Anselmo, W.T.; Oliveira, J.A.A.Perfloxacin no tratamento da Otite Externa Maligna. Rev.Bras. Otorrinolaringologia, 57:33-35, 1991.
24 - Santànna,G.D.; Franche,G.L. et al Manifestacões otorrinolaringológicas na Síndrome de Imunodeficiência Adquirida. Rev. Bras. Otorrinolaringol, 56(3): 95-98, 1990.
25 - Kohan,D.; Hammerschlag,P.E.; Holliday, R.A. Otologic disease in AIDS patients. Laryngoscope,100:1326-1330, 1990.
26 - Strauss, M.; Fine, E.Aspergillus Otomastoiditis in AIDS. Am J. of Otology, 12: 49-53, 1991
27 - Daniels, D.G. et al. Malignant Otitis External in Patients with AIDS. Int J STD AIDS, 3(3): 214, 1992
28 - Kiel Hofner, M. et al. Life-Threatening Pseudomonas Aeruginosa Infecttions in patientes with HIV infection. Clin Infect Dis, 14 (2):403-11,1992
29 - Rene, R. etal.Otitis Externa Malligna and Cranial Neuropathy. Neurologia,5(7):222-7,1990
30 - Rivas,L.M.P. et al. Malignant Otitis externa and HIV antibodies,a case report.An Otorrinolaringol Ibero Am, 17 (5(:50512,1990
* Pós-graduando (doutorando) da disciplina de otorrinolaringologia da F.M. I. U. S. P. Professor Assistente de Otorrinolaringologia da UFRJ, ex-bolsista do institut, Georges Portmann (Bordeaux-Franca), otorrinolaringologista do Hospital São Vicente de Paulo-RJ **Chefe do servico de Otoneurologia do HGB *** Residentes de ORL do HUCFF/UFRJ **** Professor Titular de O RL do HUCFF/UFRJ
Trabalho realizado no Servico de Otorrinolaringologia do Hospital Universitário Clementina Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (HUCFF/UFRJ).
Endereco para correspondência: Noisio Guilherme Moraes Ferreira Rua Domingos Ferreira, 15, ap. 1202 - Copacabana 22050-010 - Rio de Janeiro - RJ
Artigo recebido em 27 de setembro de 1994.
Artigo aceito em 28 de novembro de 1994.
|