ISSN 1806-9312  
Segunda, 29 de Abril de 2024
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1979 - Vol. 42 / Edição 1 / Período: Janeiro - Abril de 1976
Seção: Artigos Originais Páginas: 66 a 70
OTITE EXTERNA MALIGNA APRESENTAÇÃO DE UM CASO*
Autor(es):
Yotaka Fukuda
Luc Weckx

Resumo: Os autores apresentam um caso de otite externa maligna em um paciente diabético, com 76 anos de idade, discutindo aspectos de sua etiopatogenia, complicações e tratamento.

Introdução

A otite externa, tanto localizada como difusa, regride após alguns dias, respondendo bem ao tratamento à base de limpeza e instilações no local de produtos constituídos por antibióticos e corticóides. Porém quando o agente etiológico é o Pseudomonas aeruginosa (bacilo piociânico) e incide em pacientes idosos diabéticos, torna-se extremamente virulento e bastante resistente ao método usual de tratamento.

Em 1968 CHANDLER (3) relatou esse tipo de afecção, denominando de otite externa maligna para bem caracterizar a gravidade da doença.

Apresentação do caso

E.M., 76 anos, masculino, branco, húngaro. O paciente procurou o ambulatório de Otorrinolaringologia da Escola Paulista de Medicina no dia 11 de abril de 1975 com queixa


(Titular: Prof Dr. Pedro Luiz Mangabeira Albernaz) da Escola Paulista de Medicina.
de dor no ouvido direito (OD) há 20 dias. Referia que há cerca de 2 meses começara a apresentar secreção serosa intermitente no ouvido direito, com prurido e dor discreta, que fora aumentando progressivamente. Aproximadamente há 25 dias começara a apresentar dor paroxística no OD, mais intensa à noite, atualmente não cedendo com analgésicos comuns. Informava ser diabético há mais de 10 anos, tomando insulina NPH há mais de 5 anos e que apresentava também cardiopatia hipertensiva (P.A. = 20 x 10), tendo sido digitalizado há 30 dias.

Ao exame otorrinolaringológico, a otoscopia mostrava secreção purulenta em pequena quantidade. A remoção da secreção o conduto apresentava o que parecia ser duas tumorações, ambos no terço médio, um difuso na parte posterior, pouco sangraste, indolor e depressível, e outro na parte anterior, bem delimitado, ambos incluindo o conduto, não sendo possível visualizar o tímpano. Ao manipular o local, o paciente não se queixava de dor. O paciente trazia consigo os resultados dos seguintes exames:

- cultura e antibiograma da secreção do OD (03/4/75)-P. aeruginosa, sensível a: cloranfenicol, colimicina, estreptomicina, gentamicina, kanamicina, neomicina, carbenicilina, polimixina e tianfenicol.

- biópsia do conduto auditivo externo direito (03/4/75): processo inflamatório crônico inespecífco.

- politomografia do ouvido (04/4/75): calcificação e formações fibrosas na caixa timpânica do OD, sem destruição óssea.

O paciente já havia tomado vários antibióticos (cloranfenicol, ampicilina e gentamicina), sem resultado. Foi repetida a biópsia (do conduto auditivo externo direito) no dia 25/4/75, sob anestesia local, que mostrou ser um processo inflamatório crônico inespecífico, sem sinais de malignidade. Nesta mesma época o paciente apresentou paralisia facial periférica direita, com inexcitabilidade nervosa, porém sem alteração do lacrimejamento.

A audiometria tonal mostrava disacusia mista do OD e neurossensorial do OE (Anexo 1).

No dia 13/5/75, devido ao mal estado geral e dores insuportáveis no OD, o paciente foi internado no Hospital São Paulo, ficando aos cuidados dó corpo clinico do hospital, dando entrada com P.A: 11 x 4, P:108 , P.V.C: 0, T:370, desidratado++ má perfUsão capilar, murmúrio vesicular diminuído em toda área pulmonar, bulhas hipofonéticas, fígado a 2 cm do rebordo costal, glicosúria negativo, cetonúria negativo, com seguintes exames laboratoriais:

Hematológico - GV: 3.500.000 ; Hb:10,2 ; HSS (1a hora) 121 mm; GB: 21.000 (0-5-88-0-0-6-1)

Uréia: 55,3 mg/100 ml creatinina: 2,4 glicemia: 224 mg%
Foi instituído tratamento clínico com hidração controlada, corticóide, diurético, analgésico por via parenteral, antibiótico (gentamicina 120 mg/dia e cefalosporina 4 g/dia). O paciente apresentou melhora do estado geral em dois dias, substituindo-se a cefalosporina pela carbenicilina 24 g/dia, no 3º dia. Foi instituída a insulinoterapia-25 U NPH, chegando a 35 U, devido aos níveis de glicemia e glicosúria. No 8° dia foi suspensa a gentamicina devido a taxas elevadas de uréia e creatinina. No 25º dia de internação, após limpeza exaustiva do meato acústico externo, a otoscopia revelou menor grau de edema da parede e um polipo pediculado no terço médio. A partir deste dia a dor no OD foi diminuindo progressivamente. Com a normalização das provas de função, renal, voltou-se a administrar gentamicina 180 mg/dia. A partir do 30º dia de internação e durante 3 dias, o paciente apresentou picos febris, não sendo detectado nenhum outro foco de infecção, que regrediu após esse período. A carbenicilina foi suspensa após 25 dias de administração, mantendo-se, porém a gentamicina. No 43° dia de internação o paciente foi submetido ao debridamento cirúrgico do conduto auditivo direito sob anestesia local, realizando-se a exérese dos pólipos, conseguindo-se visualizar a membrana timpânica que não apresentava perfuração e estava com mobilidade normal. Como o paciente estivesse com episódios sugestivos de hipoglicemia e a glicernia estivesse em níveis normais com glicosúria negativa, diminuiu-se progressivamente a dose de insulina até substituir-se por hipoglicemiante oral, o que indicava também melhora em relação ao processo infeccioso. No 49º dia de internação, a otoscopia revelou conduto sem edema, com processo de cicatrização da região inferior, e membrana timpânica de aspecto normal. No 50º dia de internação o paciente começou a apresentar novamente queda do estado geral, não conseguindo locomover-se, alimentando-se pouco. Como os exames complementares não elucidassem o caso, pensou-se em intoxicação digitaliza, suspendendo-se o digital. Nesta mesma época o paciente desenvolveu insuficiência renal pela gentamicina, sendo esta suspensa no 51º dia de internação, após 27 dias de administração, não sendo substituída por outro antibiótico. O paciente evoluiu com fraqueza intensa, náuseas e anorexia. Não apresentava febre, dor ou secreção no OD. A otoscopia não mostrava sinais de infecção. No 59º dia de internação o paciente começou a melhorar lentamente, realimentando-se gradativamente. A otoscopia mostrava boa cicatrização do conduto, sem edema, sem secreção e indolor.


ANEXO 1

ESCOLA PAULISTA DE MEDICINA
CLÍNICA OTORRINOLARINGOLC?GICA
DATA: 25/04175 CALIBRAÇÃO: ISO -64


AUDIOGRAMA



ANEXO 2.

ESCOLA PAULISTA DE MEDICINA
CLINICA OTORRINOLARINGOLÓGICA
DATA: 21/7/75 CALIBRAÇÃO: ISO - 64


AUDIOGRAMA



Finalmente a partir do 63º dia de internação as taxas de uréia e creatinina começaram a decrescer e o estado geral a melhorar.

A otoscopia no 70º dia de internação revelou perfuração puntiforme da membrana timpânica na região póstero-inferior. No 74º dia de internação o paciente teve alto hospitalar com dieta hipossódica para diabético, hipogicemiante oral e diurético. A paralisia facial periférica direita apresentava-se inalterada com inexcitabilidade nervosa. Apesar do tratamento intensivo com gentamicina durante 5 semanas, a audiometria de controle por ocasião da alta não mostrou piora da audição, e revelou melhora do componente condutivo no OD (Anexo 2).

Comentário

A otite externa maligna, por ser uma patologia não encontrada comumente, pode trazer certa dificuldade diagnóstica, principalmente quando já foi anteriormente manipulado e tratado, mascarando o quadro clínico.

O quadro geralmente inicia-se de uma forma insidiosa, com dor no meato acústico externo, aumentando progressivamente de intensidade, chegando a ser insuportável, principalmente à noite, não cedendo com analgésicos comuns. A secreção de início serosa torna-se purulenta. A conduta auditiva externo torna-se edemaciado e há formação do tecido de granulação na junção da porção cartilagínea e óssea do conduto. A seguir o processo dissemina-se para a glândula parótida e outras partes moles da fossa infratemporal, podendo atingir o nervo facial na emergéncia do forâmen estilo-mastoideo. Com a evolução da doença, pode haver condrite, osteite, mastoidite e osteomielite do osso temporal e da base do crânio, resultando em paralisias dos IX, X, XI, XII pares cranianos, trombose venoso, meningite, abcesso cerebral e morte do paciente (1, 3, 5, 7, 8).

Em 1972 CHANDLER (4) estudou 38 casos. A idade média dos pacientes era de 71 anos; o P. aeruginosa foi encontrado em todos os pacientes. Noventa e cinco porcento desses pacientes eram diabéticos. A mortalidade nesse grupo de pacientes foi de 32% (12 em 38). A paralisia facial periférica foi uma das complicações mais frequentemente descritas (39%), sendo que esta situação agravava bastante o prognóstico (50% de mortalidade). O envolvimento de outros pares cranianos é descrito como sendo progressão da osteomielite, tornando o prognóstico mais sombrio, elevando o índice de mortalidade para 80%.

O tratamento atualmente preconizado consiste em:

1. hospitalização da paciente
2. remoção do tecido de granulação
3. instilação de substâncias à base de gentamicina no ouvido flf 1°'
4. administração sistêmica de antibióticos - penicilina semi-sintética (carbenicilina) 1 g E.V./h perfazendo 24 g/dia durante um período variável de 2-6 semanas e gentamicina 3-5 mglk/dia I.M. (5).

De acordo com BODEY (2), somente a carbenicilina administrada à dose de 30 g/dia (5 g 4/4 h) apresenta 91% de bons resultados nos pacientes infectados com pseudomonas. Quando o processo não regride e quando a mastoidite é evidenciada por RX, há indicação de intervenção mais agressiva com mastoidectomia radical e debridamento amplo de tecidos moles comprometidos (4,9). Como os pacientes são geralmente idosos, diabéticos, e debilitados, cuidados especiais devem ser tomados durante o tratamento, em particular a:

1. função cardíaca, principalmente quando está sendo administrada carbenicilina, pois junto com o antibiótico o paciente recebe considerável quantidade de sódio; 2. função renal, quando está sendo tratado com gentamicina, pois a substância é nefrotóxica;

3. função pulmonar, porque durante o tratamento há tendência à imobilização do paciente no leito, facilitando a infecção pulmonar, de extrema gravidade nesses pacientes; 4. controle rigoroso do diabetes, devido a alteração da glicemia em função da infecção.

Apesar da otite externa maligna ser descrita como sendo patologia que incide geralmente em pessoas idosas diabéticas, recentemente COSER & COSTA (6) relataram um caso de lactente, não diabético.

Summary

The autores report a case of malignant external otitis in a seventy six year old man. Etiology, complications and treatment aspects of this pathological process are discussed.

REFERENCIA BIBLIOGRÁFICA

1. ALDOUS, E.W. & SHIN, J.B. - Far advanced malignant external otifis. Reported of a survival Laryngoscope, 83:1810-15, 1973.
2. BODEY, 0.0. et al. - Carbenicillin therapy for Pseudomomas infecclons. JAMA, 218: 62-6, 1971.
3. CHANDLER, J.R. - Malignant externai otitis. Laryngoscope, 78: 1257-94,1968.
4. CHANDLER, J.R. - Pathogenesis and treatment of facial paralysis due to malignant extemal otitis. Ann.Otol. 81: 648-58,1972.
5. CHANDLER, J.R. - Malignant external otitis and facial paralysís. Otoiaryngologic Clinics of North
America, 7 (2): 375-83, June 1974.
6. COSER, P.L. & Costa, V. - Otite externa maligna em lactente: apresentação de um caso. Rev. Brasil. de Oto-Rino-Laring. 40: 200-2, 1974.
7. DINAPOLI, R.P. & THOMAS, J.E. - Neurologic aspects of malignant extemal otitis: report of three cases. Mayo Clin. Proc., 46:339-44,1971.
8. SCHWARZ, O.A., BLUMENKRANTZ, MJ., SUNDMÃKER, W.L.H. - Neurologic complications of malignant externai otitis. Neurology, 21: 1077-84, 1971.
9. WILSON, DY., PULEC, J.L., I.IN=CUM, F.H. - Malignant externai otitis. Arch. Otolaryng., 93: 419-22,1971.




Endereço dos Autores:
Alameda dos Uapés, 36 ap. 93
Planalto Paulista
01000 - São Paulo/SP

* Trabalho realizado na Disciplina de Otorrinolaringologia
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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