INTRODUÇÃOA pericondrite, inflamação do pericôndrio, e a condrite, processo inflamatório da cartilagem, podem ocorrer em conseqüência de traumatismo acidental ou cirúrgico da orelha externa ou em razão de infecção cutânea do meato acústico externo. O sinal característico, inicialmente, é o eritema do pavilhão auricular, com exceção do lóbulo, já que não há cartilagem nesta área. A febre pode estar presente e a dor é geralmente intensa. Se o tratamento não for iniciado de imediato, há aparecimento de edema generalizado do pavilhão e a propagação da infecção, por baixo do pericôndrio, leva à produção de abscesso sub-pericondrial, chegando à necrose isquêmica da cartilagem1, 2.
No estágio inicial, o tratamento com antimicrobiano oral é quase sempre bem sucedido. No entanto, nos pacientes com pericondrite traumática em que se instala abscesso sub-pericondrial flutuante, a incisão e drenagem cirúrgica se impõem, debridando-se todos os tecidos necrosados. O exsudato purulento é submetido à cultura e o antíbiograma, para que se faça a terapêutica adequada. É necessária á observação atenta de novas áreas de necroses da cartilagem, para tantos debridamentos quantos forem necessários.
O processo cicatricial será por segunda intenção3. Nos casos de traumas acidentais ou cirúrgicos, as infecções podem acorrer por vários microorganismos, sendo predominantes as espécies de Pseudomonas. Nos casos presumivelmente surgidos espontaneamente, são mais freqüentes os microorganismos gram positivos.
A deformidade séria instala-se no pavilhão auricular, quando há necrose de cartilagem.
A acupuntura com o uso de agulhas é tipo de trauma penetrante que pode causar pericondrite auricular. O caso que apresentamos ocorreu após o uso da acupuntura no pavilhão auricular de uma paciente que se submetia a este método para emagrecer.
APRESENTAÇÃO DO CASOUma mulher de 24 anos de idade, no terceiro mês de gestação, veio à consulta porque, tendo se submetido a acupuntura há 30 dias no pavilhão auricular direito, com a finalidade de controle do peso, 10 dias depois da aplicação apresentou dor e edema acentuados nesse pavilhão. Na ocasião, foi submetida à drenagem do pavilhão, sob anestesia geral, por sua obstetra, que lhe prescreveu ampicilina, substituída depois por cefalexina. Não apresentando melhora do quadro, procurou nosso Serviço. O exame físico mostrou pavilhão auricular intensamente hiperemiado e amolecido, com flutuação e orelha em abano, com apagamento do sulco retro-auricular e relato de muita dor (Figura 1)
Figura 1. Aspecto do pavilhão auricular na primeira visita ao ORL.
Apresentava incisão de cerca de 1 cm na concha, com exsudato purulento, infiltração do terço externo do meato acústico externo e membrana timpânica normal. Pincelamos todo o pavilhão auricular com solução de nitrato de prata a 50%, prescrevemos cefaclor, e, como não houvesse qualquer sinal de melhora em 48 horas, submetemos a paciente a nova cirurgia sob anestesia geral. Procedeu-se à incisão do pavilhão auricular nas suas faces anterior e posterior, debridamento de toda a ferida e aspiração da cartilagem necrosada. Foram colocados drenos em ambas as faces, os quais foram retirados três dias depois. Também foram introduzidos cateteres de polietileno no pericôndrio, com várias perfurações em sua extensão, por onde foi feita irrigação com ceftazidina, várias vezes ao dia. Estes cateteres foram retirados depois de oito dias (Figuras 2 e 3). A cultura mostrou crescimento de Pseudomonas aeroginosa. Optamos pelo uso de ceftazidina por via intravenosa, por 35 dias, na dose de 1 grama, de oito em oito horas. Além da melhora clínica, foi usada como critério de cura, para suspensão do antibiótico, a normalização da velocidade de hemossedimentação (VHS). De valores iniciais de 96 mm, o VHS chegou a 30 mm, após 35 dias de antibioticoterapia. O processo inflamatório cedeu lentamente e o pavilhão auricular ficou com as seqüelas previstas (Figura 4).
Figuras 2 e 3. Incisões na pele do pavilhão auricular e colocação de drenos e cateteres para irrigação com solução de antibiótico.
A pericondrite do pavilhão auricular não é entidade clínica comum. A causa mais freqüente é o traumatismo local com hematoma e infecção secundária subseqüente. As outras causas incluem queimadura, congelamento, cirurgia, picaduras de insetos, abrasão, otite externa e infecção pelo uso de brincos1. As lesões penetrantes podem introduzir microorganismos oportunistas no plano do pericôndrio e, muito embora pouco citada, a acupuntura pode ser causa infiltrante2, 4.
Convém assinalar que há registro de outras complicações com a acupuntura, como pneumotórax, hematoma, tamponamento cardíaco e quebra da agulha nas regiões do corpo em que são aplicadas5, 6.
A infecção por esterilização inadequada das agulhas também pode levar à hepatite, endocardite, peritonite, meningite e celulite local7.
A moda corrente, para cada local diferente de colocação de brincos que atravessam á cartilagem, tanto quanto o tecido adiposo, do lóbulo do pavilhão auricular, como é feita tradicionalmente, aumenta o risco desta infecção, que pode causar deformidade cosmética severas8.
A análise arquitetônica mostra que o pavilhão auricular tem sistema estrutural de suporte próprio. A cartilagem comporta-se morfologicamente com equilíbrio de forças opostas, que mantêm sua forma, mas tem pouca capacidade para resistir ao desequilíbrio dessas forças9.
Figura 4. Resultado final do tratamento, com seqüela cosmética severa do pavilhão auricular.
A acupuntura deve ser vista como forma de trauma penetrante. A cartilagem, que é avascular, pode sofrer invasão bacteriana causando sua necrose e deformidade10. Sua nutrição depende do pericôndrio11, e a inflamação causa edema, fibrose, diminuição do aporte sangüíneo e perda da arquitetura do pavilhão auricular, que é moldado por esta cartilagem12.
CONCLUSÃOA acupuntura é técnica controvertida, usada para alívio das dores e para tratamento de várias doenças5. Agulhas de aço, prata ou ouro são colocadas em vários pontos do corpo, que podem estar longe ou próximo da doença referida5. Trata-se de medicina alternativa, que já tem foro de especialidade. Não é sem riscos, como se propala, e, neste caso, a complicação rara aconteceu em paciente no terceiro mês de gravidez, que procurava perder peso com técnica não medicamentosa, e supostamente sem riscos para a paciente e para o feto. É interessante registrar que a cepa de Pseudomonas isolada mostrava boa sensibilidade às quinolonas, que poderiam ter se constituído em alternativa de tratamento por via oral, não fora a condição de gestante da paciente, com riscos de toxicidade para o feto.
O pavilhão auricular é local muito usado pelos acupunturistas, certamente o mais- visado nas regiões da cabeça e do pescoço. É processo de tratamento cada dia mais aceito e difundido por diversos segmentos da sociedade e, por esta razão, maior número de complicações tem surgido, necessitando de condutas clínicas e cirúrgicas agressivas para sua reparação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1 - LINSTRON, C. J. & LUCENTE, F. E. - Infection of the external ear. In: Bailey, B. J. - Head and Neck Surgery - Otolaringology, Philadelphia, J. B. Lippincott Company, 1993. 1542 - 1556.
2 - DAVIS, O. & POWELL, W. - Auricular Perichondritis secondary to Acupuncture. Arcb. Otolaryngol., 111(11): 770 - 1, 1985.
3 - SPERLING, N. & LUCENTE, F. - Patologias do ouvido externo. In: Costa, S. S.; Cruz, O. L M.; Oliveira, J. A.; e col. - Otorrinolaringologia Princípios e Práticas, Porto Alegre, Artes Médicas, 1994. 112 - 119.
4 - ALLISON, G. & KRAVITZ, E. - Auricular chondritis secondary to acupuncture. N. Engl J Med., 293: 780, 1975.
5 - VALENTA,1,. J. & HENGESH, J. W. - Pneumothorax caused by acupuncture. Lancet, 2: 322, 1980.
6 - CARRON, H.; EPSTEIN, B. S.; GRAND, B. - Complications of acupuncture. JAMA, 228: 1552 - 1554, 1974.
7 - ULETT, G. A. - Acupuncture treatment for pain relief. JAMA, 245: 768-769, 1981.
8 - CUMBERWORTH, V. L. & HOGART, T. B. - Hazards of ear-piercing procederes which traverse cartilage: a report of Pseudomonas perichondritis and review of other complications. British journal of Clinical Practice, 44(11): 512-513, 1990.
9 - ROSENTHAL, J. S. - The thermally injured ear: a systematic approach to reconstruction. Clinics in Plastic Surgery, 19(3): 645-662, 1992.
10-TURKELTAUB, S. H, &HABAL, M. 13. -Acute pseudomonas chondritis as a sequel to ear piercing. Ann. Plast. Sur., 24(3): 279-82, 1990.
11 - MOTOKI, D. S. & MULL1KEN, J. B. - The healing of bone and cartilage. Clin. Plast. Surg., 17: 527, 1990.
12 - SPIRA, M. & HARDY, S. B. - Management of the injured ear. Ain J. Surg., 106: 678, 1963.
* Professor Adjunto Doutor da Disciplina de Otorrinolaringologia do Centro Biomédico da Universidade Federal do Espírito Santo.
** Professor Adjunto das Disciplinas de Doenças Infecciosas e Parasitárias e Clínica Médica da Escola de Medicina da Santa Casa de Misericórdia de Vitória/ ES.
*** Doutora em Medicina pela Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo.
Endereço para correspondência: Avenida Saturnino de Brito, 256 - Praia do Canto - Vitória /ES - CEP: 29055-180.
Artigo recebido em 22 de janeiro de 1997. Artigo aceito em 1° de abril de 1997.
