INTRODUÇÃOA otite externa maligna(OEM) é infecção necrosante do canal auditivo externo que, quando severa, pode estender-se à base do crânio3, 8.
A doença instala-se em pacientes imunodeprimidos e a maioria dos casos é vista em pacientes idosos e diabéticos. Atualmente, é crescente sua incidência em portadores da síndrome de imunodeficiência adquirida, que tem assumido dimensões expressivas. Outras formas de imunossupressão estão implicadas, além do uso de rádio ou quimioterápia e neoplasias e, também, a desnutrição1, 8.
O agente etiológico mais comum da OEM é a Pseudomonas aeruginosa; entretanto, infecções causadas por S. aureus, S. epidermidis e Candida albicans têm sido relatadas3, 8.
A Pseudomonas-aeruginosaé bactéria gram negativa comensal do trato gastrointestinal e pode fazer parte da flora do conduto auditivo externo de pessoas sadias. Possui baixa virulência em indivíduos normais, mas no imunodeprimido causa infecção necrosante típica4, 5.
A patogênese da OEM relaciona-se com a má perfusão tecidual e a imunodeficiência, principalmente em razão da diminuição da função fagocitária dos polimorfonucleares. A ação de substâncias citotóxicas extracelulares ativadas pelo patógeno, bem como enzimas proteolíticas, causam lesão grave aos tecidos3, 8.
A OEM tem progressão característica. A partir do conduto auditivo externo, a bactéria invade o osso temporal pela junção ósseo-cartilaginosa, de onde segue pelas fissuras de Santorini até a mastóide. Evolui de forma agressiva e é potencialmente fatal, o que tem sido modificado pelo uso de novas drogas antimicrobianas. Quando não é diagnosticada e tratada adequadamente, a infecção pode atingir os ossos da base do crânio, causando paralisias de múltiplos pares cranianos e pode resultar em meningite3 ,6.
O quadro clínico da OEM inclui dor local persistente, otalgia, que é mais intensa à noite, e/ou otorréia que não respondem ao tratamento convencional para otite externa. Pode haver queixa de cefaléia, dor em região da articulação têmporo-mandibular, e pode haver tecido de granulação no conduto auditivo externo. Raramente, acompanha-se de toxemia e febre3, 4.
O diagnóstico baseia-se na anamnese e no exame físico. Deve se colher material para estudo bacteriológico: bacterioscopia, cultura e teste de sensibilidade à antibióticos1, 9.
O exame radiológico é útil para avaliar a extensão da doença, mas mostra alterações tardias. A tomografia computadorizada indica modificações ósseas, enquanto que a ressonância magnética mostra os planos musculares e gordurosos da região subtemporal3, 7.
A cintilografia óssea é muito sensível na detecção do comprometimento precoce pela infecção, antes mesmo que haja alterações na estrutura óssea macroscópica. O Tecnecium 99 metaestável (Tc99m) é útil no diagnóstico de osteíte. O Galium 67 (Ga-67) é bem captado em processos inflamatórios de partes moles; por isto, é inespecífico, mas é bom indicador para a resposta terapêutica. Assim, pode se solicitar a cintilografia com Tc99m para a confirmação diagnostica e acompanhar o tratamento por exames feitos com Ga-673, 7.
A velocidade de hemossedimentação é outro parâmetro muito importante para o controle evolutivo da OEM, apesar de também ser inespecífico. Deve se manter
a antibioticoterapia enquanto ela permanecer acima dos valores normais5, 8.
Deve ser feito diagnóstico diferencial da OEM com carcinoma através de exame histológico6, 9.
O tratamento da OEM é constituído por antibioticoterapia, medidas gerais e combate ao estado de imunodeficiência. Tradicionalmente, fazia-se administração intravenosa de aminoglicosídeos e carbenicilina, mas atualmente tem sido empregado ceftazidime2, 5. Existe a opção do uso de carbenicilina ou ticarcilina associados ao clavulanato de potássio.
O esquema terapêutico mais comum é o uso de ceftazidime intravenoso, por quatro a seis semanas, com o paciente internado, seguido de ciprofloxacina, via oral, por mais seis semanas e acompanhamento ambulatorial. Alguns autores preconizam o uso de quinolonas, via oral, como droga única desde o princípio do tratamento, pois dispensam a internação2, 4.
RELATO DO CASOO paciente W.L.S.,11 meses, masculino, natural de Niterói, RJ, foi internado no Hospital Universitário Antônio Pedro em 19/4/96, com quadro de desnutrição, pneumonia aguda e otite externa à direita. Achava-se hipocorado, apático, emagrecido, com desenvolvimento inferior ao esperado para sua idade e com queda do estado geral. Tinha queixa de otalgia, apresentava febre, tosse e otorréia discreta em ouvido direito. Apresentava 4,4mg/dl de proteínas séricas totais, 3,2mg/dl de albumina e 1,2mg/dl de globulina, hematócrito de 34,3%, hemoglobina 11,1mg/dl e VHS aumentado.
Foi instituído tratamento clínico com oxacilina e ceftriaxome intravenosos. Houve melhora da infecção pulmonar, porém o paciente evoluiu após 20 dias com extensa necrose do conduto auditivo externo direito e lesão circular enegrecida e fétida, coberta por secreção purulenta (Figura 1).
Figura 1 - Lesão necrótica em conduto auditivo externo direito.
Figura 2 - Debridamento cirúrgico das áreas necróticas.
O paciente foi, então, submetido a debridamento cirúrgico das áreas necróticas. Foi necessária ressecção extensa das paredes anterior e posterior do conduto auditivo externo direito (Figura 2). Foi retirado material para estudo bacteriológico e a peça foi enviada para estudo histopatológico. Foi iniciada antibioticoterapia com ceftazidime intravenoso, que foi mantida desde o ato cirúrgico, por seis semanas, junto a suporte nutricional. Foram realizados curativos locais diários com solução de ácido acético a 2%.
Houve isolamento de Pseudomonas sp, a partir do material enviado para cultura e, à microscopia, observou-se tecido comprometido por processo inflamatório necrosante, com presença de numerosas bactérias. O limite cirúrgico se encontrava afetado por processo inflamatório.
Houve boa resposta ao tratamento e cura da infecção, comprovada pela observação clínica e pelos dados laboratoriais. O paciente recebeu alta para acompanhamento ambulatorial.
DISCUSSÃOO estado de imunocompetência do paciente se achava comprometido pela má nutrição, o que propiciou a instalação de infecção grave necrosante: a OEM.
Foi feito diagnóstico basicamente clínico, por causa da dificuldade que houve para a realização dos exames complementares, da tomografia computadorizada e da cintilografia. Foi feito controle do tratamento através da verificação do índice da velocidade de llemossedimentação. O exame bacteriológico revelou a presença de Pseudomonas sp. no material estudado e o exame histopatológico foi compatível cola infecção necrosante do conduto auditivo externo de origem bacteriana.
O procedimento cirúrgico tornou-se indispensável em razão do agravamento da doença e da necessidade de debridamento das áreas necróticas.
O tratamento cirúrgico e a antibioticoterapia com ceftazidime foram eficazes para a cura da infecção.
CONCLUSÃOEste caso se soma a outros cinco, semelhantes, atendidos pelo Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Universitária Antonio Pedro nos últimos seis anos, e apresentados no Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, em 1990 (Figuras 3 a 7). Como nos casos anteriores, chama a atenção o fato de que a doença (OEM) estava ligada a desnutrição em criança.
A administração de novas drogas antimicrobiana: modificou o prognóstico da otite externa maligna. O uso de ceftazidime intravenoso em doses plenas tem trazido bons resultados terapêuticos. O uso de quinolonas orais promete trazer benefícios ainda maiores3.
Figura 3 - Aspectos evolutivos de otite externa maligna.
O ideal seria poder confirmar o diagnóstico de OEM pela cintilografia por Tc99m e acompanhar a evolução clínica pela cintilografia por Ga677.
Deve se atentar, principalmente em locais onde há maior carência, como no interior do País, para a ocorrência desse tipo de infecção em crianças desnutridas.
A OEM que passar despercebida, sem diagnóstico correto, não receberá tratamento adequado e possivelmente terá evolução fatal.
Figura 4 - Otite externa maligna esquerda acompanhada de paralisia facial.
Figura 5 - Otite externa maligna esquerda agravada mesmo em uso de antibiótico.
Figura 6 - Otite externa maligna esquerda acompanhada de paralisia facia.
Figura 7. Otite externa maligna direita.
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* Professor Titular e Chefe do Serviço de Otorrinolaringologia da U.F.F.
** Professora Auxiliar da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da U.F.F.
*** Professor Adjunto da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da U.F.F.
**** Pós-Graduando do Departamento de Cirurgia Geral e Especializada - Otorrinolaringologia - U.F.F.
Instituição: Universidade Federal Fluminense - Hospital Universitário Antonio Pedro - Serviço de Otorrinolaringologia - Rua Marquês do Paraná n° 303 CEP: 24030-210 - Niterói/ RJ - Tel.: 620-2828 Ramal 164
Artigo recebido em 15 de dezembro de 1996. Artigo aceito em 14 de abril de 1997.