INTRODUÇÃOA audição central é o processamento de informação auditiva em tronco e córtex cerebral. Clinicamente, a sua disfunção causaria dificuldade de discriminar, reconhecer, relembrar ou compreender uma informação auditiva já presente, mesmo na pessoa com inteligência e limiares auditivos dentro da normalidade.
Sabe-se que a função auditiva, num nível anatômico mais baixo, sempre afeta a resposta em níveis mais altos. Especificamente, uma perda auditiva coclear afeta medidas de função de tronco cerebral e cortical, e uma lesão de tronco afeta a função cortical (Keith e Pensak, 1991).
Em relação à percepção auditiva, todos os dados existentes com respeito a adultos se referem àqueles com lesões sensorioneurais. Não se encontrou qualquer referência sobre distúrbio perceptivo secundário a hipoacusia condutiva bilateral prolongada. Esta é a razão pela qual se deu tanta ênfase à otite secretora, única perda condutiva bem estudada do ponto de vista perceptivo, devido a suas implicações pedagógicas.
A otite média secretora causa, na sua fase mais severa, perda auditiva de condução que, não raro, é responsável por prejuízo no aproveitamento escolar das crianças que a portam. O estudo da percepção auditiva dessas crianças foi realizado em inúmeros países, sempre por equipes multidisciplinares, onde complicados testes pedagógicos e/ou psicológicos foram realizados, levando-se em conta principalmente o aprendizado e o desenvolvimento da fala, visando responder às seguintes perguntas:
1 - A privação parcial, ainda que temporária, da audição periférica interfere com a central?
2 - Em caso positivo, será que a recuperação imediata desta audição através de procedimento cirúrgico implica a normalização da função central?
Os testes de avaliação perceptiva começaram há muitos anos, com os pesquisadores italianos Callaro e Lazzaroni (1957) e Bocca (1958), através do estudo de percepção de sons da fala em seqüências particulares (palavras) que caracterizam o sistema fonético da língua (Machado, 1993).
Só mais recentemente, trabalhos adaptando testes de audição central para o Português (Cenamo, 1991; Machado, 1993) possibilitaram utilizar alguns destes testes, já largamente difundidos na comunidade internacional.
Em 1993, o teste SSW, originalmente em Inglês, do professor Katz, foi adaptado ao Português.
Keith (1982) confirma que o SSW, entre outras vantagens ajuda a avaliar:
- maturidade das vias auditivas;
- desenvolvimento de linguagem;
- percepção condutiva em geral.
Na criança, a percepção auditiva é mais próxima do normal, porque a plasticidade do cérebro imaturo leva à uma reorganização funcional, ao contrário do que ocorre no adulto, que tem padrão de deficiência mais específico e severo (Keith e Jerger, 1990).
O SSW, por ser de execução um pouco mais complexa, é utilizado na avaliação de pacientes maiores de cinco anos. Tendo em vista que, epidemiologicamente, a otite média secretora tem sua incidência maior justamente abaixo desta idade, acredita-se não ser o melhor instrumento para avaliar audição central nesta faixa etária, bem como, não ser esta a patologia mais indicada para estudar os distúrbios perceptivos daí decorrentes, pela flutuação auditiva que pode apresentar.
O SSW se presta bem na avaliação de adultos; e a estapedectomia e/ou estapedotomia, que possibilitam a recuperação súbita da perda auditiva periférica, poderiam ser um bom objeto de avaliação deste estudo, mormente por a otosclerose ser progressiva e não sujeita às oscilações auditivas da otite secretora, sendo portanto, a mais indicada, desde que bilateral.
Neste trabalho, em conseqüência, procuramos respostas às seguintes questões:
1 - Existem, como na criança com OMS, reflexos auditivos centrais no adulto otosclerótico, pela privação periférica?
2 - Em caso positivo, seriam estes reflexos passíveis de recuperação após cirurgia bem sucedida, ou seja: teria o cérebro do adulto a plasticidade conhecida do SNC da criança?
3 - Uma vez que a literatura internacional confirma ser a discriminação vocal no otosclerótico boa, não importa se operado ou não, seria o SSW um instrumento capaz de diferenciar esta situação (perda condutiva ou audição normalizada)? Seria o SSW capaz de responder se a estapedectomia melhora a percepção auditiva central?
METODOLOGIAO teste SSW
Consiste da apresentação, via uma fita gravada, de pares de expressões espondaicas: uma entra no ouvido direito e a outra no ouvido esquerdo, parcialmente sobrepostas, com o início de uma delas retardado em relação à primeira. O segundo monossílabo da primeira expressão e o primeiro da segunda coincidem em termos de tempo, isto é: eles são apresentados ao mesmo tempo, um em cada ouvido, sobrepostos em nível de reconhecimento, sendo esta condição chamada de "competitiva" ou "dicótica". Os outros monossílabos - o primeiro da primeira expressão e o segundo da outra - são referidos como dados em condição "não-competitiva", por serem apresentados isoladamente. A tarefa do paciente é dicótica, ou seja, deve reconhecer ambas as expressões, na seqüência apresentada.
Exemplo de um item:
A resposta esperada para este item é: "nem um, que é", nesta seqüência.
Já foi dito, também, que cada item é montado de forma que o primeiro monossílabo e o último componham um terceiro espondeu. No exemplo acima, se o sujeito "perde" os monossílabos apresentados simultaneamente (competitivos), possivelmente vai responder "nem é" (mas pode, também, ocorrer uma resposta com outras substituições que alteram o estímulo dado, constituindo um erro).
Metade dos itens são apresentados iniciando num ouvido e a outra metade no outro ouvido, alternadamente (vide Anexos). Assim, os itens de números ímpares têm início num ouvido, enquanto que os de números pares iniciam no outro, alternando sistematicamente. Exemplo:
Os itens do Teste SSW consistem, portanto, na apresentação de sinais de fala fáceis e estáveis, em duas condições - competitiva e não-competitiva - com início alternado para ouvido direito e esquerdo. Os erros podem refletir um comprometimento físico, quando há lesão ou a dificuldade perceptiva.
Fita Gravada:
"Você vai ouvir alguns grupos de palavras, que vão ser sentadas, às vezes, sozinhas num ouvido ou, às vezes, as, ao mesmo tempo, nos dois ouvidos. Assim que terminar grupo de palavras, eu gostaria de que você repetisse tudo ouviu. Tente mesmo quando estiver em dúvida. Entendeu? pronto? Então vamos começar!"
Figura 1. Representação esquemática de um item do SSW.
Terminada esta explicação, seguem os quarenta itens do teste, com dez segundos de intervalo entre os estímulos, tempo julgado suficiente para o sujeito responder, inclusive no caso de haver demora de resposta e em caso de o examinador precisar comentar algo (Figura 1).
A via contralateral forte é representada pelas linhas inteiras e a via ipsilateral mais fraca pelas linhas tracejadas. A lesão do centro de recepção auditiva direita do lobo temporal é indicada pela mancha negra. O indivíduo omite QUE, por ele não poder ser processado pela lesão da recepção auditiva direita e é "substituído" pelo UM que usa a via dominante.
De acordo com o método utilizado para ser obtida a pontuação no teste, que pode ser relativo ao total de acertos ou de erros, a análise e interpretação dos resultados revelam outros dados perceptivos do sistema auditivo central.
Quando o escore se refere a cada um dos ouvidos, pode se verificar qual é o dominante e como está a atenção (eficiência de detecção, resistência à interferência) do ouvido dominante, além de outras assimetrias perceptivas (Keith, 1984) próprias unicamente do sistema auditivo.
Seleção de Pacientes
Foram selecionados 39 pacientes portadores de otosclerose que compareceram consecutivamente ao serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (n=17), ou em consultório particular (n=22), no período de 1°/9/1994 a 20/12/1995 e que foram submetidos ao teste SSW.
Os pacientes foram divididos nos grupos:
Grupo I - Pré-operatório:
Vinte e sete pacientes com perda condutiva bilateral, isto é, com "gap" condutivo nas freqüências de 500 -1.000 - 2.000 Hz 3 dBs, e perda sensorioneural ausente ou leve (25/30 dBs) nestas mesmas freqüências, (9 homens, 18 mulheres).
Grupo II - Pós-operatório: estapedectomia e/ou estapedotomia unilateral:
Vinte e um pacientes que tiveram sua perda condutiva no ouvido operado < 10 dBs, restando eventualmente uma hipoacusia que chamamos predominantemente unilateral (ainda poderia existir o "gap" residual já citado, bem como perda sensorial em agudos, 9 homens, 12 mulheres).
Grupo III - Pré e pós-operatório:
Nove dos 27 pacientes do grupo 1, que após cirurgia unilateral, por preencherem os critérios do grupo II, foram aí também incluídos. Estes tiveram avaliação de percepção auditiva no pré e pós-operatório. Utilizamos um tempo mínimo de quatro meses entre a cirurgia (melhora de audição periférica) e o teste SSW, por julgarmos ser o tempo suficiente para uma recuperação no processamento central (com muito mais tempo poderíamos perder o paciente de vista, 6 homens, 3 mulheres).
Grupo IV - Controle:
Dezenove normouvintes voluntários, com audiometria normal e sem queixas (9 homens, 10 mulheres). Os motivos pelos quais os 27 elementos do grupo I não pertencem ao grupo II são fundamentalmente três: não foram operados, resultado cirúrgico insatisfatório e perda de seguimento ambulatorial.
Por outro lado, foram incluídos no grupo II todos os pacientes em que se encontrou a audição recuperada em um dos lados, não importando onde e quando tenham sido operados, desde que satisfizessem os critérios já descritos. Isto explica a diferença dos elementos dos dois grupos. A Figura 2 ilustra resumidamente o que foi descrito. Foram excluídos os otoscleróticos unilaterais; com outras patologias cócleo-vestibulares associadas; alterações neuro-psiquiãtricas e os de língua nativa que não o Português.
RESULTADOSProcedeu-se ao tratamento estatístico julgado adequado de acordo com a natureza dos dados e com tamanho dos grupos analisados neste estudo, razão pela qual utilizaram-se somente médias e distribuições de freqüência dos resultados dos exames SSW. Foram, então, elaborados quatro tabelas, que contêm:
- médias de idade em anos para os diversos grupos;
- médias de tempo de seguimento pós-operatório em meses, para os grupos III e II;
- distribuição dos resultados dos exames SSW, para os diversos grupos.
A maior idade média 48±6 anos, ocorreu no grupo III de nove pacientes, sendo a idade mínima para este grupo igual a 38 e a máxima 58 anos (Tabela 1).
Figura 2. Grupo 1: 27 otoscleróticos com perda condutiva bilateral; Grupo II: Otoscleróticos operados com perda condutiva unilateral; Grupo III: 9 otoscleróticos, que pertencem aos grupos I e II, avaliados antes e após a cirurgia.