INTRODUÇÃOA artéria carótida comum bifurca-se no bordo superior da cartilagem tireóide. O seu ramo interno penetra na porção petrosa do osso temporal, medialmente ao processo estilóide e anteriormente ao bulbo da jugular, através do canal carotídeo. Após ascensão vertical neste canal, a artéria carótida interna (ACI) sofre deflexão anterior, próxima à cavidade timpânica (da qual, neste ponto, está separada por lâmina óssea de 0,5 rim de espessura em média)1.
Apesar dessa íntima relação, as anormalidades no trajeto da ACI no interior do ouvido médio ocorrem raramente. Foram relatados aproximadamente 45 casos até 19932. Neste artigo, os autores relatam um caso e discutem os aspectos anatômicos, diagnósticos e terapêuticos frente aos dados bibliográficos.
RELATO DO CASON.J.P., do sexo feminino, com 57 anos de idade, branca, procurou assistência médica, com queixas de zumbido pulsátil contínuo e unilateral (à direita), acompanhado de hipoacusia não progressiva ipsilateral, há sete anos. Negava vertigens, otalgia, otorréia ou outras alterações otorrinolaringológicas. A otoscopia, a membrana timpânica direita mostrou-se translúcida, com área hiperemiada pulsátil em quadrante ântero-inferior. A membrana timpânica contralateral apresentou os mesmos achados, porém não era pulsátil. O teste de Rinne mostrou-se negativo em ambos os ouvidos. A audiometria tonal limiar foi compatível com hipoacusia neurossensorial bilateral. A imitanciometria demonstrou curvas tipo A e reflexos estapedianos ausentes.
Suspeitando-se de tumor vascular no ouvido médio, solicitou-se estudo tomográfico computadorizado do osso temporal, onde se observou proeminência dos canais carotídeos para o interior da porção inferior de ambas as caixas timpânicas, com estreitamento das paredes ósseas que circundam as artérias, sendo a ACI esquerda discretamente mais proeminente (Figura 1).
Em razão da natureza benigna dessa alteração, realizou-se acompanhamento ambulatorial periódico, sendo que, após período de seguimento de dois anos, a paciente não apresentou evolução nos seus sintomas.
DISCUSSÃOA) Embriologia e anatomia:
Durante o desenvolvimento embrionário, a circulação carotídea é formada a partir da artéria aorta dorsal primitiva e seus arcos. A primeira e segunda artérias destes arcos formam a artéria mandibular e hióidea primitivas.
Figura 1. Tomografia Computadorizada de osso temporal, em corte coronal, evidenciando proeminência dos canais carotídeos para o interior da porção inferior das caixas timpânicas (setas).
Adjacente à artéria hioidea, está a terceira artéria do arco aórtico que formará a artéria carótida interna (ACI). Quando o embrião está com 6-7 mm de comprimento, a artéria estapediana se ramifica a partir da artéria hioidea e atinge seu maior desenvolvimento com o embrião em 12-15 mm de comprimento. Neste momento, há conexão, via artéria estapediana, entre a ACI e a artéria carótida externa, através de anastomose com a artéria meningéia média. Posteriormente, há involução desta artéria, com condensação do mesoderma, permanecendo o forame obturador do estribo. A artéria hioidea sofre involução semelhante, porém persiste no adulto como a artéria carótido-timpânica3, 4.
No indivíduo adulto, após penetrar no canal carotídeo, a ACI apresenta breve ascenção vertical e, próximo à caixa timpânica e cóclea, faz deflexão anterior. Neste ponto, há fina lâmina óssea separando a caixa timpânica da ACI (com 0,5 mm em média), que pode ser cribriforme na infância e absorvida na velhice2. A este nível, também a ACI está localizada inferior e póstero-medialmente à tuba auditiva. Esta artéria segue, através do forame lacerum do osso esfenoidal, para entrar na fossa média cerebral. Paparella e col., após estudar o canal carotídeo em 1.000 ossos temporais dissecados, encontraram 7,7% de deiscência e 7,4% de microdeiscência dessa lâmina óssea, em média, sendo que esta prevalência diminuía, com a idade. Por outro lado, encontraram, em 15,5% dos ossos, uma lâmina óssea fina, e sua prevalência aumentava com a idade5.
B) Etiologia:
Algumas teorias foram propostas para explicar a apresentação anômala da ACI dentro da caixa timpânica. Uma propõe a ausência da fina lâmina óssea separando o vaso da caixa timpânica. Esta ausência poderia se congênita ou adquirida (por otite média crônica, por exemplo). Como os vasos se alongam com a idade, poderia haver extensão da ACI para a caixa timpânica pela ausência ou incompleta presença dessa lâmina óssea2. É citado também o trauma do osso temporal como causa de aneurisma de ACI no ouvido médio6. Outra teoria propõe que poderia haver persistência anômala de vasos embrionários na caixa timpânica e que esses vasos exerceriam tração sobre a ACI, mantendo-a na caixa, como é exemplificado em alguns relatos2, 7. Há, ainda, outra teoria sugerindo que é o fluxo sangüíneo através de um canal vascular que determina a formação dos vasos. Assim sendo, poderia haver estreitamento distal ao canal carotídeo, forçando o fluxo sangüíneo através dos vasos arteriais próximos à caixa timpânica (artéria timpânica inferior e artéria carótido-timpânica). Esta teoria é sustentada por outros relatos de anomalias vasculares associadas1, 2, 8, 9.
C) Epidemiologia:
Sabe-se que estas anomalias são raras e avaliações a respeito de sua incidência são de difícil obtenção. Até 1993, estima-se que tenham sido descritos somente 45 casos na literatura de língua inglesa2. Glasscock et al. calculam que esta alteração ocorra em cerca de 1% da população3. Outros autores consideram menos que isso'. Curiosamente, estas anormalidades têm ocorrido mais em mulheres, e mais à direita que à esquerda 2,9,10. A ACI aberrante no ouvido médio ocorre mais unilateralmente, sendo descritos; apenas dois casos em que esta anomalia apresentou-se bilateralmente2, 8.
D) Apresentação clínica:
Zumbido pulsátil, sensação de ouvido cheio, hipoacusia condutiva e otalgia intermitente estão entre os sintomas presentes. Cohen et al. relatam que a presença de massa no ouvido médio, na ausência de qualquer outro sintoma, não é usual11. A otoscopia, é possível visualizar massa vermelho-azulada, pulsátil ou não, nos quadrantes inferiores da membrana timpânica (tipo "pôr-do-sol"). A timpanometria pode demonstrar flutuação anormal, sincrônica com os pulsos periféricos do paciente.
Ocorre freqüentemente otite média secretora associada à essa anomalia, o que pode obscurecer a massa no ouvido médio, tornando tanto o diagnóstico clínico quanto o radiológico mais difíceis9. O diagnóstico clínico diferencial deve incluir glomus timpânico, bulbo jugular alto e granuloma de colesterol12.
Investigação radiológica:
A ACI aberrante apresenta aparência típica à tomografia computadorizada de alta resolução. Pode-se notar, nos cortes coronais, que a porção vertical do canal carotídeo interno não está em sua posição normal e que, nos cortes axiais, há ausência da margem óssea póstero-lateral do canal carotídeo9. Lapayowker et al., em 1971, notaram, em um caso de ACI aberrante no ouvido médio, que a artéria se extendia lateralmente a uma linha vertical, orientada caudalmente ao vestíbulo, na projeção ântero-posterior da imagem arteriográfica. Estes mesmos autores investigaram outros 100 arteriogramas normais, e, em nenhum deles, a ACI ultrapassou esta "linha vestibular"8.
O uso da angiografia para confirmação diagnóstica é controverso, principalmente devido à relação risco/ benefício7, 9, 13, 14. Por outro lado, técnicas recentes de ressônancia magnética mostraram bons resultados, com baixa morbidade4.
Tratamento:
A manipulação do ouvido médio deve ser evitada, com o sentido de diminuir a possibilidade de lesão da artéria. Infelizmente, muitos casos na literatura foram descobertos após acidentes cirúrgicos, e alguns destes tiveram complicações neurológicas severas9. Tratamento cirúrgico para esses casos já foi descrito, porém para alguns autores não é recomendado, mesmo nos casos com sintomas severos9, 15. Neste caso, optou-se por não realizar tratamento cirúrgico e a paciente não mostrou evolução dos sintomas, após seguimento de dois anos.
CONCLUSÃOApesar dos poucos casos relatados na literatura, a alta prevalência de deiscência, de microdeiscência e de lâmina óssea fina do canal carotídeo no ouvido médio nos faz pensar que a ACI aberrante seja menos rara do que se supõe. Assim sendo, a avaliação diagnóstica criteriosa deve ser realizada sempre que estivermos diante de sinais e sintomas sugestivos de massa vascular no ouvido médio.
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* Médico Otorrinolaringologista do Serviço de Otorrinolaringologia do Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre (CHSCPA).
** Médicos Residentes do Serviço de Otorrinolaringologia do Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre (CHSCPA).
Endereço para correspondência: Dr. Guilherme Franche - Rua Mostardeiro, 333/508 - Porto Alegre/ RS - CEP: 90430-001 - Telefone: (051) 346-1415.
Artigo aceito em 11 de novembro de 1996.