Santa Maria - (Rio Grande do Sul)
A clinica tem as suas surprezas e os seus casos interessantes, que fazem meditar e claudicar conhecimentos e teorías aceitas e quasi incontestaveis.
O caso que vamos relatar é um deles, mais como curiosidade clinica do que raridade, pois são sem numero os casos de corpos extranhos intracrâneanos, principalmente durante as guerras, porem, a maioria deles, apresentam sequelas graves e permanentes.
O nosso caso foi o seguinte: No dia 8 de Agosto de 1938, apareceu em nosso consultorio, enviado pelo eminente colega Dr. Francisco Mariano da Rocha, o Sr. J. N. C., com 27 anos de idade, agricultor, filho de F. C., branco, brasileiro e residente em Tupancy, municipio de S. Sepé, e que contou o seguinte: ha dois meses foi vitima de uma agressão a noite, depois da saída de um baile, no qual ele fazia o papel de musico, pois é gaiteiro nas horas vagas, e recebeu um tiro de revolver na face esquerda, cujo orificio de entrada estava situado no sulco naso-genial, logo acima do bigode e de direção de deante para traz.
Com o ferimento, caiu do cavalo em que montava, permanecendo em estado de côma durante 22 dias, havendo grande hemorragia pelo ferimento e pelo ouvido esquerdo, e, depois que parou o sangue, ficou com o olho saltado para fóra (sic) e completamente aberto.
No fim de alguns dias, havendo estado sempre sem assistência médica, pois declarou o pae, que pensava que o filho morresse, e, sendo pobre, não podia chamar médico, notaram que o olho estava ficando branco no centro e muito vermelho ao rêdor.
No fim de 22 dias acordou, e, então, chamaram um curandeiro que aconselhou a busca de recursos médicos, porem, sendo agricultores pobres e ignorantes não o fizeram, e somente 2 meses após o ferimento é que vieram consultar.
Ao exame constatamos o seguinte:
Olho esquerdo completamente abérto, globo em enorme protusão, vermelho, quemótico e com uma ulceração central da córnea e em franca panoftalmía; paralisia da face esquerda, total, purgação do ouvido esquerdo, fétida.
Nesse mesmo dia mandamos tirar duas radiografias de face e de perfil, (figs 1ª. e 2ª.) e por elas pudemos seguir os trajetos dos fragmentos do projétil, e apreciar as suas inumeras divisões.
Aconselhamos então: a) evisceração imediata do globo ocular, o que foi feito em seguida, e: b) revisão do ferimento do ouvido e da mastoide e consequente limpeza.
Alguns dias depois da evisceração, abrimos a mastoide, que estava despedaçada e retiramos diversos sequestros osseos e alguns fragmentos metalicos da bala.
As sequencial operatorias foram relativamente normais, estando a operação da mastoide completamente cicatrizada em 42 dias.
Agora o interessante do caso: a-pesar de estarem no interior do crânio dois pedaços grandes e diversos pequenos de bala de chumbo, de ter estado o enfermo 22 dias em coma, somente persiste a sua paralisia facial, nada mais havendo para o lado do sensório; da sensibilidade ou motilidade, continuando o ferido a fazer a sua vida habitual, e a ser o musico dos bailes da campanha, como eximio tocador de gaita, e sem sentir absolutamente nada, manejando o teclado com a desenvoltura anterior.
Atendendo-se aos trajetos dos fragmentos, tanto grandes como pequenos, se póde vêr que estão em franca massa cerebral, em diversas zonas, que se não pódem chamar de silenciosas, e, apesar disso, não apresentou nem apresenta sequela alguma.
Este caso é bem sugestivo da complacencia muitas vezes comprovada e demonstrada da substancia cerebral, abrigando em seu seio corpos extranhos de volume variavel, sem manifestações exteriores para o lado da motilidade, da sensibilidade ou do sensório, aberrando da teoria das localisações cerebraes.
O enfermo em apreço, foi visto pelo Dr. Francisco Mariano da Rocha, em sua estância, pois o mesmo é posteiro e agricultor na propriedade desse colega, que muito se interessou pelo caso, havendo me transmitido a informação de que continua otimamente bem, apesar de sua paralisia facial total, unica sequela de tão grave ferimento.
Fig. 1
Fig. 2