As fraturas do crânio, sobretudo as da base, representam sempre motivo de justas apreensões quanto à evolução e prognóstico do caso clínico, dependentes da maior ou menor extensão do processo hemorrágico intracraniano, e da importância dos pontos atingidos pelo mesmo, - constituindo essa hemorragia um fator de destruição que se vem sobrepor áquele já ocasionado pelo traumatismo e fratura - e dependentes ainda de uma possível infecção secundária das meninges e do encéfalo, pela comunicação do traço de fratura com o meio exterior.
Os estados de choque ou de comoção cerebral observam-se frequentemente em consequência dessas fraturas, pela ação direta ou de visinhança sobre os centros nervosos.
LEJARS, em seu Tratado de Cirurgia de Urgência afirma: "Aprés les fratures de la base du crâne, on meurt de meningoencephalite, c'est-à-dire, d'infection; or, l'infection a pour voie de pénétration dans la cavité cranienne le trait de frature, qui le fait communiquer avec le nez, le pharynx ou l'oreille."
Toda e qualquer observação clínica que resulte em parte diferente da evolução habitual de casos semelhantes, merece a nosso ver divulgação e comentários, pois do confronto e balanço geral é que se pode firmar, ou modificar e melhorar um conceito estabelecido.
Fig. 1
Fig. 2
Por essas razões julgamos oportuna a comunicação de um caso observado em nosso serviço do Hospital Central da Marinha, caso de "Fratura do Crânio (abóbada e base), interessando o ouvido, com paralisia facial."
Nosso doente, que sofreu uma quéda de que resultou fratura do crânio (frontal e rochedo), pôde levantar-se e caminhar para casa, e bem assim comparecer ao trabalho no dia seguinte. Essa fratura do rochedo produziu-lhe paralisia facial e hemorragia para o ouvido médio, o qual infectou-se a seguir, sem que a infecção ganhasse os tecidos meningo-encefalicas, o que lhe permitiu evolução benigna do acidente e rápida cura.
Passamos a apresentar, resumidamente, a observação desse caso:
P. S. operário do Arsenal de Marinha, 23 anos, côr preta. Em 31-3-40 ar. 19 horas cai de um bonde, batendo com a cabeça no sólo. Levanta-se, sem apresentar qualquer ferimento visivel. Sente tonteiras, intensos zumbidos e surdes em O. D.
Ausência de estado de comoção ou de choque. Embora acompanhado, regressa à casa caminhando com seus próprios pés. Não passa bem à noite. Fortes tonteiras, dôres na cabeça, zoeiras em O. D. Vomitou por duas vezes. Ao amanhecer tem a boca repuxada para a E. e não pode fechar o olho direito. Comparece ao Arsenal de Marinha e é encaminhado à consulta na Clínica Oto-Rino do Hospital da Marinha (ficha n.° 7.895).
Aí constata-se uma paralisia facial periférica total, do lado direito. O tímpano D. está integro. E' pedida uma radiografia do crânio visando possivel fratura do tempo al direito, sendo solicitada sua hospitalisação. Nos dias 2 e 3 comparece o serviço, neste último volta ao Ambulatório da Clínica, quando lhe é feita a paracentése do tímpano o qual, embora integro, dava a impressão, por transparência, de existir sangue coagulado na caixa, o que realmente se verificou.
Baixou no dia 4. 2 radiografias foram feitas nesse dia e revelaram a existência de fratura em T do frontal direito, disjunção fronto-parietal e do temporal direito. Radiologista: Dr. M. Barros Barreto.
Nos dias subsequentes instalou-se discreta supuração em O. D. e cederam ou se atenuaram os fenômeno cocleo-vestibulares. Em 16-4 a acumetria, feita por diapasão e relógio revelou pequena hipoacusía em O. D.
Nesta data, havendo supuração em O, D. com aumento de condutibilidade óssea, essa fórmula pareceu-nos mixta de transmissão e percepção. Então a paralisia facial já havia regredido em parte, pois o doente já podia fazer a oclusão do olho.
ROMBERG: negativo, Pravas do index: normais. A temperatura só por duas vezes foi ligeiramente acima de 37° (dias 5 e 9). Estado geral sempre bom. Teve alta do Hospital em 30-4, estando já o ouvido sêco, o tímpano cicatrisado desde o dia 27, havendo a paralisia facial melhorado lenta e gradativamente.
Em 27-5, comparecendo à Clínica verificou-se completa regressão da paralisia facial constatando-se só então uma pequena depressão na região frontal direita. Novamente examinado em 26-6 quanto à função auditiva, pelo audiómetro elétrico (BRENCO):
O. D.-
Perda de audição aérea de 4 %
Perda de audição óssea de 38,64%
O. E.-
Perda de audição aérea de 2,4 %
Perda de audição óssea de 21,28%
AUDIOMETRO ELETRICO BRENCO 34-C CHART
AUDIOMETRO ELETRICO BRENCO 34-C CHART
Repetido o exame por diapasão e relógio (como fôra feito à 1ª. vez):
(Pequeno deficit em O. D.).
EXAME VESTIBULAR em 29-6 e 3-7
Provas estato - cinética - Ausência de Nistagmo espontâneo
- Ausência de desvio expontâneo do index
- ROMBERG e ROMBERG sensibilisado: Negativos
- BABINSKI - WEILL - Ausência de desvio.
Provas rotatórias:
E à D - Nistagmo = 20" (pequena amplitude)
D à E - Nistagmo = 22" (pequena amplitude)
Provas calóricas:
Com agua fria a 15° (40 cc. cada ouvido)I
O. D.-
Nistagmo de pequena amplitude e curta duração.
Desvio do index em abdução de 12 cms.
Desvio do index em flexão de 14 cms.
O. E.-
Nistagmo rápido, de grande amplitude.
Desvio do index em abdução de 16 cms.
Desvio do index em flexão de 23 cms.
Com agua quente a 50°. (60 cc. para cada ouvido)
O. D.-
Nistagmo de pequena amplitude, lento.
Ausência do desvio do index em adução e em extensão.
O.E.-
Nistagmo franco, rápido, de grande amplitude.
Desvio do index em adução de 10 cms.
Ausência de desvio em extensão.
Portanto:
Pequena hipovalência de L. D. (labirinto direito) com relação a L. E. nas provas calóricas.
Assim uma fratura do crânio que foi de abóbada e de base, diagnosticada antes do exame radiográfico pela paralisia facial e hemorragia do ouvido médio após queda, essa fratura não produziu nem mesmo um estado de sub-comoção, permitindo ao doente caminhar para casa. A comunicação do fóco de fratura do rochedo com o meio exterior através do ouvido médio, não favoreceu propagar-se a infecção aos orgãos intracranianos, apesar de ter havido otite média supurada. Quanto ao ouvido interno, acreditamos que a surdes acentuada de O. D. que acusou logo após o traumatismo (e que não foi verificada, medida dentro dos primeiros dias) deve ser atribuída principalmente à hemorragia que se processou no ouvido médio, enchendo-o, e que o ouvido interno só indiretamente (talvez por hiperemia ou edema de visinhança) tenha sido acometido, pois que seria pouco provável uma recuperação funcional tão grande como a que obteve, para elementos tão sensiveis e delicados como o ouvido interno e nervo auditivo. Não teria sido portanto atingido diretamente pela fratura. Atualmente resta um pequeno déficit nas funções coclear e vestibular de O. D., tão pequeno que é praticamente nula a diferença com relação a O. E.
O facial sim. Esse esteve completamente paralisado e terá sido diretamente atingido pelo traço de, fratura, embora certamente não seccionado, em vista da regressão total e relativamente rápida, que se verificou.
O 7.° par costuma ser chamado de nervo sem vergonha, pela relativa facilidade com que retoma suas funções normais após haver sofrido a injuria de fatores vários, traumáticos, tóxicos ou infecciosos, o que não sóe acontecer com os outros nervos cranianos em geral. Qualificação injusta porque usa de um termo pejorativo para caracterizar um procedimento de que somos beneficiários. Assim acontecesse tambem aos outros, os que são nobres!
O estado geral do doente que sempre foi bom, como já dissemos, funcionalmente já era excelente com poucos dias do acidente. Atualmente acusa ligeira cefaléa e nada mais, estando trabalhando normalmente. Como vedes (o doente é apresentado a exame) nada mais resta da paralisia facial, a otoscopia é normal, a depressão ao nivel do frontal direito, onde houve fratura, é perceptível à simples inspeção.
O que dizer quanto à possibilidade de complicações infecciosas tardias? Elas têm sido verificadas mêses após o acidente. Nosso doente entrou no 6.° mês. Nós o conservamos sob verificação periódica.
As fraturas do crânio, segundo o conceito de ARAM (1844) que se tornou clássico, quando atingem a base, o fazem por irradiação de fratura da abóbada pois só raramente se apresentam como fraturas de base isoladamente. Essa irradiação segue uma orientação tal que as do frontal geralmente se irradiam ao andar superior; as do temporal ao andar médio e as occipital ao andar inferior. Em nosso caso tal não se deu, pois a abóbada fraturou-se no frontal e a base foi atingida no andar médio. Segundo FELIZET o ponto fraco do rochedo é o fundo do conduto auditivo externo "no ponto onde se encontram a caixa do tímpano, o caracol, o buraco carotidiano e a escavação formada pela fossa jugular." E' a séde da fratura transversal do rochedo, ou perpendicular ao eixo. Essa localisação explica a sintomatologia apresentada por nosso doente.
O interesse do caso está, a nosso ver, na evolução benigna dessa fratura do crânio.
1.° permitiu que o doente permanecesse ambulante;
2.° a paralisia do 7.° par, total, cedeu rápida e completamente;
3.° não houve infecção propagada pela traço de fratura à cavidade craniana, a despeito da otite média supurada que se constituiu durante alguns dias.
Já se passaram 6 mêses do acidente, e vemos cada vez menos provável o aparecimento tardio de uma manifestação infecciosa meningo-encefálica.
(I) Comunicação feita à Sociedade de Oto-Rino-Laringologia do Rio de janeiro, em 6-9-940.
(*) Chefe do serviço de O.R.L. do Hospital Central da Marinha. Rio de janeiro.