INTRODUÇÃOHá que se diferenciar na lingua portuguesa o que chamamos de estenose coanal (adquirida), da imperfuração coanal (congênita). Em lingua inglesa, não há está diferenciação e ambos os termos se confundem.
As iatrogenias são definidas como alterações patológicas decorrentes ou resultantes da atividade de médicos e cirurgiões durante quaisquer tipos de tratamento1, podendo surgir em virtude de múltiplos e variados fatores involuntários e inevitáveis, contudo a negligência, a imprudência e a imperícia são fatores predisponentes e evitáveis. Sucesso e fracasso são resultados inerentes aos atos médicos, clínicos ou cirúrgicos e principalmente nestes, por se constituírem em processos invasivos.
Lesões amplas da mucosa podem levar à estenose de qualquer segmento das fossas nasais, inclusive das coanas, como foi observado neste caso.
As intervenções cirúrgicas cavitárias exigem boa visualiza, com iluminação e ampliação adequadas de imagens. O caso descrito nos alerta para o cuidado que deve ser tomado na preservação da mucosa nasal, objetivo que pode ser obtido com treinamento, material cirúrgico, equipamento de visualização tamponamento adequados.
RELATO DE CASOPaciente de 43 anos, natural de Rondônia, procedente de Franco da Rocha, SP, portadora de obstrução nasal severa há vários anos, com piora à noite e em contato com odores fortes e alérgenos, como poeira. Procurou o Serviço de Otorrinolaringologia de um Hospital Universitário brasileiro há dois anos, onde foi submetida a uma intervenção cirúrgica não especificada. Após a cirurgia, referiu alguma melhora, mas algumas semanas depois houve recidiva progressiva da obstrução nasal, culminando com obstrução severa e respiração bucal de suplência.
À rinoscopia anterior, foi visualizada estenose de válvula nasal à esquerda e pequena perfuração septal anterior com cerca de 3 milímetros de diâmetro, arredondada e lisa, além de cavidade nasal direita ampla com ausência do corneto inferior ipsilateral e o corneto inferior contralateral de pequenas dimensões. À endoscopia rígida pôde ser observada estenose coanal completa à direita e parcial, maior que 80% do diâmetro da coana, à esquerda (Figura 1). Foi realizada tomografia computadorizada que evidenciou estenose coanal bilateral, sem componente ósseo e espessamento da mucosa do antro maxilar direito (Figura 2).
Em seus antecedentes mórbidos, referiu ter sido acometida por leishmaniose tegumentar na infância, quando recebeu o tratamento adequado, tendo sido considerada curada.
A correção cirúrgica para a reabertura das coanas foi efetuada por via transpalatina, tendo sido aberto o pálato duro nível da mucosa, em forma de "U", respeitando-se as artérias palatinas do forame palatino posterior, de vez que sua lesão pode ocasionar necrose do pálato. A mucosa foi descolada até a transição entre os pálatos duro e mole, desinserindo-se o retalho do bordo do pálato duro e tendo sido realizada, a seguir, a abertura mucosa rinofaríngea, permitindo acesso às coanas. Foi removi parte da estrutura óssea do rebordo posterior do palato, além da cauda do septo posterior ósseo ao nível das coanas e o tecido fibrótico que as ocluía, reconstituindo assim a perviedade coanal.
Utilizando uma sonda plástica ureteral como guia, passado um fragmento de sonda de intubação endotraqueal número 32, dobrada em "U" (Figura 3), de forma a permitir a manutenção da patência das coanas (Figura 4). Como medida de precaução, foram injetados cerca de 300 mg de hidrocortisona na região, para diminuir o processo inflamatório, na tentativa de dificultar a recidiva da estenose.
Figura 1 - Visão telescópica da rinofaringe, mostrando a estenose coanal completa à direita e parcial à esquerda.
Figura 2 - Tomografia computadorizada, corte axial, mostrando a estenose mucosa completa de coana à direita e parcial à esquerda.
Figura 3 - Sonda de entubação modelada para posicionamento nas coanas.
Figura 4 - Visão endoseópica intra-nasal da sonda posicionada na coana direita.
O pálato foi suturado e o fragmento da sonda endotraqueal locado de forma estável nas neocoanas, sem necessidade de fixação.
A reabertura cirúrgica das coanas cumpriu seu objetivo e o pós-operatório imediato a paciente já apresentava melhora do padrão respiratório, mesmo com a sonda obstruída por crostas, evidenciadas à nasofibroscopia. A via de acesso transpalatina foi escolhida em detrimento da endonasal em virtude da maior abertura das coanas que é possível ser obtida através da remoção da porção posterior do septo ósseo, tornando quase impossível a recidiva da estenose a médio e longo prazo. A única intercorrência pós-operatória ocorreu no décimo-quinto dia, quando a paciente apresentou cefaléia e algia nasal, tendo sido diagnosticada como causa, o contato da sonda com o corneto médio, o que foi facilmente controlado com a suave mobilização da sonda e com o uso de analgésicos e corticosteróide tópico. Após oito meses, foi retirada a sonda de ambas as coanas, sob anestesia geral, com cura completa dos sintomas. À endoscopia rígida, as coanas apresentavam-se amplas, permitindo boa passagem do fluxo aéreo, não havendo sinais de nova estenose, formação de tecido de granulação ou sinéquias até 12 meses de seguimento com controle endoscópico mensal.
A reação de Montenegro revelou-se positiva com 20 milímetros de enduração. A imunofluorescência indireta para leislimaniose foi positiva com título de 1/8. A reação de Machado Guerreiro foi negativa.
DISCUSSÃOA incidência de iatrogenias médicas é inversamente proporcional grau de experiência do cirurgião. Utilizando-se instrumental adequado, cresce a possibilidade de ocorrência de complicações e seqüelas, muitas vezes devidas ainda a má visualização do campo operatório, por iluminação deficiente, associada ou não a inadequada ampliação das imagens.
Nas cirurgias nasossinusaìs, o campo operatório é restrito e sangramento conseqüente a grande irrigação loco-regional muitas vezes dificulta, ou mesmo impossibilita, o bom andamento da intervenção, decorrendo deste fato a necessidade freqüente de infiltrações com vasoconstritores, o que também permite um melhor campo operatório, reduzindo a possibilidade de iatrogenias.
Neste caso , além do antecedente cirúrgico, há o antecedente de Leishmaniose. A leishmaniose Tegumentar Americana é doença crônica específica transmitida pelo flebótomo e seu agente etiológico no Brasil é a Leishmania brasiliensis, responsável pela infecção cutânea e de mucosas. Instala-se de preferência nas regiões habitualmente descobertas do corpo, que são mais expostas cadas de flebótomos, ocorrendo a partir daí a disseminação hematogênica e linfática. A doença se manifesta na maioria das vezes por lesões ulceradas, algumas vezes recobertas por crostas. A ulceração geralmente é indolor e apresenta contorno circular, com bordos elevados, talhados a pique, lembrando a imagem de cratera, pouco exsudativa, sem tendência ao sangramento espontâneo e com fundo granuloso de coloração avermelhada, às vezes amarelada quando há deposição de fibrina.2
As lesões mucosas instalam-se preferencialmente nas vias aéreas superiores, acometendo as estruturas anatômicas mais "resfriadas" pela passagem do ar inspirado, especialmente o septo nasal. Com a evolução do processo, a cartilagem do septo sofre destruição completa, algumas vezes com queda da ponta. Outras vezes predomina o caráter ulcerativo, perfurando o dorso do nariz ou destruindo partes moles que moldam o vestíbulo nasal, atingindo até o lábio superior. Na boca, orofaringe e laringe, as lesões assumem aspecto infiltrativo. Com menor freqüência, observa-se destruição da úvula e pálato mole2.
O diagnóstico de leishmaniose deve ser feito com a associação do teste de Montenegro e ELISA. Este é método mais específico que o teste de imunofluorescência indireta, que pode dar resultado falso positivo, em indivíduos infectados pelo Trypanosoma cruzi, agente etiológico da Doença de Chagas, comum no Brasil. 2
Na paciente descrita no presente trabalho, apesar do antecedente de leishmaniose na infância, a obstrução respiratória somente surgiu cerca de trinta anos após esta doença ter sido tratada e curada (sic), o que nos faz pensar em etiologia iatrogênica para a obstrução, uma vez que não obedece ao padrão de lesão característico da leishmaniose, que acomete regiões nasais anteriores com freqüência extremamente maior que as regiões posteriores das cavidades nasais. Até que ponto a leishmaniose contribuiu para a estenose, será uma incógnita. O que se pode afirmar é que a estenose coanal bilateral iatrogênica e/ou de origem infecciosa específica é lesão extremamente rara, sem descrição de casos similares na literatura pesquisada.
Todo procedimento médico está sujeito a complicações contudo nos cabe minimizá-las. Para tal, o melhor começo é o bom senso, saber identificar limites pessoais e não os ultrapassar. O treinamento cirúrgico deve ser cada vez mais rigoroso, para aprimoramento da técnica.
Não foi encontrado na literatura nenhum caso rela semelhante a este. Os autores julgaram importante o relato deste caso, pois ele ilustra a possibilidade de associação de patologias, uma infecciosa específica e outra iatrogênica, apesar das evidências de que se trate de etiologia iatrogênica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. DORLAND'S - Ilustrated Medical Dictionary. 28th edition, Philadelphia, W.B. Saunders Company, 1994, p. 815.
2. VERONESI, R. - Doenças Infecciosas e Parasitárias. 8ª edição, Rio de Janeiro, Guanabara-Koogan, p.750-759.
*Professor Auxiliar da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí, São Paulo, Brasil.
**Professor Titular da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí, São Paulo, Brasil.
***Médico Estagiário da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí,São Paulo, Brasil
****Médica ex-residente da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí, São Paulo, Brasil
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Trabalho apresentado no V Congresso Brasileiro de Rinologia, como tema livre-7 a 9 de setembro de 1994. Salvador, Bahia.
Artigo recebido em 3 de abril de 1996. Artigo aceito em 15 de maio de 1996.