A associação de uma atresia congênita do conduto auditivo externo com um colesteatoma foi descrita raríssima vezes. O colesteatoma atrás de uma atresia é provavelmente congênito, o que se explica pela própria embriogênese do ouvido.
Apresentamos a descrição de um caso com a análise do seu significado embriológico. É nosso objetivo alertar que medialmente à uma placa de atresia meatal congênita pode haver um colesteatoma.
EMBRIOLOGIAO conduto auditivo externo desenvolve-se a partir de três mecanismos sucessivos.
A partir da 4' semana fetal, o 1 ° sulco branquial sofre uma invaginação da ectoderme, chamada de conduto auditivo externo primário (1). Ele constituirá mais tarde o conduto cartilaginoso.
Na9' semana, um cordão de células desenvolve-se medialmente à invaginação, entre esta e o esboço da cavidade timpânica, formando o futuro conduto ósseo (2).
É somente no 5° mês fetal que a degeneração das células centrais formará uma luz dentro deste cordão, para constituir o conduto auditivo externo secundário ou definitivo. Este processo de canalização ocorre de medial para lateral. Uma interrupção antes da canalização se completar para o exterior pode originar uma cavidade fechada contendo epitélio escamoso capaz de desenvolver um colesteatoma (3).
A placa de atresia congênita pode ser óssea ou membranosa, e esta última pode apresentar uma fístula. Estas fístulas podem estar associadas a colesteatomas. (4).
RELATO DO CASOUm menino de 8 anos foi examinado em 2013180, com otorréia e leve otalgia à esquerda. Apresentava neste lado uma atresia na porção lateral do meato acústico externo, com um pavilhão sem qualquer anomalia. A pele que fechava o meato era perfurada por um minúsculo orifício, do diâmetro de um alfinete, que drenava secreção purulenta. A mãe informou que a criança nascera com o ouvido fechado e que nos primeiros dias de vida houvera um sangramento por aquele ouvido. A otorréia iniciara-se aos 2 anos de idade e era intermitente e fétida, não tendo melhorado com tratamentos anteriores. A região mastóidea ocasionalmente apresentava tumefação.
O Rinne era negativo no OE e o Weber lateralizava para este ouvido. O ouvido direito era normal, assim como o resto do exame.
A cirurgia revelou que a atresia era membranosa. A pequena fístula comunicava com enorme colesteatoma infectado (fig. 1). O colesteatoma unia numa grande cavidade a mastóide, a cavidade timpânica e o espaço correspondente ao conduto auditivo externo ósseo. Não havia membrana timpânica. A bigorna foi removida com o processo longo destruído e o martelo com o cabo parcialmente osteolisado. Ressecado o colesteatoma, completamos a mastoidectomia radical com uma meatoplastia ampla.
REVISÃO DA LITERATURAAté 1978, havia somente 20 casos publicados de colesteatoma associado com atresia meatal congênita na literatura mundial (5).
Von Luders (6), em 1912, aparentemente foi o 1 ° a publicar.
Wanamaker, citado por Hoenk (7), descreveu um caso com fístula punctiforme perfurando a placa de atresia congênita, semelhante ao publicado neste trabalho.
Menos raras são as associações com otite média sem colesteatoma.
São várias as classificações das anomalias congénitas do ouvido. A de Pulec e Freedman (8) salienta-se por apresentar um grupo II específico para "atresia da parte lateral do conduto auditivo externo com colesteatoma na parte medial próximo à membrana timpânica.
DISCUSSÃOComo se teria desenvolvido este colesteatoma? O epitélio aprisionado na cavidade formada pela canalização incompleta do conduto auditivo externo orginaria o colesteatoma que, por sua vez, cresceu, invadindo a cavidade timpânica e a mastóide e destruiu a parede meatal posterior. Mais tarde, uma infecção de vias aéreas superiores poderia, através da tuba auditiva, infectar o colesteatoma. A drenagem das secreções se faria ou por uma fístula pré-existente (houve otorragia no período neonatal) ou originaria a fístula pela ruptura da parede menos rígida: membrana da atresia.
Alguns otologistas americanos, questionados sobre casos de atresia congênita com colesteatoma, afirmam terem encontrado somente associação de colesteatoma com estenose de conduto (5). Esta deve ser diferenciada da verdadeira atresia congénita com fístula.
Considerando que a canalização incompleta origina uma cavidade fechada contendo epitélio escamoso, nós esperaríamos uma freqüência maior de colesteatoma do que os poucos casos descritos. Jahrsdoerfer (5) refere comunicação pessoal com Marcel Ombredanne segundo o qual este cirurgião, com experiência de mais de 1500 atresias de ouvido, teria encontrado 72 colesteatomas primários. Ombredanne nunca teria publicado nada sobre isso por considerá-lo um achado comum.
Devido à extensão do colesteatoma no nosso caso, os exames radiológicos certamente teriam demonstrado sua existência. A utilidade maior da politomografia em anomalias congênitas do ouvido é demonstrar a ausência de colesteatoma na porção medial do conduto auditivo externo ou no ápice petroso (8). Os achados radiológicos de um colesteatoma, contudo, não são sempre de confiança (9). Em 10 casos de colesteatoma oculto (membrana timpânica íntegra) relatados por Pfaltz e Redli (9), os RX de 4 apresentaram pneumatização normal e nenhum sinal de destruição óssea. Também referindo-se ao colesteatoma com membrana timpânica íntegra, House e Sheehy (10) confirmam que a radiografia (simples ou politomo) freqüentemente não contribui para a avaliação diagnóstica.
SUMMARYA cholesteatoma may grow medially to a congenital atresia of the external ear canal. Vele report a case of an 8 year-old boy whose congenital atresia had a pinhole perforation. Surgery revealed a huge infected cholesteatoma. This association was very rarely described. It is adequately explained by the embriogenesis of the external ear canal: an arrest in the canalization process gives to a blind sac lined with squamous epithelium capable of developing a cholesteatoma.
BIBLIOGRAFIA1. HAMMAR, J.A.: citado por Altmann (2)
2. ALTAMANN, F.: Desarollo dei oído; in Berendes, Link e Zollner (eds.): Tratado de. Otorrinolaringologia 11111. Editorial Cientifíco-Médica, Barcelona, 1969.
3. WRIGHT, J.L.W.; PHELPS, P. D., e FRASER, I.: Anatomical findings in congenital conductive deafness. Proc. Roy. Soe. Med. 70:816-321,1977.
4. NAGER, G.T.: Congenital aural atresia: anatomy and surgical management; in Paparella e Shumrick (eds.): Otolaryngology, Saunders, Philadelphia, 1973.
5. JAHRSDOERFER, R.A.: Congenital atresia of the ear. Laryngoscope, Suppl. 13, vol. 88, 1978.
6. VON LUDERS, C.: citado por Hoenk (7).
7. HOENK B.E.; McCABE, B.F.; e ANSON, B.J.: Cholesteatoma auris behind a bony atresia plate. Arch Otolaryng 89: 470-477, 1969.
8. PULEC, J.L., e FREEDMAN, H. M.: Management of congenital ear abnormalities. Laryngoscope 88:420-434,1978.
9. PFALTZ, C.R., e REDLI, M.: Occult cholesteatoma of the middle ear. ORL 40: 23-31,1978.
10. HOUSE, J.H., e SHEEHY, J.L.: Cholesteatoma with intact tympanic menbrane: a report of 41 cases. Laryngoscope 80: 70-75, 1980.
ENDEREÇO DOS AUTORES:
Serviço de Otorrinolaringologia
Pavilhão Pereira Filho, Sta. Casa Pç. Dom Feliciano, sln°90.000
Porto Alegre, RS.
*Médicos do Serviço de ORL do Pavilhão Pereira Filho, Santa Casa de Porto Alegre (serviço do Prof. Ivo Kuhl).
Trabalho recebido para publicação em 23106180.