Quando ainda estudante frequentava o Hospital Santa Isabel, da Bahia, como interno da Clinica Oto-Rino-Laringologica sob a direção do grande mestre que é o Professor Eduardo de Moraes, tive minha atenção voltada para o numero relativamente avultado de pacientes que procuravam aquele serviço, portadores de acidentes por causticas, muito particularmente pela soda e potassa causticas.
Na clinica civil, exercida primeiramente em Itabuna, Bahia, depois em Araguari, Minas, e atualmente em Catanduva, continuei observar quanto são frequentes esses mesmos acidentes.
Tenho registrados no meu fichario nos ultimos quatro anos, mais de 20 acidentes dessa natureza e quasi todos eles ocasionados por lamentaveis descuidos das pessôas que manipulam os referidos causticas com fim domesticos, principalmente na fabricação de sabão.
E este fato é digno de nota porque realmente a imensa maioria dos acidentes por causticas, é determinada por descuido ou por negligencia que bem poderemos chamar de criminosos se atentarmos bem que eles seriam facilmente evitaveis, como veremos, pois, apezar da relativa frequencia dos desastres, continuam a soda e a potassa livremente vendidas em todos os armazens, e, o que é mais grave, guardados em casa, quasi sempre, na cozinha ou na despensa e ao alcance de crianças ou, o que é comum, entregues á inconciencia de empregados pouco escrupulosos ou ignorantes.
Como prova desta afirmação, relato em mais de uma das observações adiante transcritas em resumo, o fato inacreditavel de ser a lata de sóda aproveitada para guardar depois ao lado de outra lata perfeitamente igual contendo o caustico!
Homero Cordeiro estudando o tratamento das estenoses esofagicas determinadas por caustico cita uma estatistica de Erdelye, da clinica de Szedin, publicada no Monatsschrift für Ohrenheilkunde, de Viena na qual vemos que esse especialista tratou de Maio de 1922 a Dezembro de 1925, 151 doentes que haviam ingerido caustico!
Esta estatistica nos mostra que o problema não é somente nosso. 151 doentes em menos de 3 anos, ou sejam mais de 50 por ano! E neste numero, é preciso notar, não estão computados, os casos em que foi possivel fazer o tratamento precoce. Certamente muitos foram os pacientes que só procuraram o especialista depois de tentativas frustadas do tratamentos por varios meios.
Adiante apresentamos 13 observações de acidentes pela sóda. Destes, 10 foram em criança de menos de 8 anos e 3 em adultos; 2 destes ultimos por tentativa de suicidio.
A sóda é dos causticos o que mais frequentemente determina acidentes. David Galatz, no espaço de 4 anos, em 70 observados de queimadura do esofago verificou que em 62 ela era a responsavel.
Qual será a razão da preferência por este caustico?
Certamente por ser de todos o mais usado e por consequencia o mais á mão das creanças inocentes ou dos candidatos ao suicidio. Inodora; permitindo a fácil confusão com o assucar ou, quando em solução, com outras bebidas.
Galatz empresta á sóda uma forte razão de preferência nas tentativas de suicidio. E que ela raramente mata.
"Temos a impressão, diz, que os indivíduos que escolhem essa substancia fazem-no sobretudo por verem nela um meio de impressionar uma pessôa visada e mais para comover do que para acabar com a vida". Daí empregarem quasi sempre uma solução que pôde provocar queimaduras mais ou menos extensas com todas as suas consequencias, porém, raramente a morte.
"A sóda caustica queimando a mucosa digestiva, queima tambem um pouco os corações recalcitrantes".
Elle est devenue la drogue du coeur en attaquant la voies digestives (Galatz).
Para provar a verdade desse asserto, o autor diz que em 70 casos 33 eram mulheres, 15 homens e 22 creanças não devendo estas entrarem no computo por serem em geral vitimas de engano.
Assim, as mulheres marcam uma cifra que ultrapassa o dobro da dos homens. Dos 70 queimados, apenas 12 confessaram o fim suicida e desse as mulheres eram em numero de 10!
Observação identica foi feita por Hacker, citado por Lenormant, que tambem verificou lançarem as mulheres, mão desse meio suicida duas vezes mais do que os homens.
A razão mais plausivel deste facto é ser a sóda mais a meude manipulada pelas mulheres.
A sintomatologia, varia evidentemente com a quantidade e com a concentração da solução deglutida.
Nas minhas observações ha casos de queimaduras superficiais produzidas por solução fraca e da qual o paciente enguliu uma quantidade minima, sofrendo ligeiras queimaduras da lingua, do véu do paladar e do esôfago, determinando dôres pouco intensas, sialorréa, seguidas dias depois, de estreitamento esofagico superficial, de tratamento rapido, até ás grandes queimaduras de todas as vias digestivas ocasionando a morte em poucas horas de atrozes sofrimentos.
Nos casos medios a que se observa em linhas geraes são as dôres provocadas pela queimadura da bôca, obrigando o paciente a babar e permanecer com a bôca aberta a lingua exposta e edemaciada, dôres epigastricas e disfagia dolorosa intensa.
Esses primeiros sintomas inflamatorios cedem no fim de alguns dias, dando lugar á dificuldade de deglutição pelo estreitamento do esôfago.
Nas formas graves, de queimadura intensa e profunda da mucosa esofagica, o paciente morre no fim de pouco tempo ou sobrevem uma estenose completa por cicatrização.
Nestes casos graves, pode-se observar a eliminação da mucosa destruida.
David Galatz publicou a observação de um caso em que u paciente 9 dias após a tentativa de suicidio, eliminou o molde completo de seu esôfago, um cilindro sem descontinuidade, sem pertuitos, sem rasgões, medindo 27 centimetros e meio, Mêses depois, praticou-se nessa paciente uma esofagoscopia, verificando o orgam cilindricamente estreitado em toda sua extensão.
Quem viu uma criancinha inanida porque o edema ou a cicatriz duma queimadura lhe fechou o esôfago, nunca mais poderá esquecer o quadro deveras impressionante. E' o tormento da sêde que não pode ser vencido porque a agua não atinge o estomago. E' o martirio da fome que não pode ser saciada. O alimento deglutido, pára ao nivel da cicatriz esofagiana para ser momentos depois expelido por uma contração espasmodica do orgam. Este é sofrimento que sucede aos da fase aguda.
O esofago queimado pela passagem do caustico não o é igualmente em toda sua extensão. Ha porções que sofrem mais e estas são naturalmente os estreitamentos normais do orgam e principalmente a porção mais baixa e que fica, logo acima do cardia.
Galatz explica a preferencia de localização da maior queimadura, por um reflexo de defesa: - o cardia excitado pelo caustico protesta contra sua passagem ao estomago e fecha-se dificultando-lhe por um momento o transito. "Por causa dessa defesa do cardia, o caustico tem tempo de encher a cavidade esofagiana".
Ledoux, no Congresso de Oto-Rino-Laringologia D'Anvers, em 1923, apresentou a seguinte classificação para os estreitamentos esofagicos por causticos:
Estreitamentos:
- Membranosos concentricos ou tubulares curtos.
- Membranosos excentricos ou tubulares curtos excentricos.
- Tubulares curtos de orificio excentrico impossivel de ser encontrado.
- Tubulares longos e tortuosos.
- Multiplos
- Infranqueaveis
Antes de instalado o estreitamento cicatricial, que não é mais do que a substituição da mucosa destruida por tecido fibroso cicatricial, ha o estreitamento inflamatorio. Aquele, substitue quasi sempre a este. A substituição faz-se gradativamente.
A altura e a forma do estreitamento, diz Lenormant, são fatores que tem certo interesse pratico. Ha cicatrizes lineares que originam simples bridas ou valvulas salientes na cavidade do esôfago. Esses casos, são, porém, raros e o tipo mais comum é o estreitamento tubular.
A luz do estreitamento pode ser extremamente reduzida mas nunca desaparece por completo (as observações de obliteração completa recolhidas por Horsey e Messiger-Bradly são duvidosas).
Pode ser excentrica ou acotovelada, o que torna o cateterismo particularmente difícil; em certos casos pôde ser mais facil de fazer penetrar uma sonda de baixo para cima que de cima para baixo tendo a virola cicatricial a forma de funil de base para baixo (Von Hacker cit. por Lenormant).
Via de regra, o estreitamento que mais trabalho dá é o localizado acima do cardia. No comum dos casos, em que a quantidade de caustico deglutida não é muito consideravel, o liquido passa deslizando rapidamente sobre o tubo esofagico determinando, por isso, queimaduras superficiais. Ao chegar, porém, ao cardia, ha um instante de parada, ou, pelo menos, de passagem mais lenta, o que explica, a localização nesta região das queimaduras mais profundas, como já ficou dito acima, e, consequentemente, das cicatrizes mais resistentes.
As estenoses cicatriciais do esôfago são afecções rebeldes e de gravidade consideravel. Não tem tendencia para uma cura espontanea e requerem, sempre, um tratamento demorado e cuidadoso.
As estenoses verdadeiramente graves, diz Lenormant, são as que sucedem ás queimaduras do esôfago. Seu tratamento é difícil e seu prognóstico é máu: em 40 ou 50 por cento dos casos, conforme estatísticas de Von Hacker, elas provocam, mais ou menos rapidamente, a morte; aliás os meios terapêuticos modernos, o esofagoscopio em particular, tem melhorada notavelmente esse prognóstico. A maior parte dos doentes sucumbe por caquexia e inanição. Outros, são atacados de tuberculose (Lebert, Peter) que neles encontra terreno dos mais favoraveis. Por vezes é um acidente brusco que a doença termina; uma sondagem brutal um corpo estranho deglutido e parado ao nivel do estreitamento, determinam uma perfuração com suas habituais consequencias: mediastinite septica, pleurisia purulenta, abertura dum vaso volumoso; algumas vezes mesmo um fleimão do mediastino se declara sem que tenha mesmo havido perfuração, bastando tão somente uma simples erosão infectada de mucosa. (V. Hacker, cit. por Lenormant).
Ha pacientes, portadores de estreitamento não circulares incompletos, que vivem perfeitamente, habituando-se aos cuidados de uma bôa mastigação.
Muitos passam épocas muito bem, deglutindo tudo ou quasi tudo com grande dificuldade, mas sofrem de ver em quando de espasmo do orgam que dificulta até a passagem de líquidos.
O tratamento deve ser feito tão logo desapareçam os sinais de inflamação aguda, ou seja depois da segunda semana. Deve constar de dilatações com sondas gradativamente mais grossas.
E' aconselhavel, afim de evitar-se surpresas desagradaveis, antes da passagem da primeira sonda fazer-se uma radioscopia com auxilio de um meio de contraste com o fim de localisar a altura da estenose. Tambem deve ser feito uma esofagoscopia que verificará o gráu de franqueabilidade do esôfago e em consequencia orientará sobre o calibre da sonda a empregar.
As primeiras dilatações devem ser feitas, sempre que possivel, atravez do tubo esofagoscopio, com o controle da vista. A sonda deve permanecer de 10 a 20 minutos em cada seção que deve ser repetida, a principio de 2 em 2 dias. Depois de obtida a dilatação satisfatoria, as sessões podem ser progressivamente espaçadas. Em média a duração de um tratamento desses deve ser de 4 a 6 mêses. Em alguns casos pode durar mesmo 1 ano ou mais. Em casos tais, os autores aconselham o emprego da electrolise, processo que não tive oportunidade de empregar.
Ha ocasiões em que se é obrigado a recorrer á gastrostomia pela impossibilidade de vencer o obstaculo. Esta operação é, como bem diz Homero Cordeiro, duplamente benefica não só porque garante a bôa alimentação, corro tambem, pelo repouso do esôfago, faz ceder os espasmos e processos irritativos, tornando muitas vezes franqueaveis estreitamentos que antes não o eram.
Não sendo o escopo principal deste trabalho estudar os meios de tratamento das estenoses esofagicas produzidas por causticos mas apenas, num rapido esforço mostrar os perigos dos acidentes tão frequentemente determinados por eles, passo de leve sobre esta parte, não entrando assim, em minucias, mas lembrando, apenas, que sobre a epoca em que devem ser iniciadas as dilatações não estão os autores de acôrdo, achando, vários deles, que se deve esperar pelo menos 2 mêses.
Em todos os meus casos, o tratamento constou de dilatações progressisvas por sondas.
A dilatação brusca preconisada por Fletcher e Le Fonte expõem o orgam á ruptura com suas consequencias.
A descrição dos outros processos de tratamento, cateterismo retrogrado, esofagotomia interna (semelhante á uretrotomia interna), esôfagotomia externa e esofagoplastia extratoraxica, não cabe neste trabalho.
OBSERVAÇÕES
OBSERVAÇÃO I - Estenose esofagica por caustico.
M. P. F. (Ficha 155), branco, mineiro, de 4 anos de idade, residente em Araguari, veiu á consulta, no dia 17 de Março de 1931.
Ha cerca de 3 méses, um empregado da casa, utilizou-se do copinho do pequeno para fazer uma solução de sóda cauatica destinada á limpeza d.o marmone da escada. Estava distraidamente naquele mistér, quando o pequeno chegando viu seu copinho com um pouco de liquido que deglutiu supondo fosse água. Sentiu imediatamente dôres fortes na bôca e no estomago, e começou a babar muito e expelir um pouco de sangue pela bôca. Aos gritos do pequeno acorreram os pais que trataram de chamar um médico -que não tardou. A primeira providencia tomada pelo colega foi a de pegar uma. caixinha de bicarbonato de sóda Erba que derramou toda em dois dedos de água, fazendo um verdadeiro mingáo que o pequeno deglutiu com dificuldade.
8 dias depois, as queimaduras da bôca estavam cicatrizadas. Aconteceu, porém, o que já sabemos. Cerca de 50 dias mais tarde, começou a dificuldade na deglutição dos alimentos solidos e depois até dos líquidos. Tudo quanto conseguira engolir era pouco depois vomitado.
Levado aos Raios X, foi feita, uma radioscopia sendo dado ao pequeno um mingáo citobarico que foi engolido com dificuldade. No terço Inferior do esôfago, perto do cardia, havia um estreitamento bastante pronunciado.
Informam os pais que M. ás vezes engole bem os ali-mentos pastosos como chocolate, mingáo, etc. vomitando-os em outras ocasiões.
A esofagoscopia, demonstrou a existencia de bridas fibrosas muito pouco resistentes e que se dilaceram á, passagem do tubo.
O tratamento consistiu em dilatações progressivas, em dias alternados. Em Outubro de 1931, o doentinho tinha melhorado sensivelmente, continuando até 1933 as dilatações com intervalos maiores de 15 a 20 dias.
OBSERVAÇÃO II - Estenose esofagica por caustico.
A. D. B. (Ficha 529) preto, brasileiro, goiano, de 8 anos de idade, residente em Leopoldo Bulhões, veiu á consulta no dia 13 de Fevereiro de 1932.
Faz dois anos que uma pessôa da casa estava fazendo sabão, tendo se utilizado da canequinha do pequeno tomar café para com ela retirar da lata um pouco de sóda caustica. Não teve depois o cuidado de lava-la nem ao menos de a ocultar da criança. Assim foi que esta, inocentemente, pegou do seu copo e levou-o á mãe que nele lhe serviu o cafezinho. Um ou dois goles foram bastantes. Morava então em Urutaí (Goiás).
Os médicos que o socorreram, trataram as queimaduras da bôca. Pouco tempo passado mudou-se para Leopoldo Bulhões onde não havia medico. Começou então a sentir dificuldades na deglutição. Quasi tudo que conseguia engolir, vomitava. Dias passava melhor, dias peor.
Assim decorreram dois asnos. De 7 dias para cá, peorou como nunca. Nem agua conseguia engolir.
O estado geral do pequeno era de verdadeira miseria organica.
Levado á radioscopia, na casa de Saude Santa Martha, não passou pelo esôfago nem um pouco de mingáo de citobario.
Estava indicada a gastrostomia. O pequeno, porém, faleceu no mesmo dia, emquanto se faziam os preparativos para a intervenção.
OBSERVAÇÃO III - Estenose esofagica por caustico.
J. R. (ficha 571), branco, brasileiro, goiano, com 2 anos de idade, residente em Urutaí (Goiás), veio á, consulta no dia 2,0 de Março de 1932.
Faz 2 mêses que bebeu solução de sóda deixada por descuido numa lata.
Naquele dia, tinham feito sabão e a lata de sóda, vazia, já, havia sido enxaguada.
A criança apanhou-a e bebeu um pouco. Ficou logo com a bôca toda queimada. Alguns dias depois, tendo sarado das queimaduras da bôca, ninguem mais se lembrava do caso, julgando-se que maior fora o susto.
Aconteceu, porém, que o pequeno não mais se alimentou e ficou muito fraco.
Levado a um cirurgião em Araguari, este depois de várias tentativas frustradas de dilatação, pois não conseguiu fazer passar a sonda mais fina, operou de gastrostomia a criança inanida e caquetica.
Foi nessas condições que m'a trouxeram ao consultorio.
Poucos dias depois falecia.
OBSERVAÇÃO IV - Estenose esofagica por caustico.
M. F. (ficha 2150), branco, brasileiro, paulista, de 22 mêses de idade, residente em Itajobi, foi trazido consulta no dia 2 de Janeiro de 1933.
Os pais, informaram mais ou menos o seguinte: lia cerca de um mês, trabalhavam com sóda caustica, no asseio domestico, quando o pequeno aproximando-se da lata que ficara por descuido no chão, tirou um pouco levando á bôca supondo ser assucar.
As pessoas de casa só disto deram fé quando viram o pequenino gritando. Em poucos minutos a bôca ficou toda inchada, os labios grossos e feridos. M. F. não quiz mais alimentar-se e ficou varios dias babando muito, sendo que nos dois primeiros dias com a baba saía um pouco de sangue. Foi logo chamado um médico, que o socorreu.
Nesses ultimos dias, porém, começou a engasgar-se. Qualquer alimento que não seja liquido é imediatamente expelido.
Como tratamento aconselhei ao dilatações. A família preferiu porém, a terapeutica de um outro medico que prometeu curar a pequena sem os sofrimentos daquelas.
No dia 5 de Maio do mesmo ano voltou á consulta consideravelmente emagrecido por inanição. A' radiografia, não passou nem um pouco de mingáo citobarico. Tentei introduzir uma sonda bastante fina não o conseguindo. A família resolveu não consentir em novas tentativas e não apareceu mais com a doentinha que faleceu alguns dias depois.
OBSERVAÇAO V - Estenose esofagica por caustico.
D. R. (ficha 2225), branco, brasileiro, paulista, de 4 anos de idade, residente em Catanduva, veia ao consultorio pela primeira vez em 11 de Fevereiro de 1934.
Informa a família que o pequeno ha 2 mêses mais ou menos vem se alimentando mal porque não pôde engolir. As vezes um fragmento de pão ou de carne o engasga, e então fica fazendo grande esforço até que consegue vomital-o. Ha mêses, (3 mais ou menos) sofreu uma, grande inflamação da garganta. Atribue ao fato de ter o menino apanhado uma tampe de lata de sóda para brincar, pondo-a na bôca. Disto porém não se queixa mais, pois tratou-se ficando curado.
O exame de D. R. foi quasi inexequivel como inexequivel foi a radioscopia. De uma indocilidade invulgar, esperneava e gritava incessantemente apezar do carinho e agrado dispensados. Assim, não houve quem o fizesse beber uma gota, do mingáo de citobario.
Em vista disto tive que iniciar e terminar as dilatações que foram feitas durante cerca de 6 mêses, a força. A criança saia de casa aos gritos, passando incríveis descomposturas nas pessôas que a levaram ao consultorio, aonde o medico e enfermeiras recebiam seu quinhão, .mas ao cabo daquele tempo teve alta clinicamente (curado ficando, porém, de voltar periodicamente ao consultorio o que não fez.
Apezar disso, continúa bem. Dias ha em que se alimenta mal, tolerando apenas alimentos liquidas e pastosos. Normalmente, porém, come de tudo.
OBSERVAÇAO VI - Estenose cicatricial do esôfago por caustico.
J. F. P. (ficha 2006), branco, de 41 anos de idade, casado, lavrador, brasileiro, paulista, residente em Novo Horizonte neste Estado, veiu á consulta no dia 16-8-933, recomendado pelo Dr. Vieira Lima, ilustre cirurgião em Catanduva.
Informa que faz um mês e meio, tendo passado o dia a visitar o cafezal de sua fazenda, chegou á. casa, ao anoitecer. muito fatigado, tendo antes de deitar-se mandado fazer um chá. Ao adoça-lo percebeu que o assucar tinha um aspecto diferente. Não deu maior atenção ao caso e tomou o primeiro gole, sentindo imediatamente uma forte sensação de queimadura na bôca e no esôfago. Verificou então que se servira de soda caustica em lugar de assucar. Na prateleira da sala estavam juntas, as duas latas: uma de sóda e a outra igual, que fôra de sóda e depois aproveitada para pôr assucar. Aliás é este um habito máu mas bastante comum, o da utilização das latas que contiveram sóda para depósito de assucar, café, sal, etc. dando origem a trocas perigosas.
Passou mais ou menos uns doze dias sentindo a bôca queimada, não tendo procurado medico. Notou certa dificuldade na deglutição, dificuldade esta que foi aos poucos aumentando até o ponto de somente alimentar-se de líquidos. Foi então que resolveu procurar o Dr. Vieira Lima.
Ao exame nada se verificou para o lado da bôca.
A esofagoscopia, nota-se a cerca de 23 centímetros da arcada dentaria, um estreitamento um tanto pronunciado, impedindo a descida do tubo esofagoscopico.
Indiquei o tratamento, por meio de dilatações progressivas, que foi aceito pelo paciente.
Aos 30-9-933 teve alta, curado, levando uma sonda para passar de vez em quando, tendo o paciente para isso aprendido facilmente a fazer a introdução da mesma.
Um ano depois voltou ao consultorio para uma visita, nada mais tendo sentido desde que teve alta tendo feito em casa poucas dilatações.
OBSERVAÇÃO VII - Estenose esofagica por caustico.
M. P. D. (ficha 2303), 42 anos, branco, casado, brasileiro, paulista, jornaleiro residente em Ibarra, veiu á consulta no dia 7 de Abril de 1934.
Faz cerca de 20 dias, por questões intimas resolveu suicidar-se lançando mãos da sóda caustica. Misturou duas colheres das de sôpa em meio copo de agua e ingeriu quanto poude pois não suportou senão os primeiros goles. Passou muito mal com a bôca, a garganta e o estomago doendo muito e muito inchados, sem poder alimentar-se nem dormir, babando saliva sanguinolenta, tendo feito uso de vários remedios que lhe ensinaram.
Bastante emagrecido e abatido, M. P. D. informa que não sente mais as dôres da queimadura mas não consegue alimentar-se por sentir a garganta tapada.
Tem conseguido tomar leite e chocolate e hoje mais do que nos outros dias até a água quer voltar. Quando faz esforço para engolir sente dôr pre-esternal.
A radioscopia revelou extenso estreitamento do esôfago, principalmente no têrço superior e na visinhança do tardia. A esofagoscopia mostrou os pontos cicatrizados no têrço superior do orgam. Servi-me do tubo para dilacerar as primeiras cicatrizes pouco resistentes.
Neste caso, as dilatações progressivas deram excelentes resultados. No fim de 40 dias sou informado que M. P. D. que passou a vir ao consultorio com irregularidade, retomou sua vida de bohemio e de ébrio habitual.
OBSERVAÇÃO VIII - Queimaduras esofagicas por caustico.
A. T. (ficha 2438), branco, paulista, com 18 mezes de idade, residente em Pindorama, veiu á consulta no dia 12 de Julho de 1934, as 7 horas, acompanhado pelo Dr. Pedro Corsi, seu medico assistente.
Faz aproximadamente 2 horas que regressando o pai das labutas diarias, foi alegremente recebido em casa pelo filhinho que a êle era muito apegado. Como de costume, o pai tomou-o entre os braços e entrou a preparar para o filho extremado uma garapinha de assucar! Mas, erro fatal! Sobre a prateleira da cozinha estavam duas latas perfeitamente iguais com aquela conhecida caveira descançando entre duas grossas tibias, como advertencia aos descuidados. Uma delas contém soda caustica. A outra, mais velha, contivera tambem esse terrivel martirizador de crianças, mas contém, agora, assucar. A ignorancia da gente simples da roça não vai ao ponto de desconhecer os perigos da soda caustica mas vai ainda muito mais longe: vai ao extremo de não procurar evitar este perigo, como está fartamente provado por todos os estudiosos do assunto, e tambem pelas informações contidas nas observações com que documento este trabalho.
Mas, o pai, distraido, todo enlevado com as gracinhas do filho, um belo menino, forte e sadio, prepara-lhe uma garapa de sóda caustica.
A criança bebe o primeiro gole e repele o copo. O pai insiste e leva novamente o copo aos labios do filho: - bebe meu filho. A criança contorcendo-se em dôres, aos gritos, com a bôca entreaberta e cheia de baba sanguinolenta. Olhando as duas latas, o pai espavorido conheceu o tragico equivoco e corre á cidade de Pindorama a procura do medico.
Trata-se de um caso gravissimo de profundas queimaduras da bôca, do esôfago e talvez do estomago. Esboçam-me os primeiros sinais de edema da glote.
O medico mete o doentinho e os pais aflitos no seu automovel e corre ao meu consultorio.
A criança em estado desesperador, semi-asfixiada, cianotica, mal se move. Uma traqueotomia de urgencia, melhora-lhe a respiração e lhe prolonga a vida até o dia seguinte, quando falece ás 7 horas da manhã.
OBSERVAÇÃO IX - Estenose cicatricial do esôfago por caustico.
F. L. C. (ficha 2526), branca, brasileira, paulista, solteira, domestica de 20 anos de idade, residente em Catanduva veiu á consulta no dia 6 de outubro de 1934.
Informa que ha cerca de 40 dias, por motivo de desinteligencia com uma pessôa da familia resolveu pôr têrmo á sua existência, tendo para realizar seu intuito lançado mão do meio que lhe estava no momento mais ao alcance que era a sóda caustica. Dissolveu em meio copo de água uma bôa porção não a tendo deglutido toda em virtude de queimar insuportavel, que sentiu na boca e no esofago. Em poucos minutos estava com a boca, a garganta e o estomago numa chaga viva, tendo sido socorrida por ilustre medico local.
Com os curativos recebidos, curou-se em alguns dias, nada mais sentindo.
De alguns dias para cá sente muita dificuldade para alimentar-se pois qualquer alimento que não seja, liquido é imediatamente expelido. Até estes ultimos descem com dificuldades, aos goles pequenos.
A radioscopia confirma plenamente a estenose esofagica, claramente esperada. Um mingáo muito ralo de citobario desceu, depois de varias tentativas, dando a imagem de leve cordão em quasi toda a extensão do esofago.
Aceita a indicação das dialatações progressivas, foram as mesmas iniciadas no dia seguinte com alguma dificuldade pela resistencia oferecida ás sondas pelo orgam estreitado.
Com muita paciencia e encontrando a maxima docilidade do paciente que resolvera ficar no mundo dos vivos, no fim de 30 dias já consegui passar a sonda, n.º 28. Em Janeiro de 1935 F. L. C. teve necessidade de retirar-se da cidade por algum tempo tendo regressado em Março sem nada mais sentir.
DECIMA OBSERVAÇÃO Estenose esofagica por caustico.
P. N. (ficha 2694), branca, brasileira, paulista, de 18 mêses de idade, residente em Novo Horizonte, foi trazido consulta pelos pais, no dia 31 de Dezembro de 1934.
Faz pouco mais de dois meses que a pequena indo á casa de uma visinha e lá encontrando uma lata de sóda, aberta, no chão, e que ali fera deixada após a limpeza da cozinha, por esquecimento, tirou um pouco e levou á boca queimando-se.
O medico chamado para socorrer a pequena tratou da queimadura da boca tendo em poucos dias desaparecido a inflamação. Acontece, porém, que ultimamente a pequena não tem se alimentado bem por não poder engulir.
Era evidentemente uma, estenose cicatricial o que confirmava a radioscopia.
O tratamento imediatamente iniciado (dilatações progressivas, deu excelente resultado. Até Janeiro deste ano (1936) cada mês a pequena era trazida para uma dilatação, por apresentar de vez em quando sinais de estreitamento mas que não eram senão espasmos do esofago.
DECIMA PRIMEIRA OBSERVAÇÃO - Estenose esofagica por caustico.
M. R. S. (ficha 4214), morena, paulista, de 5 anos de idade, residente em Pindorama, veiu á consulta no dia 14 de Novembro de 1935.
Faz cerca de 2 meses, informam os paes, depois de fazerem sabão em casa, jogaram a lata de sóda vasia, numa capoeira um pouco distante. Parece que a menina viu e foi procura-la aparecendo mais tarde brincando com a lata e com a boca ferida. Passou uns dias babando mas sarou logo. Ultimamente vomita tudo que come. Foram consultados varios medicos que deram remedios para o estomago sem resultado.
Feita a radioscopia com mingáo de citobario, foi facilmente verificado um estreitamento no terço superior e outro no terço inferior do esofago.
O tratamento imediatamente iniciado deu excelente resultados tendo a pequena aumentado de peso, alimentando-se muito bem.
Vem de vez em quando ao consultorio, continuando as dilatações.
OBSERVAÇÃO XII - Queimadura da cornea por soda caustica.
A. C. (ficha 3395), branca, paulista, com 9 anos de idade, residente em Mundo Novo, veiu á, consulta no dia 19 de Novembro de 1935, com grande edema da palpebra inferior esquerda e queixando-se de dores fortes no mesmo olho.
Homem a noite, a mãe da pequena estando sofrendo dores de dente, um visinho ensinou-lhe que puzesse sóda no buraco do dente cariado.
Trazido um pouco do caustico numa colher e feita a aplicação foi o restante guardado sobre um oratorio na sala. A criança por descuido deu um esbarro no oratorio, desiquilibrando a colher com a sóda que lhe veiu cair sobre o olho esquerdo. Sentiu uma dôr muito violenta durante toda noite usando como remedio apenas um pouco de azeite sobre a queimadura.
Toda a metade interior do globo foi atingida pela sóda apresentando manchas esbranquiçadas na cornea e amareladas nas conjuntivas. A cornea está toda ela opacificada sendo que na metade inferior a opacificação é completa.
Como se vê na fotografia, após o tratamento, embora se possa considerar feliz o resultado obtido, ficou o orgam visual comprometido na sua função, pois a visão está, consideravelmente reduzida (= 1/3), assim como na sua beleza. que, no caso, tem grande importancia por se tratar de uma criança de sexo feminino.
DECIMA TERCEIRA OBSERVAÇAO - Queimadura da bôca por caustico.
C. S. A. (ficha 4578), branco, paulista, com 2 anos de idade, residente em Ariranha, veiu á consulta no dia 30 de Maio de 1936.
Faz exatamente 14 meses, sofreu uma queimadura de sóda caustica na boca. A mãe estava trabalhando com sóda, lavando umas mesas sujas de gordura de porco e deixou por descuido a lata no chão. o pequeno veio engatinhando sem que a mãe o percebesse, meteu os dedinhos na lata, tirando um pouco de sóda que, levou a boca.
Fig. 1
Fig. 2
Aos primeiros gritos foi chamada um medico que prestou os socorros necessarios. Ficou cerca de 8 dias com a boca muito inchada e toda em carne viva. A' medida, porém, que a ferida foi cicatrizando, creou um cascão que não foi removido para não magoar. Quando porém o cascão caiu, a boca do pequeno estava quasi toda fechada. Submeteu-se ha meses a uma intervenção plastica tendo melhorado bastante (vêr fig. 2).
Passamos em revista, embora resumidamente os perigos dos acidentes por causticos, principalmente pela sóda caustica que, como ficou demonstrado, com as observações resumidas, colhidas todas elas, no arquivo de minha clinica particular, e com citações de autores idoneos são acidentes de frequencia relativamente grande e muitas vezes de extrema gravidade.
Em todas as observações acima publicadas, a não ser em duas delas em que ficou demonstrada a intenção suicida dos pacientes. a negligencia e a falta de cuidado das pessôas que lidam com o caustico está plenamente demonstrada.
Por isto, não é demais que repizemos este assunto de solução delicada e dificil e que nos empenhamos numa campanha que talvez possa influir para que diminuam os casos tão dolorosos e quasi sempre tão serios desses acidentes.
Essa campanha deve ser dirigida principalmente junto ás donas de casa, preferentemente daquelas de poucos recursos e que, como medida de economia, fabricam em casa o sabão mas que não têm o cuidado de guardar em logar inacessivel aos seus filhinhos a lata de sóda que muitas vezes é mesmo aproveitada, depois de vazia, apara deposito de cereais e até de assucar ao lado de outras contendo causticos, facilitando desse geito os fatídicos enganos que tantos lares tem enlutado e tem feito sangrar tantos corações de pais.
Não basta, porém, uma, campanha educativa no sentido apontado. Torna-se necessaria a intervenção dos poderes publicos junto aos fabricantes do caustico, já, que não seria facil a regulamentação de sua vendagem, afim de que as latas destinadas ao mesmo fossem confeccionadas de tal modo que não pudessem ser depois aproveitadas.
Essa campanha, de ha muito se impõe pois acredito não haver exagero ao afirmar-se que a sóda caustica representa um verdadeiro perigo social.
Partilha desta opinião o ilustre laringologista americano Chevalier Jackson que por mais de uma vez já chamou a atenção dos responsaveis pela saúde publica de seu paiz para o grande perigo representado pelos causticos expostos impunemente á venda para fins industriais e usos domesticos.
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3 - PHILIPPE, H. - "Premiers Soins et Secours d'urgence" A. Poinat, ed., Paris, 1909.
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7 - ARNALDO DE ASSIS TAVARES" - "Da Estenose esofagica na infanecia" Tese, Bahia, 1927.
8 - AUGUSTO PAULINO - "Patologia Cirurgica" Tomo 1 1931.
9 - DAVID GALATZ - "Les brulures des voies digestives superieure par des substances chimiques". Les Annales d'Oto-Laryngologie 1931 p. 778.
10 - COLLET, F. J. - "Oto-Laryngologie avec applications a la neurologie" - G. Doin, Paris, 1928.