INTRODUÇÃOA perda auditiva induzida por ruído (PAIR) é caracterizada por uma hipoacusia neurossensorial de evolução lenta, progressiva, na maioria das vezes simétrica, secundária à exposição crônica ao ruído. Geralmente, é detectada por exames de triagem ou por indicação de membros da família, que relatam ser o indivíduo desatento. Também é comum o paciente referir que sente dificuldade para discriminar em ambientes ruidosos ou compreender uma voz sobre um ruído de fundo. O volume da TV é então ajustado em níveis elevados, e surge o zumbido, que ocorre duas vezes mais em pacientes expostos ao ruído em relação à população não exposta. Classicamente, ocorre uma perda neurossensorial para sons de altas freqüências, geralmente entre 3 e 6 kHz, sendo máxima em 4 kHz. Com a exposição adicional, atinge freqüências superiores e inferiores, ficando o paciente com uma perda neurossensorial em declive. Em indivíduos com exposição assimétrica ao ruído (atiradores e violinistas), a perda pode ser assimétrica.
Estatisticamente, estima-se que 15% da população exposta a ruído constante de 90 dB, 8 horas por dia, durante 5 dias por semana e 50 semanas por ano, apresentarão lesão auditiva após 10 anos, aceitando-se que existam mais de 140 milhões de pessoas expostas a níveis perigosos de ruído ocupacional no mundo, segundo a Organização Mundial do Trabalho. A Organização Mundial de Saúde acredita ainda que a perda auditiva induzida por ruído seja hoje a maior causa de perda auditiva evitável no mundo¹.
Vários autores têm sugerido a existência de uma maior correlação de perda auditiva em pacientes com doenças sistêmicas, em especial as doenças vasculares. Smith e colaboradores (1995), por exemplo, tentaram correlacionar uma maior predisposição à PAIR em indivíduos diabéticos. Também pacientes hipertensos expostos a ruído intenso foram objeto de estudo por Ylikoski (1995).
Portanto, configuradas a importância e a atualidade do tema, pretendemos com este trabalho, avaliar em nossa região possíveis repercussões de doenças sistêmicas na evolução do paciente exposto ao ruído.
MATERIAL E MÉTODOEstudamos 63 pacientes atendidos no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP), com a idade variando de 29 a 68 anos, com história de exposição ao ruído, sendo selecionados aqueles com curva audiométrica sugestiva de PAIR. Investigamos a presença de doenças sistêmicas como: hipertensão arterial, doenças auto-imunes, diabetes, neoplasias, hipercolesterolemia e hipertrigliceridemia. Entre os pacientes, 61 eram funcionários da cozinha do HCFMRP-USP, área considerada ruidosa, e dois eram empregados de uma empresa. O diagnóstico de perda auditiva induzida por ruído foi baseado na anamnese, na qual foi constatado o agente causal, e em exame audiométrico tonal-liminar. A presença de doenças sistêmicas foi pesquisada durante a anamnese e por exames complementares realizados no Laboratório Central do HCFMRP-USP, não sendo feita confirmação por meio de exames laboratoriais naqueles pacientes que já estavam em seguimento ambulatorial especializado, devido às patologias sistêmicas.
RESULTADOSObservando a Tabela 1, vemos que dos 63 pacientes avaliados (47 mulheres e 16 homens), 16 apresentaram curva audiométrica e evolução clínica sugestivas de PAIR (6 homens e 10 mulheres). A idade variou de 34 a 68 anos, com a média de 52 anos. Destes, 62,5% eram portadores de alguma doença sistêmica crônica (Tabela 2), com destaque para hipercolesterolemia (60%), hipertrigliceridemia (20%), hipertensão arterial sistêmica (20°/0), hepatopatia crônica (10%), úlcera péptica (10%), artrite (10%) e doença de Chagas, 10% (Tabela 3). Quanto aos pacientes expostos ao ruído sem curva audiométrica sugestiva de PAIR,10 eram homens, e 37, mulheres, com idade variando entre 29 a 58 anos (média de 46,9 anos), dos quais 12,77% apresentaram alguma doença sistêmica crônica (Tabela 4), com destaque para hipertensão arterial (66,7%), diabetes mellitus (33,3%), hipercolesterolemia (33,3%) e hipertrigliceridemia, 33,3% (Tabela 5).
DISCUSSÃOA disacusia secundária a exposição crônica ao ruído é hoje uma das mais freqüentes causas de perda auditiva em nosso meio. Por ser uma doença ocupacional, vem aumentando a cada dia o número de processos de indenização financeira, causando prejuízo não só ao empregado, mas também ao empregador e às instituições responsáveis pela indenização.
O estímulo excessivo e constante às células ciliares da cóclea causa o encurtamento de sua radícula, levando a inclinação temporária dos cílios e tornando-os menos sensíveis ao estímulo sonoro. Este é o chamado desvio limiar temporário (TTS), que pode regredir, muito comum quando saímos de ambientes ruidosos (boites e shows de rock) e temos a impressão de estarmos disacúsicos. Se as células forem estimuladas por níveis mais intensos de som, então as radículas se rompem, e acredita-se que não mais se recuperem5. É o deslocamento limiar permanente (PTS). Acreditase também que, alguns meses após a destruição das células ciliadas, ocorra lesão nervosa. Em cobaias há ainda evidências de lesão vestibular, não sendo confirmado em primatas. Manabe e colaboradores (1995) sugerem um mecanismo fisiopatológico semelhante a doença de Ménière como causa de vertigem em pacientes expostos ao ruído, sugerindo uma hidropisia endolinfática como causa destes sintomas. Yamane é colaboradores (1995) identificaram, por métodos imunohistoquímicos, o aumento de radicais livres na estria vascular da cóclea, momentos após o trauma acústico, e classificaram este fenômeno como possível causa da perda auditiva. Outro possível mecanismo são a anóxia decorrente do consumo excessivo de energia durante períodos de estimulação sonora intensa e perturbação do suprimento através da estria vascular.
O tratamento da PAIR baseia-se, fundamentalmente, no diagnóstico precoce e na profilaxia do ruído, em especial do ruído ocupacional, através de programas de conservação da audição, para identificar e isolar máquinas ruidosas, monitorização do período em que os indivíduos são expostos a sons intensos e uso de protetores auditivos, quer passivos (eficazes para sons de alta freqüência, mas que distorcem a audição) ou ativos, onde existe uma prótese auditiva acoplada, com corte automático para níveis mais intensos de som. O uso de medicamentos vem sendo tentado como tratamento e profilaxia da PAIR. A nimodipina foi testada em ratos por Ison e colaboradores (1997) com poucos benefícios. O oxigênio hiperbárico também não mostrou resultado satisfatório4, bem como o diltiazem². A metilprednisolona foi testada em cobaias por Takahashi e colaboradores, em 1996, com bons resultados, sendo sugerida como boa terapêutica para traumas acústicos.
Entre os nossos pacientes estudados com curva audiométrica e evolução clínica sugestivas de PAIR, 62,5% eram portadores de alguma doença sistêmica crônica, com destaque para hipercolesterolemia (60%), hipertrigliceridemia (20%), hipertensão arterial (20°/a), hepatopatia crônica (10x/0), úlcera péptica (10%), artrite (10%) e doença de Chagas (10%). Com relação aos pacientes sem curva audiométrica sugestiva de PAIR, somente 12,77% apresentavam alguma patologia sistêmica, com destaque para hipertensão arterial (66,7%), diabetes mellitus (33,3%), hipercolesterolemia (33,3%) e hipertrigliceridemia (33,3%).
O fato de os pacientes com PAIR apresentarem mais doença sistêmica não prova, inequivocadamente, haver uma correlação entre as duas entidades. Por outro lado, sabe-se que os indivíduos portadores de doenças cardiovasculares, como os dislipidêmicos, apresentam maior risco de fenômenos tromboembólicos, que poderiam aumentar a predisposição a lesão na estria vascular coclear.
Em nossa amostragem, não encontramos uma maior predisposição à PAIR em indivíduos diabéticos, como foi encontrado por Smith e colaboradores (1995), bem como não foi constatada maior predisposição em indivíduos hipertensos, sendo encontrados 20% de hipertensos (dois pacientes) entre os pacientes com PAIR com patologia sistêmica e 67,2% (quatro pacientes) de hipertensos entre os pacientes com patologia sistêmica sem PAIR, divergindo dos resultados encontrados por Ylikoski (1995). Isto não significa que não haja necessariamente correlação entre estas patologias e a perda auditiva induzida por ruído. Talvez, quando aumentarmos nossa amostragem, em trabalhos posteriores, consigamos chegar a outras conclusões a respeito destas patologias.
TABELA 1- Distribuição dos pacientes expostos ao ruído quanto a presença de perda auditiva induzida por ruído.
TABELA 2- Distribuição dos pacientes com PAIR quanto a presença de patologia sistémica.
TABELA 3- Distribuição das patologias sistêmicas mais freqüentemente encontradas em pacientes com PAIR.
TABELA 4- Distribuição dos pacientes expostos ao ruído, sem PAIR, quanto à presença de patologia sistêmica.
TABELA 5- Distribuição das patologias sistêmicas mais freqüentemente encontradas em pacientes, ruído, sem PAIR.
CONCLUSÕESNão podemos concluir, ainda, baseados nesta investigação, que os pacientes com doenças sistêmicas apresentam maior predisposição à PAIR. No entanto, devido à maior incidência dessas enfermidades em indivíduos com perda auditiva induzida por ruído, chamamos a atenção para a necessidade de aumentar o cuidado com esses pacientes, no sentido de ser efetuada prevenção da perda auditiva.
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10. YLIKOSKI, M. E. - Self-reported elevated blood pressure in army officers with hearing loss and gunfire noise exposure. Mil. Med., 160: 388-90, 1995.
* Médico Residente em Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.
** Professor Doutor da Disciplina de Otorrinolaringologia do Departamento de oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.
*** Professora de Fonoaudiologia da Universidade de Franca, Franca /SP.
**** Técnico do Setor de Segurança do Trabalho do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.
Trabalho vinculado ao Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo. Apresentado no 34° Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, realizado em Porto Alegre /RS, de 18 a 22 de novembro de 1998.
Endereço para correspondência: Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - Av. Bandeirantes, 3900 14049-900 Ribeirão Preto /SP - Telefone: (oxx16) 602-3000 - Fax: (Oxx16) 633-1586.
Artigo recebido em 21 de maio de 1999. Artigo aceito em 6 de julho de 1999.