A comunicação esôfago-brônquica constitui uma das mais graves e, felizmente, mais raras complicações das esofagites cáusticas.
Em nosso Serviço tivemos, em cerca de 50 casos de ingestão de corrosivos, - quase sempre soda cáustica - apenas um, e que é o motivo dêste modesto trabalho.
A comunicação esôfago-brônquica é, evidentemente, mais comum nos pacientes que tentam o suicídio, pelo fato de tomarem maior quantidade do líquido corrosivo do que naqueles que o ingerem acidentalmente.
O mecanismo de formação da comunicação nestes casos é variado:
1) na fase aguda, quando da queda da escara esofagiana, pode-se formar a passagem esôfago-brônquica, no caso de ter sido muito profunda a lesão do órgão, em um ponto onde haja acolamento com a árvore respiratória. Isto é facilitado pelas trações do conduto tráqueo-brônquica, feitas nos movimentos respiratórios sobre um esôfago relativamente fixo;
2) na fase de estenose, as manobras de dilatação podem forçar excessivamente as paredes esôfagianas nos pontos de menor resistência, provocando o esgarçamento do órgão e consequentemente comunicação com a árvore aérea. É claro que esta comunicação é mais frequente nos pontos de maior contacto entre os condutos digestivo e aéreo, sendo a maior incidência ao nível da traquéia (Mangabeira Albernaz). Já para os brônquios, por motivos topográficos, o esquerdo é mais atingido que o direito. O nosso doente está neste último caso, sendo, portanto, dos mais raros.
O principal sinal desta afecção é a tosse durante a deglutição, tanto mais intensa quanto mais fluído fôr o alimento pela razão de passar com mais facilidade para a árvore respiratória. O doente procura se defender, adotando recursos e posições especiais para a deglutição, com o fito de evitar a eventualidade da queda do alimento no trajeto aéreo. Começa, porém, a diminuir rapidamente de peso, a se desidratar, indo prontamente para a caquexia.
Feito o diagnóstico da fistula, procede-se imediatamente à gastrostomia, com o fito de alimentar o paciente. Ao mesmo tempo se proíbe qualquer alimentação oral e bem assim a deglutição
da saliva. Com estes recursos se procura evitar as complicações pulmonares (pneumonias de aspiração, atelectasias, abcessos pulmonares, etc.), sempre muito graves nestes doentes caquéticos.
O diagnóstico será feito pelos sintomas clínicos já descritos, pela radiografia e pela endoscopia.
A radiografia deve ser feita de preferência com lipiodol, que pode cair impunemente na árvore respiratória, sendo também bastante fluido para penetrar facilmente em fístulas finas. Esta mostrará claramente a existência do trajeto fistuloso.
Nem sempre, entretanto, se consegue uma radiografia elucidativa, pois, muitas vêzes, como observamos, pregas mucosas do esôfago cobrem o orifício fistuloso, impedindo que o contraste passe para a árvore aérea.
O exame broncoscópico mostrará o orifício brônquico da fístula que poderá ser tornado mais visível com o emprego, por via esofagiana, de um líquido corado, A esofagoscopia dificilmente revelará sinal de fístula pois a mucosa do órgão está edemaciada, ulcerada, sangrante e a luz esofagiana estenosada, dificultando tudo isso a boa visibilidade. De todos os meios diagnósticos a broncoscopia é, sem dúvida, associada aos sinais clínicos, o melhor.
Os autores são unânimes em proclamar a grande mortalidade da afecção, havendo mesmo uma estatística de A. Barrut em que num total de 104 casos 92 foram de êxito letal e somente 7 sobreviveram, perdendo-se de vista 5.
O caso que passamos a relatar e em cujo tratamento usamos método original e exclusivamente endoscópico, foi objeto da nota prévia que apresentamos á Sociedade de Otorrinolaringologia do Rio de janeiro, na sessão de 3 de novembro do ano passado, quando a paciente ainda estava em tratamento da fístula.
Hoje apresentamos a esta Reunião o resultado final do tratamento, com a cura radical da paciente.
Trata-se de M. C. V., do sexo feminino, com 18 anos, parda, solteira, com facha n.° 17.845, no Serviço de Otorino do Hospital Getúlio Vargas, onde foi internada em 30-7-52, com a papeleta de internação n.° 1.386.
Em maio de 1952, tomou soda cáustica em grande quantidade com fins suicidas. Socorrida no Posto de Socorro do Hospital Getúlio Vargas, foi por nós examinada no dia seguinte. Apresentava a sintomatologia clássica da esofagite cáustica, inclusive a eliminação de fragmentos bastante extensos da mucosa esofagiana, de mistura com sangue e grande quantidade de suco gástrico e saliva.
Internada no Serviço de Clínica Médica, fez o tratamento de urgência e, após melhorado o seu estado geral, foi transferida para o Serviço de Cirurgia, afim de fazer, a nosso pedido, a gastrostomia. A seguir foi remetida para o nosso Serviço.
Ao dar entrada neste apresentava cicatrizes viciosas nos pilares e na úvula, estando ainda com ulcerações no hipofaringe. Doente ensimesmada, respondendo por monosílabos às nossas perguntas, procurou pela ausência de informações e de colaboração, dificultar ao máximo o seu tratamento e, a tal ponto que não nos foi possível, de início, obter uma radiografia por não querer ingerir o contraste. De modo algum consentiu também em deglutir o fio para a condução da sonda dilatadora.
Em 23-8-52 foi-lhe feita uma esofagoscopia retrógada, com passagem do fio orogástrico e dilatação com as sondas 16 e 21 de Plummer. Em 26-8 a radiografia evidenciou estenose do terço superior do esôfago (Fig. 1).
Fig. 1
A colaboração da doente foi pouco a pouco se fazendo, chegando finalmente a uma submissão total ao tratamento preconizado.
As dilatações bissemanais com as sondas de Plummer se faziam sempre acompanhar de fortes acessos de tosse. Como as radiografias dos campos pleuropulmonares nada esclarecessem e houvesse uma forte sinéquia glosso-epiglótica, foi ela desfeita cirurgicamente com resultado inteiramente nulo, quanto à tosse.
Sempre insistindo com radioscopias do esófago, continuávamos as dilatações.
Em 8 de novembro, uma nova radiografia feita com contraste mais fino (lipiodol) evidenciou a existência de uma comunicação do esôfago com o brônquio direito (Fig. 2), caso bastante raro.
Neste mesmo dia, e antes que pudéssemos fazer qualquer estudo de sua fístula, a doente apresentou uma crise de esquizofrenia, tendo ficado por muitos dias inteiramente ausente e completamente desorientada no tempo e no espaço.
Como consequência, não tomou os cuidados aconselháveis e ingerindo saliva esta passou para a árvore respiratória, o que fez surgir um quadro de bronco pneumonia.
Em 23-12, 45 dias após, tendo-se normalizado o seu psiquismo, recomeçamos as dilatações com a sonda de Plummer.
Fig. 2
Fig. 3
A 8 de janeiro de 1953 conseguimos broncoscópicamente localizar a emergencia da fístula na parede posterior do brônquio direito, a 4 cm. da carena.
O orifício fistuloso estava cercado de tecido fungoso que cauterizamos com ácido crômico ao terço. Repetimos estas manobras cada 20 ou 25 dias ao mesmo tempo que prosseguíamos nas dilatações esofagianas que eram sempre acompanhadas de fortes acessos de tosse.
De abril em diante, além destas cauterizações, fazíamos também injeção de um esclerosante na base do orifício fistuloso, como de uso no tratamento de varices.
O resultado, entretanto, era praticamente nulo o que atribuímos à saliva que, mesmo em pequena quantidade, era suficiente para manter o trajeto fistuloso.
E isto já durava, 11 meses, quando tivemos a idéia de usar em sou esôfago uma sonda de polietileno, substância plástica bastante flexível, leve e indeformável pela compressão circular e muito beira tolerada pelos tecidos orgânicos, em cujo contacto pode ficar vários meses sem lhes trazer irritação ou inflamação. Seria, portanto, uma substância ideal para, ajustando-se à parede do esôfago, impedir a passagem da saliva para a árvore respiratória, enquanto procederíamos ao tratamento da fístula por via endobrônquica.
Tendo conseguido uma sonda uretral n.° 20, calibre adequado ao caso, a julgar pela sonda de Plummer que passava no esôfago, cortamo-la no tamanho necessário e arnarramo-la pelas extremidades com 2 fios (Fig. 3).
Em 13-7-53, com auxílio do fio orogástrico, que estava na paciente, colocamo-la em posição no esôfago (Fig. 4), fixando-a fortemente à pele, pelos seus fios, com esparadrapo, na face e na parede anterior do abdômen.
Fig. 4
O resultado imediato foi espetacular: a doente passou a ingerir líquidos pela boca sem o menor sinal de sua passagem para o aparelho respiratório.
A intensa alegria que se apoderou da doente, que havia 8 meses só se alimentava pelo gastrostoma, foi de tal ordem, que nos fez recear pelo seu estado mental que, como vimos, já estivera anteriormente perturbado.
Daí em diante a paciente se alimentava exclusivamente pela boca, ficando a sonda gástrica mantida somente para servir na eventualidade de uma obstrução da sonda esofagiana. O tratamento com cauterizações e aplicações de esclerosantes, por via endobrônquica, continuou sendo feito, como acima descrito, cada 20 dias mais ou menos.
A partir de 60 dias contados da colocação inicial da sonda, a paciente se alimentava pela boca mesmo sem a sonda de demora e a radiografia feita em 18-8 (Fig. 5) não mais revelaram a existência da fístula.
Após 6 meses do seu uso, em 12 de janeiro do corrente ano, retiramos definitivamente a sonda de polietileno intraesofágica por estar praticamente normalizada a mucosa brônquica.
Recomeçamos então as dilatações do esôfago com a sonda metálica e, no momento, estamos na fase final do tratamento da estenose esofagiana, usando o esofagoscopio 9/45. O último exame endoscopico em 31-8-54, nada mais revelou para o lado do brônquio.
Fig. 5
As radiografias feitas em 27 de janeiro dêste ano, dias após a retirada da sonda (Fig. 6) e em 26 de maio (Fig. 7) 4 meses após, mostram claramente a evolução da recuperação da luz esofagiana.
Como vemos, com o processo usado, inteiramente original, conseguimos fechar uma grande comunicação esôfago-brônquica sem apelar para métodos cirúrgicos, sempre de grande vulto, perigosos e mutilantes, qual seja uma toracotomia com possível pneumectomia direita.
O processo da sonda é também interessante por demonstrar imediatamente ao paciente a possibilidade de uma alimentação oral, que bastante anima a estes infelizes, tornando-os mais dóceis ao tratamento dilatador.
Fig. 6
Fig. 7
Pensamos ser esse o tratamento a ser escolhido para casos semelhantes e pelas vantagens apontadas e pela simplicidade de aplicação, principalmente em meios desprovidos de recursos, em que as operações torácicas não podem passar de sonho dos cirurgiões.
RESUMO
O autor, após algumas considerações sôbre a formação das comunicações esôfago brônquicas por ingestão de cáusticos, apresenta um caso em que usou com êxito uma sonda esofagiana de demora feita de polietileno, substância plástica que muito se presta para o caso por ser flexível, dura e bastante tolerada pelo organismo.
No momento está na fase terminal da dilatação esofagiana estando a doente completamente curada da comunicação esôfagobrônquica, da qual não mais apresenta sinais radiológicos, clínicos nem endoscópicos.
É processo original e o autor chama a atenção para a importância que o mesmo adquire por dispensar operações muito especializadas, impossíveis de serem realizadas em meios de poucos recursos.
É método inteiramente original e que já foi comunicado à Sociedade de Otorrinolaringologia do Rio de Janeiro, em nota prévia, na sessão de 3-XI-53.
SUMMARY
A after some discussion on the broncho esophageal fistula formation, through ingestion of caustics, presents a case in which he has used, with sucess, a delay esophagial tube, made of polyethylene, a plastic substance greatly suitable for this purpose, by being flexible, hard and well enough tolerated by the system.
The esophagial dilatation is presently in its last fasis, and the patient is completely healed of the broncho esophagial fistula, showing no more radiologic, clinic or endoscopic evidence.
This is a original method and the autor emphazises its importance by substituting highly specialized operations impossible to be performed when the available facilities are poor.
This entirely original process has been already reported to the Sociedade de Otorrinolaringologia of Rio de Janeiro, in a preliminary report, in the session or November 3rd. 1953.