VI - LARINGOLOGIA DA TUBERCULOSE
Considerações gerais - Por sua frequência, pela dificuldade de seu tratamento, pelo sombrio do seu prognóstico, a tuberculose da laringe sempre foi encarada com alarme pelos antigos tisiólogos e laringologistas.
Três preconceitos dominaram êste setor da especialidade; e até hoje deles se encontram resquícios, mesmo em certos meios médicos.
Os autores franceses do século passado, sempre dispostos a burilar alguma expressão literária aplicável à patologia, cognominaram a tuberculose laringéia de "monnaie de phtysie". A extensão ao laringe era considerada o drama final, o "dobre de finados" da tuberculose pulmonar. Essa opinião pessimista contribuía para um certo abstensionismo. A entusiasmos episódicos, sucediam largos períodos de apatia.
Outra idéia preconcebida que contribuía para a indiferença terapêutica era a de considerar a tuberculose laringéa uma "complicação" da tuberculose pulmonar, complicação que devia ser tratada em segundo plano.
Um terceiro preconceito era o de que a tuberculose laringéa seguia um decurso paralelo ao da tuberculose pulmonar, piorando ou melhorando com ela: "A tuberculose do laringe é o espelho do pulmão". É a idéia do "paralelísmo" ou de "espelhismo", contra o qual se insurgiram entre nós Mauro Perna (45), Blundi e Benevides (46). Mesmo em modernos autores se encontram vestígios dêsse velho preconceito. Por exemplo, Gilbert e Aronoff (47), afirmam: "Geralmente, a patologia laringéa varia com a severidade das lesões pulmonares" (Para confirmarem esta asserção, aduzem um quadro comparativo entre o grau de lesão pulmonar e o da laringe, quadro esse cujo exame cuidadoso não convence) . Mas ajuntam logo, à frase transcrita: "Entretanto nem sempre isso acontece. Por vêzes encontramos uma severa lesão do laringe, com envolvimento pulmonar apenas moderado ou ligeiro".
Voltaremos a esse ponto ao tratarmos da ausência de paralelismo terapêutico.
Frequência - Não nos extenderemos sobre os quadros numéricos que dão idéia da incidência da tuberculose laringéa. Tais quadros naturalmente divergem conforme são obtidos em serviço de ambulatório, de sanatório ou na mesa de necroscopía, raramente sendo comparáveis. As estatísticas de Collet (48), de St. Clair-Thomson (49), de Ormerod (10) e de Myerson (11 ), são consideradas básicas.
Após o aparecimento das modernas drogas anti-tuberculosas, verificou-se uma queda pronunciada na incidência da tuberculose laringéa, seja pela ação curativa dessa droga sôbre os fócos pulmonares, seja porque possuam uma ação profilática local, diminuindo ou anulando a vitalidade dos germens que passam pelo laringe.
Patogenía - A maneira como se dá a infecção do laringe é um velho tema de debate, surgindo, periódicamente, novos dados que favorecem esta ou aquela teoria.
Não nos deteremos na questão da existência da tuberculose laringéa primitiva ou primária, isto é, da tuberculose iniciada no laringe, sem lesão anterior, pulmonar ou outra qualquer. Na literatura há uma meia duzia de casos de autenticidade admissível, o que vale dizer que são uma curiosidade médica.
Trataremos, aqui, da patogenía da tuberculose laringéa secundária e que se pode resumir na resposta à pergunta: Como se dá a infecção do laringe, partindo de um fóco pulmonar ou amigdaliano? Para não nos alongarmos, passemos a esquematisar os dados do problema:
A teoria broncogênica de Louis admite que os germens são carregados pelas expectorações e depostos nas zonas previamente lesadas pela tosse ou inflamações não específicas do laringe, penetrando através das fissuras eventualmente existentes na zona posterior. Baseia-se em argumentos de ordem anatômica, experimental, clínica e estatística:
Argumento - A tuberculose laringéa complica a pulmonar muito mais que a tuberculose de qualquer outro órgão.
Argumento - A tuberculose laringéa é muito mais frequente nos bacilíferos.
Objeção - Há tuberculosos laringêos com escarro negativo (15% segundo Portmann e Retrouvey).
Contra-objeção - Há bacilíferos intermitentes. Além disso, nos exames de Portmann e Retrouvey, faltavam as culturas, a pesquisa no conteúdo gástrico, inoculações em cobaia.
Objeção - Há tuberculosos pulmonares que eliminam grande quantidade de bacílos, sem apresentarem lesão do laringe.
Objeção - Os bacílos, na expectoração, estão cercados de uma camada de muco, o que dificulta sua inoculação no laringe pelo simples contacto.
Contra-objeção - A quantidade de bacílos eliminados é tão grande que é impossível que, pelos menos alguns, não estejam livres dêsse envoltório de muco.
Argumento - A frequência da tuberculose laringéa é muito maior do que a do faringe, boca, fossas nazais, etc., uma vez que a extagnação do expectorado se faz mais facilmente no laringe.
Argumento - As lesões "de contacto", nas quais se observa o encaixe de uma lesão saliente em outra reentrante, situada bem em frente, sugerem francamente que a segunda lesão se instale pela contaminação direta a partir da primeira.
Argumento - É notável a ação benéfica da colapsoterapía em geral na prevenção da tuberculose laringéa, o que se explicaria pela diminuição da tosse (supressão de uma causa de trauma laringêo) e da expectoração.
Objeção - Os partidários da via hematogênica explicam êsse fato admitindo que a colapsoterapía age como verdadeira ligadura vascular, impedindo a passagem de embolias microbianas para o laringe.
Objeção - Poder-se-ia, segundo sugestão nossa, objetar à teoria broncogênica que a supressão do trauma local dificulta a localisação do bacilo tanto pela via bronquica como pelas vias sanguínea e linfática.
Objeção - A teoria broncogênica não explica a localisação homolateral da tuberculose do laringe.
Contra-objeção - A localisação homolateral está longe de ser a regra e pode ser uma simples coincidência, ou melhor, a homolateralidade é um conceito criado pelo observador, e a localisação pode ser explicada por qualquer das três vias, em tais casos.
Argumento - O ponto de início da tuberculose laringéa é a parte posterior do órgão (aritenoides e comissura posterior), pontos êsses que são justamente os mais expostos à expectoração pulmonar.
Objeção - O início se dá, realmente, com maior frequência na região posterior, mas é outra regra que comporta um número tal de exceções, que perde muito do seu valor.
Argumento - Fränkel demonstrou bacílos dentro do epitélio, logo no início do processo, o que se explica pela deposição direta dos germens sôbre a superfície da mucosa, como supõe a teoria broncogênica.
Objeção - Heinze demonstrou (ou julgou demonstrar) que as lesões do laringe se iniciam junto aos vasos sanguíneos.
Argumento - Martuscelli injetou, após cricotomia, material infectado, e, 3 dias depois, já encontrou tubérculos. Meyer depôs material infetado sôbre escarificações praticadas através de traqueotomia, encontrando tubérculos 16 dias após. Frese repetiu essas experiências e verificou que, após alguns dias, o epitélio se reconstituía sôbre as escarificações, permanecendo bacilos por baixo do mesmo epitélio. Albrecht repetiu também essas experiências e obteve tubérculos 4 semanas depois, sem vestígios das lesões escarificações do epitélio. Em muitos casos surgiu extensão pulmonar, porém em um deles o exame post-mortem não revelou a existência de lesão pulmonar.
Objeção - Nessas experiências e, depois, por via hematogênica ou linfática, se extenderia dos pulmões para o laringe.
Contra-objeção - As lesões tuberculosas, em tais experiências, surgiam exatamente no ponto de inoculação, coincidência que só forçadamente se explica admitindo as vias hematogênica ou linfática. Além disso, em um caso, nem chegou a haver lesão pulmonar.
Objeção - Na prática, não há dessas inoculações maciças, como foram realisadas sôbre os animais de laboratório.
A teoria hematogênica de Neinze aduz fortes argumentos a seu favor:
Argumento - Weichselbaum demonstrou a existência de bacilemías em doentes de tuberculose pulmonar. Löwenstein sustentou que havia bacilemías em 55% dos casos de tuberculose laringéa. Tais bacilemías facilitariam a localisação por via hemática.
Objeção - Maresch, Saenz, Parai e Abaga negam percentagem tão alta, admitindo, apenas 5%.
Argumento - A tuberculose do laringe não evolue de maneira contínua, como sucederia se houvesse sucessivas inoculações por meio do expectorado vindo dos pulmões. Pelo contrário, a evolução se dá por meio de surtos, correspondentes a surtos evolutivos pulmonares.
Argumento - O laringologista observa, frequentemente, que as pioras locais coincidem com a queixa por parte dos doentes, de que "nestes últimos dias foram atacados de gripe (sic), com febre alta, lassidão, etc.", o que se explica por um surto bacilêmico.
Argumento - A tuberculose do laringe não é mais frequente nos pacientes com formas pulmonares altamente bacilíferas e frias (tipo abcesso frio), porém nas formas infectastes por via interna (tuberculose fechada ativa).
Argumento - No início da tuberculose laringéa, tem sido evidenciada a presença de tubérculos junto aos vasos sanguíneos ou no tecido epitelial, sem lesão do epitélio.
Objeção - As experiências de Frese e Albrecht, acima citadas, fazem crer que o epitélio, após a lesão inicial, se regenera rapidamente.
Objeção - Se a via fosse hematogênica, as lesões deveriam atingir quasi todo o laringe, como se dá com a forma miliar.
Contra-objeção - A localisação se faria, de preferência, nas zonas mais traumatisadas, os traumas favorecendo a localisação das micro-embolias.
Argumento - Haryng inoculou bacilos na jugular e obteve lesões laringéas sub-epiteliais, após rápida cicatrisação do epitélio.
Objeção - Porque os bacílios se localisaram exatamente no laringe e não em outros pontos?
Argumento - Os trabalhos modernos de Wessely, de Spira, de Knapp e Blornroos (citados por Wood) mostraram que muitos casos são, indiscutivelmente, de origem hemática. Randerath encontrou tubérculos na médula óssea de zonas de cartilagem laringéa ossificada, sem lesão aparente da mucosa (50 e 51). Semelhante localisação é absolutamente inexplicável pela via canalicular.
A teoria linfogênica, aventada por Kríeg, pretende que a tuberculose do laringe provém da extensão da tuberculose pulmonar, por via linfática; ou do anel de Waldeyer para o laringe, pela mesma via.
Argumento - Krieg afirmava que, na maioria dos casos de tuberculose laringéa unilateral, as lesões pulmonares são do mesmo lado que as laringéas, o que se explicaria pela extensão através dos linfáticos. Segundo êle, na tuberculose laringéa unilateral, as lesões pulmonares existem do mesmo lado em 91% dos casos.
Objeção - Portmann e Retrouvey, em 51 casos de tuberculose laringéa unilateral, encontraram 36 com lesões pulmonares bilaterais, 10 com lesões homolaterais e 5 com lesões contro-laterais. Pelo menos nestes últimos casos a via linfática é absolutamente incapaz de dar uma explicação satisfatória.
Objeção - Beitzke nega que exista ligação direta entre os linfáticos laringêos e os do mediastino.
Contra-objeção - Estudos de Sergent e Gaspar bem como os de Larsel e Fenton confirmaram a existência dessa ligação.
Objeção - Albrecht, empregando pressões muito grandes, não conseguiu, nem assim, o refluxo de líquido dos linfáticos do mediastino para os do laringe.
Objeção - Segundo os clássicos, é rara a tuberculose laringéa na criança, apesar da importancia dos linfáticos na disseminação da tuberculose na criança.
Contra-objeção - Rubin e Galburt mostraram que a tuberculose do laringe não é tão rara na criança, o que se comprova praticando o exame sistemático, só viável pela laringoscopia direta.
Argumento - Frequência da tuberculose laringéa, após a extirpação de amígdalas palatinas tuberculosas.
Objeção - Em uma série de 68 amigdalectomias por nós praticadas em crianças tuberculosas, o exame histo-patológico revelou lesões tuberculosas em 7 pacientes. Dêsses, 6 foram acompanhados detidamente, tendo se verificado um só êxito letal, através da generalisação da infeção, 2 anos após a operação (44).
Objeção - Porque é relativamente rara a amigdalite tuberculosa (encontramos 10,28% em crianças tuberculosas), sendo tão frequente a tuberculose laringéa?
Objeção - Porque as crianças apresentam tantas lesões inflamatórias do anel de Waldeyer, e tão poucas laringites infecciosas?
Argumento - Meissner e Clegg (94) encontraram, com relativa frequência, tubérculos epitelioides na mucosa de bronquios aparentemente normais à broncoscopía, tubérculos esses recobertos de epitélio normal e localisados em áreas de tecido pulmonar normal. Meissner supõe que tais tubérculos se originariam por propagação linfática a partir de focos pulmonares longínquos. Os bronquios atingidos bem como as áreas pulmonares correspondentes nada revelam aos raios X. Segundo nós, poder-se-ia ampliar a interpretação e admitir que esse tipo de lesões mascaradas se extenda até os grandes bronquios e traquéa, dando razão à hipótese de Derscheid e Toussaint de que a infecção do laringe possa partir dos pulmões de proche en proche, como tornaremos a ver adiante.
Objeção - Sómente o encontro de lesões escalonadas dos pulmões até ao laringe poderá confirmar essa hipótese, encontro que ainda não foi verificado.
Eis aí, muito concentrada, uma exposição do estado atual do problema da patogenía da tuberculose laringéa, que não tem apenas interesse especulativo. Muitos argumentos são antigos, alguns refutados em parte, outros parecendo mais sólidos. Propositalmente, relatamos a questão sob forma contraditória, uma vez que as opiniões ainda se acham flutuantes. Provavelmente os três mecanismos entram em ação, ora num, ora noutro caso, mas a tendência atual é dar mais importância à via hernatogênica. Repitamos aqui as palavras de Ulrici (62), ainda hoje em plena validez: "Clínica e até anatomo-patológicamente, é excepcional poder se evidenciar o mecanismo de cada caso de tuberculose laringéa".
Sintomatologia - A tuberculose do laringe apresenta alguns sintomas comuns à tuberculose pulmonar - tosse, hemopitise, disppéa, etc. Ao laringologista e ao tisiólogo cabe apurar, em cada caso, qual dos dois territórios é o responsável por esses sintomas, confrontando os resultados da laringoscopia com os dados colhidos durante o exame pulmonar.
As parestesias (sensações de prurido, formigamento, etc. ), são frequentes.
A disfagia é comum, mas é preciso excluir outras possíveis afecções concomitantes, extra-laringéas, principalmente do esôfago. Aqui uma anamnese atenta e minuciosa fornecerá os dados de maior importância, eventualmente completados pelo exame radiológico e pela esôfagocospía.
A odinofagia, isto é, a dor à deglutição, é determinada, na tuberculose laringéa, pela exposição das terminações nervosas, nos processos de ulceração, ou pela compressão e irritação das mesmas, pela distensão dos tecidos nos processos de infiltração, de pericondrite das aritenoides, mais raramente de pericondrite da epiglote. Encontra-se, também, nos neoplasmas extrínsecos, na lues, etc., afecções que é preciso sempre excluir nos tuberculosos pulmonares, com queixas laringéas.
A otalgia se explica pela existência de anastomoses do laringêo superior com o maxilar superior, que inerva o ouvido médio. Sabe-se, com efeito, que a compressão enérgica lo laringêo superior, no ponto correspondente àquele onde êle perfura a membrana tiro-ioidéa, provoca uma viva otalgia, sendo, aliás, um clássico ponto de referência durante a alcoolisação ou novocainisação do laringêo superior, no tratamento das odinofagias intensas dos tuberculosos.
As desordens de fonação merecem ser focalisadas, de maneira especial. É importante distinguir entre os seus diversos tipos e, por essa razão, cremos útil reuni-los em um quadro geral, de acôrdo com Clerf (52 e 53), com o fito de facilitar o diagnóstico diferencial:
DISTURBIOS DA FONAÇÃO
A disfonia é o sintoma mais comum e, geralmente, o mais precoce na tuberculose laringéa, abrangendo toda uma escala de disturbios da fonação, desde o simples "cansaço vocal" até à quasi total afonia. Aqui, como em outras afecções do laringe, a intensidade da sintomatologia não está na razão direta da importância das lesões encontradas. É assim que grandes destruições podem coexistir com voz razoavelmente clara, enquanto que uma pequena lesão de uma corda pode acarretar marcada disfonia. Além disso, é preciso chamar a atenção para o fato de que as lesões tuberculosas destrutivas ou proliferativas, deformantes das paredes do canal laringêo, nem sempre são a causa da disfonia, podendo estas correr por conta de paresias nervosas ou musculares ou de anquilose de articulações.
Quando encontrarmos uma disfonia em um tuberculoso, somos, naturalmente, levados a atribuí-la a lesões de laringite tuberculosa, o que, geralmente, é comprovado pelo exame laringoscópico. Muitas vêzes, porém, esse exame não revela lesões inflamatórias e sim uma corda vocal imobilisada ou uma insuficiência de fechamento da glote, durante a fonação. E não é raro depararmos com um problema: uma paralisia laringéa, que encontramos em determinado indivíduo, resulta de lesões locais (musculares, articulares ou nervosas), produzidas pela tuberculose, ou será devida a lesões do nervo, distanciadas do laringe? Em tais casos é preciso excluir grande número de causas extra-laringéas das paralisias do laringe, as quais podem atingir o vago ou seus ramos laringêos bem como as fibras correspondentes, no seu trajeto intracefálico. É uma tarefa penosa, mesmo com a colaboração do neurologista, pois como diz Musgrove (54), "Enumerar todos os fatores etiológicos possíveis, causando paralisias laringéas, seria fazer uma lista categórica de todas as doenças das estruturas subdérmicas da cabeça, do pescoço e do tórax.. Sob esse aspecto, o quadro que apresentamos acima é forçosamente incompleto, servindo, apenas, para uma primeira orientação.
Titche (55), estudando as paralisias do recurrente de causa intratorácica, resume o respectivo mecanismo em: compressão, lesões inflamatórias e soluções de continuidade do nervo. Cita um caso de paralisia recurrencial direita devida a aneurisma da sub-clávia homolateral e outro caso produzido por um aneurisma da arteria vertebral direita. Quanto ao recurrente esquerdo, mais frequentemente atingido, Titche lembra, como causas mais notáveis, os aneurismas da aorta, cardiopatias com hipertensão, estenose mitral, e comunicações inter-auriculares, além dos canceres das proximidades do trajeto dos nervos de ambos os lados.
É evidente que qualquer dessas entidades mórbidas pode coexistir com a tuberculose pulmonar e a disfonia ser atribuída, erradamente, à tuberculose laringéa. Por isso, diante de certas disfonias, em pacientes tuberculosos, sem lesões inflamatórias visíveis do laringe, o especialista tem de resolver vários problemas:
1.° - A disfonia se explica pela existência de uma lesão limitada, dificilmente visível por sua localisacão, como seja nos ventrículos ou na sub-glote? (Mecanismo raro).
2.º - Existe paralisia total ou parcial de uma corda vocal?
3.º - Há ou já decorreu uma artrite crico-aritenoide?
4.º - A disfonia é atribuível a um processo de enfraquecimento dos músculos do laringe, ligado a um enfraquecimento muscular geral, consequente à moléstia ou mesmo a lesões tuberculosas dos músculos laringêos?
5.º - Há compressão dos recurrentes ou processos de mediastinite circunscrita, atingindo esses nervos? (Êste último mecanismo, discutível).
6.° - Há dilatação cardíaca?
7.º - Há comunicação inter-auricular?
8.º - Há estenose mitral?
9.º - Existe um processo de apicite homolateral à paralisia?
10.º - Há suspeita de câncer intra-torácico, localisado nas proximidades do trajeto dos nervos recurrentes?
11.º - Existe bócio, inclusive de forma mergulhante?
Exame objetivo e tipos anátomo-clínicos - A laringoscopia revela imagens que a iconografia dos tratados clássicos nos permite apreciar melhor que qualquer descrição. Desde o vetusio Atlas de Gouggenheim e Glover (56) e do antigo manual de Grünwald (57) (cujas estampas até hoje conservam sua nitidez e colorido), passando pelo excelente volume de Collet (48), pelo tratado de Lannois e outros (58), pelas modernas obras dos Jacksons (43) e de Lederer (8), até o belo Atlas cromofotográfico de Hollinger (59), possuímos uma verdadeira galeria de quadros laringoscópicos reproduzidos com notável exatidão.
Talvez se possa admitir que um laringologista, com longa prática em serviço de tuberculose, consiga elaborar uma certa "impressão" de conjunto que possibilite o diagnóstico à primeira vista. Mas a verdade é que nada existe de típico, nem "sinal de alarme", nem sintoma precoce, na tuberculose laringea.
Várias vêzes tivemos ocasião de observar a "pincelada aritenóide" de Moure, tal como êle próprio a descreve (58), isto é' "... la pâleur géneralle des tissus de l'arrière-gorge et du laryn contraster d'une façon frappante avec la ròugeur carminée de la surface aryténoïdienne. Ce coup de pinceau laqué caracterise, souvent la période initiale de la tuberculisation laryngée".
No entanto, observamos que esse aspecto laringoscópico persistia muitas vezes durante meses, apesar do tratamento, e até depois da alta clínica. Temos convicção de que não se trata de uma lesão específica, tanto mais quanto tivemos ocasião de observar imagens semelhantes em casos nos quais o diagnóstico de tuberculose fora seguramente afastado.
Alguns autores dão valor a certos dados vagos, como sejam a palidez intensa do véo do paladar. Conrad Arold (60) cita como dados não seguros "avermelhamentos unilaterais das cordas vocais, espessamentos paquidérmicos e outros sinais semelhantes". As vilosidades do espaço posterior, embora frequentes na tuberculose laringéa, não são dela características. Temos encontrado esse aspecto em vários tipos de laringites produzidas por diferentes causas de irritação - fumo, manipulação de drogas, etc.
Já se procurou estabelecer uma concatenação cronológica entre os diversos tipos de lesões tuberculosas do laringe (Cody - 61). Do ponto de vista histo-patológico essa cronologia terá, talvez, uma razão de ser. Clinicamente, porém, é difícil afirmar, por exemplo, que uma lesão de aspecto papilomatoso tenha sido precedida de uma infiltração edematosa ou que uma pericondrite suceda a uma lesão ulcerativa. Praticamente, o melhor é identificar os tipos clássicos - anemia, congestão, infiltração, edema, ulceração, tuberculoma, pericondrite, necrose e abcedação de cartilagem, artrite e suas diversas combinações.
Há pouca utilidade em descrever aqui esses diversos tipos de lesões. Sómente um certo tirocínio permite a sua diferenciação, mesmo assim com reservas, pois, bastas vêzes, a infiltração se acompanha de edema, de maneira que será catalogada num ou noutro tipo, conforme predomine êste ou aquele aspecto. Outras vêzes não se pode afirmar com segurança se se trata de uma infiltração da mucosa que cobre uma aritenoide ou se já existe um processo de pericondrite em início. Por essas razões devem ser recebidos com reserva os quadros e esquemas apresentados por Lederer, por Meyrson, por Gilbert e Aronoff.
Em resumo, a distinção dos tipos clínicos não é perfeita. Faculta-nos, apenas, um ponto de referência para anotações e acompanhamento da evolução das lesões. "A imagem laringoscópica pode oferecer quadros tão grotescos que se torne difícil a orientação, exigindo uma exploração, ou melhor, em caso de grande debilidade do enfermo, explorações repetidas" (62).
Alguns autores antigos se preocuparam com a frequência de cada tipo de lesão. Após o emprego das novas drogas anti-tuberculosas, essa frequência foi completamente alterada. Nunca nos pareceu útil o estudo da frequência da localisação em tal ou tal ponto. Em um dos mais modernos tratados, Ellis (63), escrevendo sôbre a topografia das lesões, assim se exprime: "Deu-se-lhe uma importância desproporcionada na literatura. Descrições minuciosas da percentagem de incidência nas diferentes partes do laringe realmente nada ajuntam ao quadro clínico da doença e têm lugar relativamente pequeno no prognóstico e tratamento".
Para quem tenha experiência clínica antes e depois da nova era terapêutica, é visível que as lesões ulcerativas quasi desapareceram, que as lesões proliferantes diminuíram muito, que as grandes infiltrações edematosas, como a "epiglote em turbante" são raras, prevalecendo as infiltrações sem edema e as pericondrites.
As razões para essa mudança não são evidentes. Como simples suposição podemos admitir que a estrepto, bem como a hidrazida, diminuindo a expectoração e a eliminação de bacilos, traz, em consequência, uma diminuição das lesões superficiais de inoculação direta. Mas também podemos pensar em uma verdadeira proteção local.
Diagnóstico - Na prática, o oto-rino-laringologista se defronta com três interrogações (Turner):
a) Há suspeita ou certeza de tuberculose pulmonar. O que há no laringe?
b) Há algo no laringe. Será tuberculose?
c) Haverá associação, com lues, ca., leishmaniose, etc.?
Em primeiro lugar valer-nos-erros dos dados já fornecidos (ou a fornecer), pelo tisiólogo. Se não há tuberculose pulmonar, não há tuberculose laringéia.
Em segundo lugar, analisaremos a sintomatologia, como ficou discutida acima.
Em terceiro lugar, iremos à laringoscopia indireta, sempre que possível completada com o exame direto, êste último nos fornecendo informações mais perfeitas sôbre a comissura anterior, os ventrículos de Morgagni e a região sub-glótica.
Em quarto lugar nos valeremos, eventualmente, da biópsia, das sôro-reações de lues, e da radiografia, praticada com o paciente executando a manobra de Valsalva, que provocará uma distensão dos ventrículos de Morgagni, podendo evidenciar uma formação tumoral no interior dos mesmos, que passaria despercebida a um exame com o espelho.
Diversas entidades nasologicas terão de ser excluídas, em certos disturbios da fonação, de acôrdo com o quadro acima, para o que será necessário proceder a outros exames eventuais, como o cardíaco, o hematológico, etc. Cardiologistas, psiquiatras, endocrinologistas e alergistas serão auxiliares preciosos, em alguns casos menos simples.
Prognóstico - O prognóstico da tuberculose laringéa, na era pré-antibióticos, era, muitas vêzes, sombrio e reservado, não só do ponto de vista local como quoad vitam. A estreptomicina veio modificar completamente o prognóstico local que se tornou ainda melhor com o uso do PAS e da hidrazida, como veremos a seguir. Essa melhoria do prognóstico tornou obsoletas a hemossedimentação, o hemograma, a reação de Vernes e outras, as quais, mesmo antes do aparecimento dos modernos basteriostáticos, estavam sendo abandonadas.
A mortalidade dos portadores de tuberculose laringéa que, segundo Blumenfeld e Goebel era de 50%, baixou extraordinariamente. Diríamos, mesmo, que o tuberculoso do laringe só morre devido às lesões pulmonares. Sómente em casos tratados muito tardiamente, a odinofagia extrema, produzida pela impossibilidade do controle terapêutico até pelos bacteriostáticos, poderá se tornar um fator decisivo no êxito letal.
É certamente a esse grande declínio do papel nocivo da tuberculose laringéa que se deve a idéia algo vulgarizada de que "não há mais tuberculose laringéa", opinião radical que os consultórios de laringologia, principalmente os dos sanatórios, facilmente podem invalidar.
Tratamento - Estrepto e diidro - Talvez nada seja tão típico para ilustrar a fragilidade de certas aquisições da Medicina como a história do tratamento da tuberculose laringéia. É uma longa crônica de tentativas, de tateamentos, de experimentações temerárias, de técnicas complicadas, e até de métodos que, já a priori, poderíamos considerar fadados ao fracasso. Como sempre, a riqueza de tratamentos refletia a penúria de resultados. "As formas aceitas de tratamentos da laringite tuberculosa eram muitas e variadas. É o que se dá quando não existem meios reais satisfatórios de combater uma doença". (Cody).
Na verdade, até uns oito anos atrás, nenhum processo terapêutico facultava uma razoável percentagem de curas, isto é, as percentagens de cura obtidas com êste ou aquele tratamento não eram muito maiores do que as percentagens encontradas quando não se fazia tratamento algum.
Em 1946, porém, Figi et al. (64) e Hinshaw et al. (33), todos da Clinica Mayo, apresentaram vários casos de tuberculose do laringe, faringe e brônquios, todos curados pela estreptomicina. As narrativas de novos êxitos se sucederam rapidamente:
"Resultados muito favoráveis foram obtidos no tratamento de laringite tuberculosa e na tuberculose traquéo-brônquioa. Nesses casos, a droga foi aplicada por via intramuscular e por meio de inalações. (nebulisação)". Eis o que diziam Pfuetze et al., no relatório apresentado pelo Comitê de Quimioterapia pela Estreptomicina na Tuberculose, em 1947. (65).
Black e Bogen (66), na 43.R reunião anual da National Tuberculosís Association, concluíam: "A estreptomicina foi, na nossa experiência, de longe o tratamento mais eficiente até agora conhecido da laringite tuberculosa".
Lieberman e Lell (67), em 37 casos, notaram uma "resposta definitiva" em todos êles.
O'Keefe (68 e 69), Cody, Vadala (70), Gilbert e Aronoff (47) e muitos outros, foram confirmando a ação benéfica da estreptomicina sob a forma de aerossol ou melhor, por via parenteral.
Após o emprego da estreptomicina foram abandonados quasi todos os antigos métodos de tratamento local. Ficaram em repouso vocal, as medicações sintomáticas (analgésicos, óleos medicamentosos, etc.), a galvano-caustia e, talvez, a finsenterapia. Em casos excepcionais, em pacientes não tratados ou entrando nas últimas fases da doença, ainda somos forçados a lançar mão de métodos da "era pré-bacteriostática". Examinemos o tratamento pelas modernas drogas anti-tuberculosas, passando, depois, em ligeira revista, alguns dos antigos processos ainda em uso, embora excepcionalmente.
O efeito da estrepto sôbre a laringite tuberculosa foi verificado logo no início do emprego da droga no tratamento da tuberculose humana. Verificou-se que, de maneira geral, os efeitos sôbre as lesões tuberculosas do laringe eram mais notáveis do que sôbre as lesões pulmonares.
Durante algum tempo se discutiu a dosagem mais conveniente, o problema do aparecimento da resistência, etc., e os laringologistas se limitavam a adotar os esquemas preconisados pelos tisiólogos. Pessoalmente, seguimos esse caminho. Como, porém, em certos casos, os tisiólogos abandonavam a estreptomicina, que já não dava resultado no tratamento das lesões pulmonares, julgamos que isso não era motivo para que o laringologista também a abandonasse. Verificamos, então, em muitos portadores de lesões laringéas, o efeito notável da estreptomicina, sôbre essas mesmas lesões, embora o tisiólogo considerasse inútil o seu emprego.
Tivemos mesmo doentes com estreptomicino-resistência comprovada pelo laboratório e cujas lesões do laringe eram visivelmente melhoradas ou eram curadas pela estrepto. Nessa época, Gilbert e Aronoff (47) fizeram as mesmas verificações.
Desde 1949 vimos insistindo junto aos tisiólogos sôbre esse assunto e adotamos, como regra absoluta, o emprego de estrepto (ou diidro) em todos os casos de tuberculosos do laringe, ainda que o laboratório declare ter se desenvolvido a estrepto-resistência. Naquela época, em um sanatório, estava sendo praticado o racionamento da estrepto, devido à escassez do produto. A inoperância do anti-biótico sôbre as lesões pulmonares de certos pacientes determinava a suposição de que havia surgido a estrepto-resistência e esse critério clínico era dos adotados para o racionamento da droga. Nessa época tínhamos a impressão, que ainda temos, de que a estrepto-resistência desempenhava o papel de Deus ex machina, servindo para fornecer uma explicação fácil onde não havia ainda uma explicação científica. Existia uma visível discrepância entre a prática clínica e os resultados de laboratório, discrepância que só novas investigações poderiam suprimir.
Em vista disso, insistimos em que não se fizesse racionamento no setor da oto-rino-laringologia, mantendo a opinião de que, praticamente todas as laringintes tuberculosas se beneficiavam com a estrepto, devendo, portanto, proceder-se ao emprego sistemático da droga. Com o tempo, os tisiólogos se convenceram da legitimidade dessa orientação e da necessidade de colocar de lado, definitivamente, a noção de "paralelismo terapêutico", como já fora abandonada a de "paralelismo patológico".
Aliás é sabido que, mesmo atualmente, o capítulo da resistência aos anti-bióticos continua com vários pontos importantes imersos em obscuridade, existindo uma terminologia complicada (71), sem a desejável uniformidade de técnica, tornando-se evidente que ainda decorrerá bastante tempo antes que os conhecimentos se estabilizem nesse setor.
A prática mostrou que a comprovação da resistência in vitro não corresponde, forçosamente, a uma resistência no organismo humano. Segundo um recente relatório sôbre a quimioterapia da tuberculose (36), verificou-se a franca disparidade entre a emergência de formas resistentes à isoniazida verificada no laboratório, e o início da resistência própriamente clínica, disparidade que se procurou explicar admitindo que as formas resistentes à isoniazida eram avirulentas. Acresce que os estudos de Petit (71) e outros parecem mostrar que existem "graus" de resistência in vitro e que as provas de laboratório devem ser melhor compreendidas pelos clínicos. Também, no último Congresso Italiano de Tisiologia (Out. 1953), o relatório de Omodeo-Zorini sôbre "a hidrazida do ácido iso-nicotínico na terapia da tuberculose", assinala, judiciosamente (72) : "... às vêzes o doente melhora sob terapia mesmo quando no laboratório se fala de resistência de grau moderado. A resposta de laboratório é qualitativa e não quantitativa e se limita a uma dada cêpa de um dado foco, não sendo a, expressão de toda a população bacteriana de um indivíduo".
Do ponto de vista da oto-rino-laringologia é evidente que não há paralelismo entre a ação da estrepto sôbre os pulmões e sôbre o laringe. Tratar-se-ia de um fator laringêo, local, que favoreça a ação da droga? Tem-se apresentado como causa a maior eficácia da estrepto nas lesões das mucosas em geral, inclusive do laringe. Ora, essa afirmação, em última análise, não é mais do que a enunciação de um fato e não constitue explicação. Além disso, é bom lembrar que a tuberculose do laringe não é apenas da mucosa, sendo atingidos, com frequência, cartilagens, articulações e músculos.
O que se verificou com relação ao laringe, também se encontrou com relação às lesões renais, articulares, etc. Esperemos que um melhor conhecimento do mecanismo da denominada resistência aos anti-bióticos venha esclarecer as razões dessa disparidade entre os achados de laboratório e os clínicos.
Seja como fôr, um fato ficou bem esclarecido: O abandono da estrepto por parte do tisiólogo (seja por verificar sua ineficácia clínica, seja pela comprovação laboratorial do aparecimento da resistência) não implica, forçosamente, no abandono da droga pelo laringologista. Pessoalmente, temos observado doentes que, sob a ação dos antibióticos, tiveram suas lesões laringéas curadas, embora viessem a falecer por motivo da extensão de suas lesões pulmonares.
Passemos em revista os resultados da introdução da estrepto na terapêutica da tuberculose laringéa.
Por nossas mãos passaram algumas centenas de casos tratados exclusivamente pela estrepto (ou diidro). Não levantamos uma estatística que nos permitisse tabular os resultados, o que não impede que possamos mencionar as conclusões a que chegamos, comparando as verificações feitas em doentes de ambulatório, durante 4 anos, antes da descoberta da estrepto (1938-1941), com as observações em pacientes de sanatório, também durante 4 anos (1949-1953). Naturalmente, essas conclusões seriam melhor amparadas com dados numéricos precisos, mas acreditamos que, mesmo sem esses números, podemos ter uma visão de conjunto suficientemente instrutiva, que nos permite mencionar algumas conclusões a que chegamos:
a) Verificação de uma notável diminuição no número absoluto de casos de tuberculose laringéa.
Quais os motivos dessa diminuição? Talvez não fôsse desarrazoado pensar em um papel verdadeiramente profilático da estrepto, através de uma ação bacteriostática local. Mais aceitável seria admitir que a melhoria e o eventual fechamento das lesões pulmonares pela estrepto tragam, em consequência, uma diminuição de número de germens eliminados pelos brônquios (tuberculose laringéa broncogênica) ou caídos em circulação (tuberculose laringéa hematogênica ou linfogênica).
b) Redução notável das áreas lesadas. Quasi não se observam lesões ulcerativas extensas. As infiltrações geralmente se limitam à parte posterior e estacionam ou regridem sob a ação da estrepto.
c) Diminuição do número de lesões avançadas. As grandes destruições da epiglote são raras, bem como as úlceras múltiplas das cordas, dando o clássico aspecto de "cordas em serrote". São raras as artrites supuradas da crico-aritenoide, bem como as lesões obstrutivas ou estenóticas.
d) Ação sôbre lesões de todos os tipos, conduzindo à cura ou pelo menos à estabilisação em um dêsses tipos. Devemos excetuar a forma miliar, associada à tuberculose miliar do faringe (moléstia de Isambert), da qual observamos dois casos tratados exclusivamente pela estrepto, sem o menor resultado.
e) Evolução independente, isto é, nem sempre paralela, das lesões pulmonares, de um lado, e das laringéas, de outro. Muitas vêzes as lesões do laringe se curam, muito embora as lesões pulmonares progridam, podendo até conduzir ao êxito letal. Não há paralelismo terapêutico. "Uma lesão - laringéa pode se curar prontamente, ainda que o escarro permaneça positivo e a condição pulmonar inalterada". (Cody).
Gilbert e Aronofi dizem que " antigamente a melhoria da tuberculose do laringe dependia da doença pulmonar. O ditado era - Como vai o pulmão, assim vai o laringe - Isso não é mais verdade". (47). Data venia diríamos: "Isso não é mais verdade, nem era verdade".
Em recente trabalho, Calvet et al. (73) falam na "dissociação entre o estado pulmonar e o laringêo, permitida graças à estreptomicina, e assinalada no relatório geral sôbre a estreptomicina, no Congresso de 1949". Procurando, porém, salvar o preconceito do paralelismo, aludem à possibilidade de uma segunda infecção do laringe (ou uma "chicotada" sôbre as lesões quiescentes), enquanto as lesões pulmonares não se curarem. Repetem as palavras de Étienne Bernard, Lothe e Arnaud : "Se encararmos a evolução com certo recuo, o paralelismo laringo-pulmonar retoma seus direitos".
Ora, ninguém pretenderá negar que, persistindo o foco pulmonar, haja possibilidade de nova laringite tuberculosa ou de qualquer outra localisação. O que se procura refutar é a velha idéia da evolução paralela das lesões, e da evolução paralela dos tratamentos. Mais uma vez repitamos: Não há paralelismo patológico nem terapêutico entre as lesões pulmonares e as laringéas.
Fica subentendido que não se irá tratar a tuberculose laringéa separadamente da tuberculose pulmonar nem dar-se por satisfeito apenas com a cura das lesões laringéas, como faz ver Vadala.
A posologia da estrepto na tuberculose laringéa acompanhou as flutuações da opinião com respeito às doses mais convenientes na tuberculose pulmonar. As doses para tratamento das lesões laringéas são muito menores que as necessárias para a tuberculose pulmonar, como o demonstrou Margulies (74). Como, porém, o tratamento desta última tem que ser feito, o oto-rino-laringologista tem que se conformar com doses mais elevadas do que êle receitaria. Acresce que, com as pequenas doses, a resistência à estreptomicina surge mais cedo do que com as doses maiores, habitualmente empregadas pelos tisiólogos.
Tudo o que foi dito sôbre a estrepto, se aplica a diidro, com a ressalva de que esta é terapêuticamente menos ativa e menos tóxica. Além disso, como já vimos atrás, a neurotoxidez da estrepto, se exerce mais sôbre o aparelho vestibular, enquanto que a diidro ataca, de preferência, o aparelho coclear. Aliás, essa eletividade tóxica comporta numerosas exceções.
É bom notar que as lesões do vestibular são, geralmente, reversíveis, enquanto que as lesões do acústico podem se tornar irreversíveis, se a droga não fôr retirada a tempo. É justamente por isso que julgamos útil (como dissemos acima) investigar o estado do acústico em pacientes submetidos às estreptos, mesmo na ausência de sinais de lesão do nervo, isto é, cremos necessário encontrar um artifício que nos permita rastrear as eventuais lesões, em sua fase pré-clínica.
Convém mencionar a ação da estrepto sôbre a tuberculose miliar laringéa. Temos sob observação um caso com lesões da epiglote e das cordas, acarretando odinofagia intensa, acompanhada, naturalmente, de queda do estado geral. Após o início do tratamento, as melhoras foram rápidas. A administração de 1 gr diária de dihidroestreptomicina determinou o início da cicatrisação das lesões da epiglote, permanecendo uma chanfradura perto da linha mediana devida à perda de substância acarretada pela fusão de vários tubérculos miliares, ao mesmo tempo que os bordos das cordas se alisavam e a voz melhorava consideravelmente, tudo isso após 20 gr. administradas em 20 dias. Passamos a empregar, então, injeções diárias de diidro associada à hidrazida. O paciente, em cerca de um mês, teve o seu peso aumentado em 8 quilos, o estado geral se apresentava excelente, embora prossiga o regime higieno-dietético que vinha sendo praticado. Tal resultado contrasta com o fracasso nos dois casos de tuberculose miliar laringéa associada à faringéa, casos citados acima. Naturalmente, nada iremos inferir dêsse contraste, consignando, apenas, o fato.
Não temos experiência das pequenas doses de estrepto (ou diidro) na tuberculose miliar do laringe. Os casos não são numerosos, e, uma vez que não haja disturbios para o lado do acústico, acreditamos ser mais seguro ministrar doses maiores, uma vez que há urgência em atacar o mal, não sendo aconselhável perder um tempo, precioso para o doente, com a finalidade de esclarecer esse ponto da terapêutica.
Ácido para-amino-salicílico - Digamos algumas palavras sôbre o emprego do PAS no tratamento da tuberculose laringéa. Usado isoladamente, mostrou ação muito limitada, mas há anos vem sendo empregado em associação com as estreptos, com o fito de proporcionar a redução das doses totais destas últimas e retardar o aparecimento da estrepto-resistência.
Tivemos ocasião de seguir vários esquemas de dosagem tais sejam: 1 gr de estrepto (ou diidro) no primeiro dia e 6 a 12 gr de PAS nos dois dias seguintes, repetindo as drogas segundo esse esquema durante meses, se não surgirem sinais de intolerância; 1 gr de estrepto em dias alternados, ministrando o PAS nos dias intercalados; etc. Todos deram resultados sensivelmente iguais.
Hidrazida do ácido iso-nicotínirco - Com o aparecimento desta nova droga, a tendência geral passou a ser a de dar-lhe preferência sôbre o PAS. Não tivemos oportunidade de tratar a tuberculose do laringe com hidrazida, isoladamente, por isso que praticamente todos os pacientes que nos vem às mãos já estão sob a ação das estreptos, receitadas pelo tisiólogo, ou se não o estão, porque o tisiólogo admitiu o aparecimento da resistência, nós mesmos a receitamos.
A hidrazida tem mostrado uma ação notável sôbre a maioria dos casos nos quais a vimos empregando, irias quer nos parecer que tal ação é devida, em grande parte, à diminuição da tosse e da expectoração bem como ao efeito sôbre o estado geral, fato êste último já francamente comprovado.
Tiosemicarbazonas - Tivemos ocasião de empregar o Tb 1, per os, na laringite tuberculosa, com alguns acidentes sem gravidade ao contrário das verificações de Mertens e Bunge (75) e de Hinshaw e Mc. Dermott (76). Não observamos resultados melhores que os obtidos com os outros agentes bacteriostáticos, inclusive em um caso de moléstia de lsambert, no qual o fracasso foi completo. Contudo, com o número de casos observados foi reduzido, não possuimos elementos para uma afirmação segura, embora nossa opinião seja pessimista. Também tivemos oportunidade de ministrar a droga sob a forma de aerossol, sem resultados convincentes.
De maneira geral, não podemos confirmar os resultados de Conrad Arold (77), o qual, tratando de 100 casos de tuberculose laringéa com o Tb 1, afirma ter obtido êxito completo em 86. Segundo esse autor, os processos clinicamente graves das mucosas sãos os que melhor respondem ao tratamento pelo Tb 1. Da observação do efeito sôbre a tuberculose elas mucosas das vias aéreas superiores, julga poder opinar que a droga age diretamente sobre o germem.
Outros medicamentos anti-tuberculosos - Novas drogas vem sendo experimentadas. Um papel de certa importância talvez venha a ser desempenhado pela neomicina, pela viomicina e pela pirazamida. Esopo menciona curas de lesões do laringe e do véo (36). Também vêm sendo experimentados o extrato de Ramalina reticulata e a associação estrepto-terramicina. Apenas por lembrança citemos a penicilina, cuja ação anti-tuberculosa in vitro já chamara a atenção de alguns experimentadores, antes da descoberta da estreptomicina.
As medicações antigas - Referir-nos-emos, rapidamente, às medicações que eram usadas no período que precede imediatamente à descoberta da estrepto:
Sempre tivemos dúvidas sôbre a utilidade da cura de silêncio. É claro que o paciente deve se abster de longas palestras e, de maneira geral, de qualquer esforço vocal mais intenso, o que não significa o silêncio quasi absoluto, aconselhado pelos especialistas de antigamente, seguindo a opinião respeitável de St. Clair-Thomson, embora se notasse que o faziam sem grande entusiasmo. A "cura de silêncio" era prescrita sem grande convicção. Mesmo Schugt, que chegava a adotar, em certos casos, a paralisia artificial das cordas, não o fazia com especiais encômios (41) . E a verdade é que, após o advento dos modernos bacteriostáticos, o repouso vocal vai sendo relegado ao esquecimento, mesmo nos regimens sanatoriais.
A helioterapia, a radioterapia, a radiumterapia, o tratamento pelo radon, a crioterapia, a iontoforese, etc., que tiveram seus paladinos e seus detratores, entraram rapidamente no esquecimento, ou porque realmente não fossem de comprovada eficiência, ou porque a descoberta de tratamentos mais ativos acarretassem o seu abandono. Da fisioterapia ficou apenas, resistindo até hoje, o tratamento pelo ultra-violeta, bem estudado e aplicado entre nós por Duarte Moreira (78) e que ainda encontra algumas indicações. Deixando de lado a crisoterapía, que teve seus entusiastas, achando-se hoje, inteiramente abandonada, citemos o óleo chalmoogra, com o qual obtivemos excelentes resultados (79), mas que puzemos de lado quando surgiu a estreptomicina.
Tratamento cirúrgico - As cauterizações químicas pelo ácido lático ou outros cáusticos ainda encontram aplicação em alguns raros casos de formas ulcerativas superficiais. Quanto à galvanocaustia (preconizada por Voltolini em 1871 e vulgarizada por Grünwald, em 1910 - segundo Myerson), é menos usada hoje que há 8 anos atrás, não porque não dê resultados excelentes, mas sim porque os casos nos quais é indicada se tornam cada vez mais raros. De maneira geral podemos dizer que a galvano-caustia é indicada quando se deseja provocar uma forte hiperemia local, seguida de fibrose. As indicações permanecem as mesmas, como foram esquematisadas por Scott-Stevenson (98) e Wilson (12).
A diatermo-coagulação tem sido tentada como substituto da galvano-caustia. Já temos empregado em várias ocasiões, verificando sua inferioridade em relação à galvano-caustia, pois sua ação é mais limitada que a desta última e não provoca a desejada reação circundante e consequente fibrose.
Quanto à curetagem e às escarificações, já se achavam abandonadas mesmo antes do advento das drogas novas, por isso que podem provocar extensão das lesões pulmonares, devido ao sangue que emana do laringe, apesar dos artifícios da posição deitada e do toque da ferida operatória pelos cáusticos químicos hemostasiantes.
A traqueotomia se praticará nos casos, atualmente raros, de ameaça de asfixia produzida pela estenose cicatricial, ou por lesões proliferantes capazes de obstruirem o canal laringêo.
A alcoolisação do laringêo superior encontra, ainda, plena aplicação, pois apesar dos novos agentes terapêuticos, não é raro depararmos com pacientes já nas últimas fases da doença, padecendo de intensa odinofagia, que impede a alimentação. A simples anestesia é de efeito tão fugaz que preferimos, sistemáticamente, a alcoolisação seguindo a técnica clássica.
De passagem, convêm assinalar que a prioridade do emprêgo dessa técnica tem sido atribuída, por todos os autores que conhecemos, a Rodolfo Hoffrrran. Schugt e Collet citam-lhe o trabalho publicado no Münch. Med. Wochen, LV, 739, (Abr. 7) 1098. No entanto, nos Annales des maladles de l'oreille, XXXVII, 45, 1911, Garel (80) menciona uma declaração de Alfred Lewy, de Chicago (Laryngoscope, Jan., 1911), na qual êste último autor afirma ter empregado anteriormente, na clínica de Sturmann, em Berlin, as injeções do laringêo superior, usando seja o álcool puro, seja uma mistura de álcool e cocaína. Portanto, a prioridade parece pertencer a Lewy.
Sequelas - Podemos falar na "cura" da laringite tuberculosa quando não há mais sinais de inflamação, tendo as lesões regredido sem deixar deficiências funcionais. Observa-se, frequentemente, em tais casos, um espessamento cicatricial residual que se localisa mais habitualmente na região das aritenoides, provavelmente por ser uma das regiões mais atingidas pela tuberculose e traumatisadas pela tosse.
É comum a rouquidão mais ou menos acentuada, como reliquat da tuberculose do laringe, e determinada por esses espessamentos cicatriciais. Mas também a encontramos por motivo da imobilisação permanente de uma corda, após um processo de artrite crivo-aritenoide; por efeito de um enfraquecimento da musculatura, consequente à própria laringite; como resultado de paralisias do recurrente, produzidas por lesões extra-laringéas, tuberculosas ou não, etc. Ao percorrermos as causas mais comuns das disfonias, já tivemos ocasião de mencionar quasi todas essas possibilidades. Insistamos aqui, sôbre a variedade das causas de uma rouquidão em paciente "curado" de sua tuberculose laringéa, por isso que não é raro que o tisiólogo extranhe o fato do laringologista declarar curado, um paciente ainda rouco. Repitamos: O paciente pode se achar curado de suas lesões inflamatórias laringéas, apresentando rouquidão como sequela do processo local ou de outros processos à distância (mediastinites, apicites, estenose mitral, etc.). E êste um ponto sôbre o qual os autores pouco se detem ou o fazem de maneira muito vaga (43).
O problema das doenças associadas - Convêm ter sempre em mente que um portador de lesões pulmonares tuberculosas, e com sintomatologia laringéa, pode ter algo no laringe que não seja tuberculose. Mas também pode ter lesões tuberculosas associadas a outras. Em um serviço bem organisado, a R. W. é praticada sistematicamente ao lado da hemossedimemação. A associação local com a leishmaniose não é rara e o seu tratamento pode ser feito simultâneamente com o da tuberculose (Tivemos ocasião de observar vários casos de leishrnanióticos, com lesões tuberculosas do laringe e sem localisação leishmaniótica laringéa, nos quais o eparseno, a fuadina ou o glucantime puderam ser empregados sem interferência no tratamento das lesões tuberculosas do laringe).
Os autores clássicos admitiam a frequência da associação tuberculose-câncer laringêo. Por nossa parte, em mais de 1000 pacientes examinados, tivemos ocasião de observar cerca de meia dúzia. Friedberger e Wallner (81), em 200 casos de laringite tuberculosa, nunca verificaram a coexistência de câncer e consideram essa associação local uma curiosidade médica. Esses autores detêm-se nas relações entre as duas entidades mórbidas sob o triplo aspecto de sua coexistência no mesmo paciente, da possibilidade da tuberculose laringêa desempenhar o papel de precursora do câncer, e do diagnóstico diferencial entre as duas entidades. Apesar da boa documentação e dos argumentos aduzidos, quer nos parecer que exageram as semelhanças entre os dois quadros laringoscópicos.
Naturalmente a biópsia viria resolver o diagnóstico, porém devemos opor certa reserva a esse recurso, pois já tem sido assinalados casos de extensão das lesões tuberculosas pulmonares, após o ato, extensão certamente determinada pelo derrame sanguíneo consequente. Embora, pessoalmente, não tenhamos observado essas extensões post-biópsia, consideramos que a objeção deve ser tida em conta.
No que respeita à coexistência de lesões de lues e tuberculose no laringe, também não encontramos a frequência consignada pelos autores antigos. Não podemos atribuir essa discordância ao fato de estar a incidência da lues em franco declínio no nosso meio, pois observamos muitos casos de pacientes tuberculosos, portadores de lues comprovada, com lesões de laringite tuberculosa, e sem lesões laringéas atribuíveis à sífilis.
A solução dos problemas de diagnóstico diferencial entre a laringite tuberculosa e as laringites específicas outras é, atualmente, facilitada pelos novos medicamentos bacteriostáticos. Com efeito, a estreptomicina, em muitos casos, facilita o diagnóstico diferencial, uma vez que as lesões tuberculosas respondem, quasi sempre, ao tratamento, de tal maneira que, se em um laringe tuberculoso, persistem lesões floridas, mesmo após um tratamento bem conduzido pela estrepto, devemos pensar em outra doença associada.
Apesar de tudo o que ficou dito acima, a verdade é que um laringologista experimentado, orientado pelos exames prévios pulmonares e laboratoriais de rotina e auxiliado, eventualmente, pela biópsia, não, encontrará grandes dificuldades em estabelecer diagnóstico exato.
(1) - Trabalho laureado com o premio "Ivan de Souza Lopes", de 1954, concedido pelo Centro de Estudos dos Médicos da Divisão de Tuberculose do Estado de S. Paulo.
(2) Oto-rino-laringologista do Instituto de Pesquisas Clemente Ferreira. - S. Paulo, Brasil.