INTRODUÇÃOOtite externa maligna ou necrotizante (OEM) é infecção agressiva do canal auditivo externo, potencialmente letal, que pode evoluir com osteíte da base do crânio14. Foi primeiramente descrita por Meltzer e Keleman, em 1959, e nomeada por Chandler, em 1968².
O agente etiolõgico da enfermidade é o Pseudomonas aeruginosa'4'o Há ainda descrição de Staphylococcus epiderinidescomo agente causador da OEM2.
Os fatores predisponentes estão relacionados com a idade, sendo que no idoso o diabetes é um fator importante; e nos pacientes pediátricos a OEM tem como fatores predisponentes: anemia, más condições gerais, doença crônica e imunossupressão, sem maiores relações com o diabetes". A lavagem de ouvido com água pode ser um fator predisponente, principalmente em idosos e diabéticos`, e ainda alguns medicamentos usados no tratamento da AIDS, como a claritromicina e sulfametoxazol-trimetropin, com atividade não pseudomonal, podendo serem selecionadas outras espécies de Pseudomonas que levam à essa infecção invasiva".
Acredita-se que a patogênese esteja relacionada a microangiopatia, levando à má perfusão e isquemia tecidual. Ocorre, também, imunodeficiência pela diminuição da função fagocitária dos poliformonucleares"'.
O quadro clínico da OEM caracteriza-se, principalmente, por otalgia lancinante, pulsátil, fronto-têmporo-parietal e noturna, associada à otorréia purulenta e fétida, podendo evoluir para paralisia facial periférica3.
A OEM pode ser classificada em OEM central, pré-OEM e OEM limitada, usando-se como recurso diagnóstico tecnécio 99. A OEM central apresenta um tecnécio 99 positivo, com evidência de disseminação central da doença para a ATM, base de crânio, espaço parafaríngeo, fossa intra-temporal e paralisia de pares cranianos. Aqueles com tecnécio 99 negativo são classificados como pré-OEM. Já a OEM limitada tem o tecnécio 99 limitado ao osso temporal'.
Na criança, a OEM cursa com necrose da membrana timpânica (55,5%) e paralisia facial (53%), enquanto que no adulto esta necrose não é observada e a paralisia facial, quando presente (34%), é sinal de mau prognóstico. A recorrência é comum no adulto e rara na criança. Uma outra diferença é que no adulto a doença tem mortalidade alta, enquanto que na criança é totalmente curável'.
O diagnóstico baseia-se na anamnese e exame físico, sendo realizados os seguintes exames: cultura de secreção com antibiograma, biópsia, tomografia computadorizada e cintilografia com tecnécio 99 metaestável (Tc 99 m) e gálio 67 (Ga 67). O tecnécio 99 é útil para o diagnóstico da osteíte, enquanto que o gálio 67 é um bom indicador da resposta terapêutica'3. Alguns casos apresentados como OEM e cultura com Pseudomonas aeruginosa podem ser devidos a não somente infecção, mas a alterações neoplásicas, principalmente nos pacientes que não respondem ao tratamento, vindos a falecer. Deve se realizar biópsia nos casos com evolução desfavorável, para não se deixar de fazer um diagnóstico de neoplasia em um suposto caso de OEM¹. Deve ser lembrada, também, a radionécrose como diagnóstico diferencial15.
Quanto ao tratamento clinico, este é feito com o uso de agentes antiinfecciosos e controle dos níveis glicêmicos. Um dos primeiros agentes antiinfecciosos usados foi a carbenicilina, em 15 a 30 gramas, três vezes ao dia, associada a um aminoglicosídeo, por um período longo de 4 a 8 semanas e com o auxílio de oxigenoterapia hiperbãrica, para melhorar as defesas locais. O tratamento cirúrgico, com excisão dos tecidos necrosados e infectados, é uma conduta adotada até os dias de hoje. A cirurgia radical estava indicada em caso de exacerbação dos sintomas loco-regionais3.
Atualmente, têm-se duas melhores opções para o tratamento. A primeira seria o uso de ciprofloxacina na dosagem de 1,5 gramas ao dia, por um período médio de 10 semanas. Nos casos de OEM central, faz-se a internação, associando-se uma penicilina semi-sintética por 10 a 14 dias, promovendo assim uma atividade sinérgica5. A segunda consiste no uso de cefalosporina anti-pseudomonas (cefoperazona e ceftazidima), por via endovenosa, e ciprofloxacina, por via oral". Há ainda autores que citam o uso de ofloxacin por via oral, com obtenção de bons resultados6.
APRESENTAÇÃO DE CASO CLINICOM.H.S, com 36 anos de idade, do sexo feminino, casada, residente em São Vicente /SP, deu entrada no ambulatório com quadro de dor intensa orelha direita e drenagem de secreção purulenta em região de tragus (possível abscesso de tragus). A paciente negava outras doenças sistêmicas, especificamente diabetes. Foram introduzidos antibiótico oral (cefixima) e corticõide intramuscular.
Após três dias, foi internada com piora do quadro: aumento de dor e edema, necrose de pavilhão auricular e de áreas adjacentes. Os exames laboratoriais apresentavam uma glicemia de jejum de 488 mg% (normal: 70 a 110 mg%); hemograma com leucocitose de 39.700/ mm3 (normal: 4.500 a 11.000/ mm3); hematócrito de 39 ml/ dl (normal: 37 a 47 ml/ dl), hemoglobina de 13 mg/dl (normal: 12 a 16 g/ dl). Realizouse cultura de secreção da orelha com antibiograma, sendo isolado Pseudomona ssp.
Evoluiu, no terceiro dia de internação, com aumento da área necrótica, secreção purulenta e paralisia facial periférica (Fotos 1, 2 e 3). Iniciou-se oxigenoterapia hiperbãrica como coadjuvante. Nesta ocasião diagnosticou-se OEM.
Optou-se pelo uso de ceftriaxona, oxacilina e ciproflo xacina durante 25, 16 e 68 dias, respectivamente.
Foto 1. Lesão necrótica em conduto auditivo externo, pavilhão auricular e áreas adjacentes à direita.
Foto 2. Lesão necrótica em pavilhão auricular e áreas adjacentes à direita.
Foto 3. Otite externa maligna acompanhada de paralisia facial à direita.
Foto 4. Debridamento cirúrgico das áreas necróticas e formação de tecido de granulação.
A paciente foi, então, submetida a debridamento cirúrgico das áreas necróticas, com ressecção de mais de dois terços do pavilhão auricular (Foto 4). Foram realizados curativos no local.
Após melhora do quadro de secreção e controle de níveis glicêmicos, recebeu alta hospitalar para acompanhamento ambulatorial.
COMENTÁRIOS FINAISNeste caso, nossa primeira impressão diagnostica foi de um abscesso de tragus, sendo o tratamento inicial dificultado pelo desconhecimento, por parte da paciente, quanto ao diabetes.
Com a evolução dramática do quadro: aparecimento de necrose do tecido, paralisia facial e a cultura positiva para Pseudomonas, fizemos o diagnóstico de OEM baseados, também, na literatura.
A otite externa maligna no adulto é caracterizada por tecido de granulação no conduto auditivo externo, que evolui para paralisia de pares cranianos devido à ostefte de base do crânio. Na criança, a OEM tem uma evolução igual à do caso relatado, com aparecimento de extensas áreas de necrose.
O caso é clinicamente interessante por tratar-se de uma OEM em adulto, comevolução observada, usualmente, no paciente pediátrico.
O tratamento medicamentoso proposto foi o uso de antibióticos, como a quinolona (ciprofloxacina), com boa atividade anti-pseudomonal, além da cobertura com oxacilina, devido à grande área infectada. Em geral, os casos de otite externa aguda evoluem bem, sendo tratados ambulatorialmente. No caso de OEM, porém, as seqüelas são, geralmente, lesões gravíssimas.
A gravidade do caso deve ser esclarecida aos familiares, por tratar-se de uma doença que pode ter uma evolução desfavorável, levando ao óbito.
Neste caso, apesar da eficácia do tratamento com cura clínica, a paciente permaneceu com seqüela.
Entendemos que o tratamento atual da OEM evoluiu, diminuindo a taxa de mortalidade; porém, novos medicamentos devem ser pesquisados, na tentativa de evitar lesões mutilantes como no caso exposto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. AL-SHIHABI, B. A. - Carcinoma of temporal bone presenting as malignant otitis externa. The journal of Laryngology and Otology 106- 908 - 910, 1992.
2. BARROW, H. N. 8r LEVENSON, M. J. - Necrotizing 'malignant' external otitis causedbyStaphylococcusepidermidis. Arch Otolaryngol Head Neck Surg 118..94 - 96,1992.
3. ENNOURI, A. et al. - Les otites externes malignes du diabetique. (Malignant external otitis in diabetic patients). Revue de Laryngologie110 (1): 9 -12, 1989.
4. LAMAS G. et al. - Lésions pétreuses graves dues au Pseudomonasaeruginosa. Ann Oto-Laryng. (Paris) 107(05): 341 - 343, 1990.
5. LEVENSON, M. J. et al.- Ciprofloxacin: drug of choice in the treatment of malignant external otitis. Laryngoscope 101: 821 -824, 1991.
6. LEVY, R. et al. - Oral ofloxacin as treatment of malignant extemal otitis: A study of 17 cases. Laryngoscope 100: 548- 551, 1990. 7. MELLO, L. R. P. et al: - Otite externa necrotizante em paciente pediátrico imunodeficiente por desnutrição. Revista Brasileira de ORL 63 (5): 500 - 504, 1997.
8. NIR, D.et al. - Clinical records malignant external otitis in an infant. The journal of Laryngology and Otology 104: 488 - 490, 1990.
9. RUBIN, J. et al. - Malignant external otitis in children. The Journal of Pediatrics 113 (6): 965 - 969, 1988.
10. RUBIN, J. et al. - Efficacy of oral ciprofloxacin plus rifampin for treatment of malignant external otitis. Arch. Otolaryngol. Head Neck Surg., 115: 1063 - 1069, 1989.
11. SHUPAK, A.et al. - Hyperbaric oxygenation for necrotizing (malignant) otitis externa. Arch Otolaryngol Head Neck Surg 115: 1470 - 1475, 1989.
12. STRAUSS, M. - Current therapy of malignant external otitis. Arch Otolaryngol Head Neck. Surg., 102 (02).174 -176, 1990.
13. WEBER, P. C. et al. - Evaluation of temporal and facial osteomyelitis by simultaneousin - WBC/Tc 99m -MDD bone spects cintigraphy and computed tomography scan. Otolaryngology- Head and Neck Surgery- 113(1): 36-41, 1995.
14. WEINROTH, S.E. et al. - Malignant otitis externa in AIDS patients: Case report and review of the literature. ENTJournal: 772 - 778, 1994.
15. WORMALD, P. J. - Surgical management of benign necrotizing otitis externa. The journal ofLaryngology and Otology. 108.101-105, 1994
*Chefe do Serviço de ORL da Santa Casa de Misericórdia de Santos (SCMS). Mestre em ORL pelo HC do FMRP, da USP.
**Médica Assistente do Serviço de ORL da SCMS.
***Médica Estagiária do Serviço de ORL da SCMS.
Endereço para correspondência: Julio Rodrigues - Rua Carvalho de Mendonça, 366 - 11070-101 Santos /SP - Telefone: (013) 235-3082 - Fax : (013) 232-2528. Artigo recebido em 22 de agosto de 1998. Artigo aceito em 6 de abril de 1999.