ISSN 1806-9312  
Segunda, 29 de Abril de 2024
Listagem dos arquivos selecionados para impressão:
Imprimir:
1490 - Vol. 65 / Edição 3 / Período: Maio - Junho de 1999
Seção: Relato de Casos Páginas: 228 a 235
Complicação Cervical Hemorrágica da Terapêutica Anticoagulante.
Autor(es):
Pedro Alberto Escada*.

Palavras-chave: hemorragia, hematoma, anticoagulantes, obstrução respiratória, faringe, laringe, pescoço

Keywords: hemorrhage, hematoma, anticoagulants, airway obstruction, pharynx, larynx, neck

Resumo: Após a apresentação de um caso clínico de uma doente submetida a anticoagulação oral crônica por doença valvular aórtica, que sofreu uma hemorragia estendendo-se por vários planos superficiais e profundos do pescoço, é feita uma revisão da literatura médica sobre a matéria, completa mas resumida. As complicações hemorrágicas da anticoagulação são raras nesta área. Ao contrário do que acontece nas outras localizações, a gravidade potencial desta situação não resulta da perda da volemia, mas sim da compressão da via aérea superior, com risco de asfixia. O quadro clínico inicial pode dirigir a suspeita para uma situação inflamatória, atrasando o diagnóstico. É es- - sencial a suspeita clínica baseada na história de anticoagulação com propósitos terapêuticos associada ao prolongamento dos parâmetros laboratoriais de controle da anticoagulação para além dos valores terapêuticos. O tratamento dirige-se à manutenção ou obtenção de uma via aérea adequada e a reversão da anticoagulação. A drenagem pode ser prejudicial.

Abstract: We describe here a case of cervical haemorrhage caused by the administration of warfarin. Bleeding complications from oral anticoagulants are frequent, but haemorrhage into the cervical region or upper airway is a distinctly uncommon ocurrence. The risk of upper airway obstruction, more than the risk of hypovolemia, is the most important feature of this condition. The patients should be admitted to the hospital for close observation and prompt reversal of anticoagulant, because the clinical picture may become dramatic and life-threatening, requiring a tracheostomy or na intubation. We review the literature and present management and treatment principles for this group of patients.

INTRODUÇÃO

As complicações hemorrágicas são de longe as complicações mais importantes e freqüentes dos anticoagulantes orais8. Em vários estudos com um número elevado de doentes, foram sempre documentadas taxas elevadas de complicação hemorrágica, mas nessas séries nunca foram registadas complicações hemorrágicas na área otorrinolaringolõgica, em particular na região cervical. Estas últimas foram sempre descritas na literatura médica como casos isolados e raros, pelo que nos pareceu pertinente sistematizar alguns dos aspectos particulares a esta situação, partindo da descrição de um caso clínico e dos dados disponíveis na literatura.



Figura 1. Sufusão hemorrágica submucosa nas paredes laterais da orofaringe, loja amigdaliana e palato mole adjacente, mais perceptível do lado esquerdo.



Figura 2. Hemorragia submucosa difusa de toda a hipofaringe e laringe, mais acentuada nos seios piriformes e bandas ventriculares.



APRESENTAÇÃO DE CASO CLÍNICO

Uma doente com 70 anos de idade, de raça caucasiana, submetida a tratamento de anticoagulação oral de longa duração, com controle freqüente dos parâmetros laboratoriais correspondentes, recorreu ao serviço de urgência de otorrinolaringologia por odinofagia, dor e tumefação cervicais.

Dos antecedentes, destacava-se a existência de doença valvular aórtica, com um intemamento anterior por tromboembolismo pulmonar e insuficiência cardíaca congestiva, descompensada na seqüência de taquifibrilação auricular. Estava medicada, à data das queixas otorrinolaringológicas, e desde há vários meses, com varfarina sódica na dose de 3,75 mg por dia, e ainda com furoseinida (40 mg/dia), amiodarona (200 mg/dia) e fosinopril (10 mg/dia). Negava a administração recente de outros fármacos, febre ou outra sintomatologia sistêmica, disfagia, disfonia ou outros sintomas de infecção respiratória superior ou inferior. A doente referia odinofagia e dor na região submandibular esquerda, de intensidade crescente, com três dias de evolução. O exame objetivo evidenciou doente com bom estado geral e apirética. Apresentava uma tumefação da região submandibular esquerda, sem sinais inflamatórios. No restante exame, observou-se trismo ligeiro é uma sufusão hemorrágica (equimose) no palato mole e na parede lateral da orofaringe, mais marcada do lado esquerdo (Figura 1). A observação médica, geral e cardiológica, confirmou a doença valvular aórtica, com predomínio de estenose, sem insuficiência cardíaca mas com fibrilação auricular. O estudo analítico demonstrou hemoglobina, hematócrito e plaquetas normais, com leucocitose e neutrofilia discretas (respectivamente 11.800 e 75%). O TTP e o TP estavam prolongados, sendo respectivamente de 80,2 segundos (controle = 32,5) e de 102,5 segundos (controle =12,5). O International Normalízed Ratio (INR) era de 8,5. A glicêmia era normal, assim como o estudo laboratorial das funções hepática e renal. Foi colocada a hipótese de acidente de anticoagulação e de acordo com a opinião do cardiologista, foi interrompida a administração do anticoagulante oral. Devido ao fato do valor do INR exceder largamente os níveis de anticoagulação terapêutica e, também, porque as manifestações clínicas mostravam uma progressão crescente nos dias anteriores, decidiu-se internar a doente, para vigilância de eventual complicação hemorrágica da anticoagulação, em particular da via respiratória superior.

No dia seguinte, a doente desenvolveu disfagia ligeira e disfonia, moderada mas claramente perceptível, sem dispnéia e sem estridor. O exame evidenciou sufusão hemorrágica submucosa extensa de toda a hipofaringe e endolaringe, mais exuberante nos seios piriformes e bandas ventriculares e menos evidente nas cordas vocais (Figura 2). Apesar de não se ter registado um agravamento da dor, nem um aumento do volume da tumefação cervical, assistiu-se igualmente ao aparecimento de extensa sufusão hemorrágica subcutânea na região cervical anterior, estendendo-se desde a região submandibular até à região estérnal, poupando as pregas cutâneas maiores (Figura 3). A radiografia das partes moles do pescoço, em perfil, não evidenciou alterações significativas, em particular no espaço retrofaríngeo. O exame ecográfico da região cervical documentou a presença de sangue no tecido celular subcutâneo da região cervical, sem contudo detectar um hematoma coletado (Figura 4). Nos dias seguintes, houve uma estabilização e posteriormente uma melhoria da sintomatologia e a resolução gradual das sufusões equimóticas subcutâneas e submucosas. Paralelamente, em termos analíticos, assistiu-se também a uma evolução favorável nos parâmetros hematológicos, sendo os TTP, TP e o INR, respectivamente de 63,5 segundos, 60 segundos e 4,7, ao quarto dia de internamento. Ao décimo dia de internamento os mesmos parâmetros atingiram valores normais de 33,3 segundos, 14,9 segundos e 1,16, respectivamente. A doente teve alta após resolução completa das manifestações hemorrágicas e normalização dos valores laboratoriais. Após a alta foi reintroduzida a anticoagulação oral em doses inferiores, sob estreita monitorização clínica e laboratorial, não se tendo registrado mais acidentes de anticoagulação.



Figura 3. Tumefação da região submandibular esquerda, associada a equimose subcutânea da região cervical anterior.



Figura 4. Ecografia da região cervical demonstrando aumento da espessura e diminuição da ecogenicidade do tecido celular subcutâneo da região submandibular esquerda, sem achados sugestivos da presença de hematoma coletado na região.


QUADRO 1 - Indicações para anticoagulação oral.
Profilaxia da tromose venosa
Tratamento da trombose venosa
Tratamento da embolia pulmonar
Prevenção da embolia sistêmica
Prótese valvular cardíaca de tecido orgânico
Enfarte agudo do miocárdio
Doença cardíaca valvular
Fibrilação auricular
Prótese valvular cardíaca mecânica


QUADRO 2 - Gravidade das complicações hemorrágicas da anticoaglação oral.



COMENTÁRIOS FINAIS

Antícoagulantes orais.

Os anticoagulantes orais foram desenvolvidos no fim da década de 30 e a sua utilização no homem foi descrita inicialmente em 1941, tendo sido desde então utilizados para a redução do risco de complicações trombóticas ou embólicas associadas a várias doenças ou condições (Quadro 1)5. São fármacos que interferem com a função da vitamina K, determinando uma diminuição dos níveis dos fatores da coagulação dependentes desta vitamina (protrombina e fatores VII, IX e X) e, conseqüentemente, inibem a via intrínseca da coagulação. Adicionalmente, afetam também a via extrínseca, ao inibir as proteínas reguladoras: proteína C e proteína S5. A sua utilização clínica é dificultada por um índice terapêutico muito reduzido, pois muitos fatores podem afetar a resposta ao fármaco, tais como alterações na sua absorção, distribuição e eliminação, fatores genéticos, idade, deficiência ou excesso de vitamina K, alterações dos níveis dos fatores da coagulação dependentes da vitamina K e interacções medicamentosas.

Embora a hemorragia represente o efeito secundário mais importante da terapêutica anticoagulante, não pode ser considerada isoladamente do benefício potencial da sua utilização - a redução do tromboembolismo8. Daí que, apesar das complicações hemorrágicas serem muito freqüentes, a utilização e as indicações terapêuticas destes fármacos não diminuiram, tendo-se antes assistido a uma tentativa de otimizar a dose eficaz e melhorar o controle terapêutico8,5. Para este último objetivo muito contribuiu a estandardização, em 1982, da fórmula utilizada para o registo do TP, em que a simples relação entre o TP observado e o TP de controle, que variava com o reagente utilizado para a sua determinação, foi substituída pelo International Normalized Ratio UNR), fórmula que entra em conta com a "potência" específica do reagente utilizado, permitindo a comparação entre medições realizadas em laboratórios e países diferentes, a universalização dos métodos de determinação e, conseqüentemente, a monitorização fiável da anticoagulação, de modo a que se possam obter valores comparáveis aos recomendados pelas organizações ínternacionais. Atualmente os valores terapêuticos recomendados para o INR são de 2,0 a 3,0 para a generalidade das indicações da anticoagulação e um pouco superiores, 2,5 a 3,5, para os doentes com próteses valvulares cardíacas mecânicas8.
Complicações hemorrágicas. definição e epidemiologia.

As complicações hemorrágicas da anticoagulação são consideradas significativas sempre que conduzam à necessidade de uma observação médica e eventual intervenção terapêutica. Pequenas epistaxes e equimoses não são consideradas complicações significativas. Alguns autores apresentaram classificações das complicações hemorrágicas da anticoagulação, de acordo também com a sua localização e gravidade potencial (Quadro 2)8,3. Por sua vez, as taxas de complicações hemorrágicas dos anticoagulantes orais são importantes, dependendo da intensidade da anticoagulação (INR), da utilização concomitante de fármacos que interferem com a hemostase: aspirina e antiagregantes plaquetários, e das características particulares dos doentes, entre outros fatores8. Na medida em que este tipo de terapêutica é geralmente prolongado, o parâmetro mais importante na avaliação da taxa de complicações é a percentagem de complicações por ano de tratamento, que se situa nos 9,6% para as complicações minor, 3% para as complicações major e 0,6% para as complicações fatais nos doentes a fazerem tratamento de longa duração com varfarina6. As percentagens mencionadas representam um número muito elevado de complicações porque o universo representado por todos os doentes que fazem anticoagulação oral de longa duração é muito grande. Por comparação, as complicações hemorrágicas na área otorrinolaringológica (excluindo-se a epistaxe) são extremamente raras, pois não são mencionadas nas grandes séries e apenas estão descritos 29 casos na literatura médica, quase todos relatados como casos isolados e raros (Quadro 3).

Localização e história natural das complicações hemorrágicas cervicaís.

Nos 30 casos descritos que incluem o nosso, as localizações mais freqüentes foram o espaço submucoso e/ou os compartimentos profundos vizinhos da oro, hipofaringe e laringe, seguidos do espaço retrofaríngeo (Quadro 3). A maior parte dos casos foi descrita no sentido de chamar a atenção para a história natural destas complicações, que é no sentido da evolução possível para um quadro de obstrução aguda da via respiratória superior, podendo implicar, em alguns, casos a criação de uma via aérea artificial.


QUADR0 3 - Casos publicados de complicação hemorrágica da anticoagulação na região cervical e respectiva localização.

* Esta referencia diz respeito ao caso descrito neste trabalho.



Indicações para anticoagulação e níveis de anticoagulação.

Nos casos clínicos descritos na literatura as indicações para a anticoagulação oral foram as clássicas, já mencionadas anteriormente, destacando-se ainda um doente com anticoagulação oral associada à policitemia vera e outro comanticoagulação oral associada à artrite reumatóide. Em quase todos os doentes da revisão efetuada, os valores laboratoriais relativos à anticoagulação excediam os valores terapêuticos recomendados. É de sublinhar o fato de que nas grandes séries respeitantes às complicações hemorrágicas da anticoagulação oral as complicações major ocorrem quase exclusivamente em doentes com anticoagulação excessiva, ao contrário das complicações minor, que ocorrem quase exclusivamente em doentes com anticoagulação nos níveis terapêuticos recomendados,' O que é mais um fator, juntamente com o risco de obstrução da via respiratória alta, que nos deve fazer considerar as complicações hemorrágicas na região cervical como complícações major da anticoagulação oral.

Etíopatogenía: fatores precípitantes. Físiopatologia.
Um aspecto importante na patogenia da hemorragia parece relacionar-se com o papel favorecedor de fatores precipitantes locais, tais como episódios de tosse violenta, esternutos, ou infecção, que agiriam através do aumento da pressão venosa local, ou da vasodilatação associada à infecção. A fisiopatologia da evolução da hemorragia e dos sintomas tem a ver com a disposição dos planos fasciais na região cervical, que delimitam compartimentos que comunicam entre si e que podem sofrer expansão volumétrica. Estas particularidades anatômicas da região permitem o desenvolvimento de lesões ocupando espaço, como um hematoma, que podem comprometer, por compressão, as vias aérea e digestiva superiores. Uma vez iniciada, a hemorragia pode circunscrever-se à área anatõmica correspondente ou evoluir para uma ou várias áreas vizinhas. Pode também apenas ser uma hemorragia intersticial, mais ou menos extensa, mas, como no nosso caso, sem grande sintomatologia obstrutiva, ou então evoluir para a constituição de um hematoma capaz de obstruir as vias aérea e digestiva e levar ao aparecimento de asfixia grave. Ao contrário das outras localizações, a gravidade potencial das complicações hemorrágicas cervicais da anticoagulação decorrem da possível asfixia por compressão da via aérea superior e não da redução da volemia.

Quadro clíníco.
Em quase todos os doentes o sintoma inicial foi a dor, de localização variável com a localização da hemorragia, geralmente faríngea ou cervical. A dor é descrita como uma dor de início agudo, que pode aumentar ou, pelo contrário, diminuir de intensidade nos dias seguintes. A dor, que na região cervical é mais freqüentemente um sintoma de inflamação, é neste caso devida à dissecção dos tecidos intersticiais submucosos ou profundos da região cervical, pelo sangue extravasado, e qualquer quadro doloroso de instalação aguda na região cervical, num doente a fazer anticoagulação, deve levantar a suspeita duma possível complicação hemorrágica nesta região. Por vezes, o quadro pode ser incorretamente diagnosticado como uma infecção local. As outras manifestações clínicas possíveis são a tumefacção cervical, as equimoses submucosas ou subcutâneas, o trismus, a disfonia, e manifestações obstrutivas como a disfagia, a sialorréia, a dispnéia, o estridor e a asfixia (Quadro 4). A tumefação cervical associada à hemorragia ou ao hematoma pode ser dolorosa e, tal como a dor espontânea ou o trismus, conduzir a um diagnóstico incorreto de inflamação. Um outro sinal muito importante, porque esclarece a natureza do processo mórbido, é o aparecimento de equimoses submucosas ou subcutâneas nas áreas afetadas, mas as equimoses podem não ser evidentes quando a hemorragia ocorre em regiões mais profundas, como a região submaxilar ou o espaço parafaríngeo, e por outro lado pode ocorrer um intervalo longo, que pode chegar a vários dias, entre o aparecimento das primeiras manifestações clínicas e o aparecimento da equimose. A dispnéia pode agravar com o decúbito, em particular nos hematomas da região sublingual e submaxilar. Em suma, no quadro clínico inicial o sintoma mais constante é a dor, e a evolução dos outros sintomas decorre geralmente nos dias seguintes, mas é importante ter sempre presente o fato de que mesmo em doentes que parecem estáveis inicialmente, pode ocorrer um agravamento súbito do seu estado e a evolução para uma obstrução completa da via aérea.


QUADR04 - Manifestações clínicas das complicações hemorrágicas da anticoagulação na região cervical



Díagnóstico.
O diagnóstico baseia-se no aparecimento de um quadro doloroso e/ou obstrutivo cervical num doente a fazer anticoagulação oral. Em todos os doentes em terapêutica de anticoagulação crônica com sintomas agudos na região cervical devem ser de imediato avaliados os parâmetros hematológicos e em particular o INR, pois as complicações hemorrágicas nesta área associam-se quase invariavelmente a uma anticoagulação excessiva, como se constatou da revisão dos casos publicados e já se mencionou anteriormente. A elevação do INR para além dos valores terapêuticos permite a consideração, com um grau elevado de certeza, que se trata de um acidente de anticoagulação e deve levar ao desencadeamento imediato das medidas terapêuticas adequadas, ainda antes do aparecimento de sinais mais óbvios de hemorragia, como a equimose, ou de manifestações de maior gravidade, como a obstrução respiratória e a asfixia.

O exame otorrinolaringológico cuidadoso e completo é essencial, no sentido de evidenciar sinais de hemorragia e expansão dos compartimentos anatômicos cervicais. A laringoscopia indireta é útil para confirmar a obstrução e a hemorragia submucosa, sobretudo às custas das estruturas supraglõticas, nos casos de hematomas da faringe e laringe. Nos hematomas retrofaríngeos o exame clínico evidencia um abaulamento com caracerísticas equimóticas da parede posterior da faringe; num dos casos descritos, o abaulamento da parede posterior da faringe não apresentava inicialmente características equimóticas e foi interpretado, incorretamente, como um abscesso retrofaríngeo. Os hematomas das regiões sublingual e submaxilar evoluem no interior dessas regiões levando ao aparecimento do chamado fenômeno de pseudo-Ludwig,' situação na qual a obstrução respiratória decorre, tal como na angina de Ludwig, da compressão posterior da língua em direcção à parede posterior da faringe. O aspecto equimõtico do pavimento da boca é um sinal importante para o diagnóstico da natureza hemorrágica da situação, podendo ser observado nos casos de hematoma sublingual mas não habitualmente nos hematomas da região submaxilar. A impossibilidade de se observar o istmo das fauces, no pseudo-Ludwig, foi referida como sinal de alarme perigoso, fazendo prever a asfixia aguda eminente.

A radiografia simples das partes moles cervicais, em perfil, é muito útil, sobretudo por demonstrar inequivocamente, nos hematomas retrofaríngeos, um aumento das dimensões das partes moles retrofaríngeas para além das descritas como normais, que são de 1 mm a 7 mm para um nível correspondente ao da segunda vértebra cervícal e de 9 mm a 22 mm para um nível correspondente ao da sétima vértebra cervical." No único caso descrito de hematoma subglõtico, a radiografia pósteroanterior do tórax foi útil ao demonstrar o estreitamento característico, em "campanário", típico dos vários processos associados a obstrução nesta localização. A tomografia computorizada é particularmente útil para evidenciar hematomas localizados em áreas anatômicas mais profundas, como a região submaxilar e o espaço parafaríngeo. A utilização da ecografia não foi mencionada nos casos publicados, mas no nosso caso foi útil para excluir a presença de um hematoma, demonstrando apenas a presença de uma simples hemorragia subcutânea intersticial, na região submandibular.

Tratamento.
O aspecto mais importante a considerar com implicações no tratamento é a história natural desta situação, que é no sentido da evolução para a obstrução respiratória alta e para um possível quadro de asfixia mais ou menos súbita. Todos os doentes devem ser imediatamente admitidos em internamento hospitalar e, em todos os casos onde hajam sinais de obstrução respiratória o internamento deve ser feito numa unidade onde haja disponibilidade, em termos materiais e médicos, para uma reanimação e realização de via aérea artificial imediatas, sendo, conseqüentemente, o local adequado para o internamento nestas circunstâncias uma unidade de cuidados intensivos.

Um aspecto particular a esta situação e que a distingue das outras situações de obstrução respiratória alta é o enorme risco de se agravar a obstrução respiratória ou de provocar uma hemorragia ïncontroIável, caso se tente uma entubação endotraqueal ou uma traqueotomia sem antes se ter revertido a anticoagulação. A reversão da anticoagulação deve, conseqüentemente, preceder qualquer outro aspecto do tratamento,' uma vez assegurada a manutenção do doente num local onde os procedimentos de ressuscitação possam ser realizados de emergência. Uma exceção a esta regra será o caso de um doente que entre em asfixia súbita ou parada cãrdio-respiratória ainda antes de ter iniciado a reversão da anticoagulação. Neste última situação a atitude correta é a obtenção imediata de uma via aérea artificial por cricotirotomia, pois trata-se de um procedimento menos hemorrágico que a traqueotomia. Por outro lado, a entubação endotraqueal deve ser evitada como primeira escolha, mesmo em situações de emergência, pois o risco de provocarhemorragia no lúmen, dificultando ou mesmo impedindo a concretização do procedimento, ou de rotura do hematoma induzida pela tentativa de entubação, em particular nos hematomas retrofaríngeos, é muito elevado.4 Dos casos publicados, mais de metade necessitaram da criação de uma via aérea artificial e a mais freqüentemente realizada foi a traqueotomia (Figura 5).



Figura 5. Gráfico representando o tipo de intervenção realizado para assegurar uma via aérea nos 30 casos descritos na literatura médica.



A reversão da anticoagulação tem por objetivos parar a hemorragia, interrompendo a evolução no sentido da obstrução respiratória e restaurar a hemostase normal, caso seja necessária a realização de um procedimento invasivo para obtenção de uma via aérea artificial ou para a drenagem do hematoma. As opções terapêuticas são várias: a primeira é a simples interrupção do tratamento anticoagulante, a segunda é a administração de vitamina K e a terceira é a substituição dos fatores da coagulação dependentes da vitamina K que pode ser conseguida através da transfusão de plasma fresco congelado ou de um concentrado rico nesses fatores que é o concentrado de complexo protrombínico.9 O aspecto mais importante na escolha das várias opções terapêuticas é a rapidez com que é necessária que se obtenha a reversão completa da anticoagulação. A primeira opção só irá conseguir algum resultado e alguma modificação no INR a partir do segundo ou terceiro dia, uma vez que a semi-vida plasmática da varfarina é de 36 a 42 horas e só depois deste tempo se iniciará o processo de síntese efetiva dos fatores de coagulação. A rapidez da reversão da anticoagulação após a administração subcutânea de vitamina K depende da dose, variando desde as 24 até às 6 horas. A administração de plasma fresco congelado ou de concentrado de complexo protrombínico restaura a hemostase de imediato.9 Apesar de alguns autores otorrinolaringologistas proporem os critérios para a escolha da opção ou opções terapêuticas no que diz respeito à reversão da anticoagulação, a nossa opinião é a de que a condução desse processo deve ser realizada por um médico internista ou de outra especialidade médica familiarizada com o tratamento de anticoagulação e das suas complicações, pois é uma situação que implica a consideração de outros fatores além' da hemorragia cervical, tais como a magnitude do aumento do INR, as características particulares do doente e o risco da suspensão prolongada da anticoagulação que tinha propósitos terapêuticos. Contudo, o otorrinolaringologista tem obrigatoriamente um papel determinante na opção terapêutica, uma vez que é ele que tem de avaliar se a hemorragia é pouco importante ou significativa, se o risco de obstrução respiratória é elevado e eminente, e informar caso planeje realizar uma traqueotomia dentro de algumas horas ou se é obrigado a realizar uma traqueotomia o mais brevemente possível. Há, contudo, autores que, considerando a forte possibilidade de obstrução respiratória, mesmo nos casos de apresentação aparentemente mais benigna, defendem a reversão imediata e completa da anticoagulação em todos os casos, logo que o diagnóstico é realizado, pela administração de plasma fresco congelado ou de concentrado de complexo protrombínico. 10

Uma vez resolvidos os dois problemas mais importantes desta situação - o assegurar de uma via aérea, natural ou artificial, e a interrupção da hemorragia através da reversão da anticoagulação -, há que se ponderar a drenagem do hematoma. De uma forma geral, a drenagem é citada como tendo indicação nos hematomas de grandes dimensões e nos que não se resolvem espontaneamente.2 Há que se considerar, contudo, dois aspectos que dizem respeito a esta decisão: primeiro, a constatação de que muitos hematomas da região cervical diminuem e se resolvem sem drenagem, num período de duas a três semanas;2 o outro aspecto é o fato de que os hematomas que ocorrem por perturbações da hemostase correspondem predominantemente a uma extravasão intersticial de sangue, mais ou menos massiva, habitualmente sem coágulo ou colecção hemática individualizada, sendo que a tentativa de drenagem nestas circunstâncias é prejudicial, pois não evacua o sangue extravasado e pode resultar no agravamento da hemorragia. 4 Poder-se-á mesmo afirmar-se que a história natural da hemorragia nas partes moles é a resolução, e a reforçar essa presunção estará o fato de a drenagem só ter sido realizada em 2 dos 30 casos até agora publicados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. BOSTER, S. R.; BERGIN, J. J. - Upper airway obstruction complicating warfarin therapy- with a note on reversal of warfarin toxicity. Ann. Emerg. Med., 12: 711-715,
2. DANIELLO, N. J.; GOLDSTEIN, S. 1. - Retropharyngeal hematoma secondary to minor blunt head and neck trauma. EATJ, 73: , 1994.
3. FORFAR, J. C. - A 7-year analysis of haemorrhage in patients on long-term anticoagulant treatment. Br. IleartJ, 42:128-132, 1979.
4. GOODER, P.; HENRY, R. - Impending asphyxia induced by anticoagulant therapy. J. Laryngol. Otol., 94: 347-352, 1980.
5. HIRSHJ; DALEN,J. E.; DEYKIN, D.; POLLER, L.; BUSSEY, H. - Oral anticoagulants. Mechanism of action, clinicai effectiveness and optimal therapeutic range. Chest, 108 (suppl): 231-246, 1995.
6. LANDEFELD, C. S.; BEYTH, R. J. - Anticoagulant-related bleeding: clinicai epidemiology, prediction, and prevention. Am. J. Med., 95: 315-328, 1993.
7. LEPORE, M. L. - Upper airway obstruction induced by warfarin sodium. Arch. Otolaryngol., 102: 503-506, 1976.
8. LEVINE, M. N.; RASKOB, G.; LANDEFELD, S.; HIRSH, J. - Hemorrhagic complications of anticoagulant treatment. Chest, 108 (suppl): 276-290, 1995.
9. LITIN, S. C.; GASTINEAU, D. A. - Current concepts in anticoagulant therapy. Mayo Clín. Proc., 70: 266-272, 1995.
10. ROSENBAUM, L.; THURNIAN, P.; KRANTZ, S. B. - Upper airway obstruction as a complication of oral anticoagulant therapy. Report of three cases. Arch. Inte110rn Med., 139: 1151-1153, 1979.
11. WHOLEY, M. H.; BRU'XX'ER, A.J.; BAKER, H.L. - The lateral roengtgeonogram of the neck. Radiology, 71: 350-356, 1958.




*Assistente Hospitalar de Otorrinolaringologia do Hospital de Egas Moniz, Lisboa.
Departamento de Otorrinolaringologia - Hospital de Egas Moniz, Lisboa, Portugal. - Diretor: Professor Dr. José Madeira da Silva.

Endereço para correspondência: Dr. Pedro Alberto Escada - Serviço de Otorrinolaringologia - Hospital de Egas Moniz - Rua da Junqueira, 126 - 1300 Lisboa, Portugal.
Telefone: (Departamento ORL): 351-1-3650392 ou 351-1-3642797 - Fax: (Hospital de Egas Moniz): 351-1-3642797 - Email: (residência): np46ab®mail.telepac.pt Artigo recebido em 18 de setembro de 1998. Artigo aceito em 5 de abril de 1999.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


Imprimir:
Todos os direitos reservados 1933 / 2024 © Revista Brasileira de Otorrinolaringologia