ISSN 1806-9312  
Sábado, 23 de Novembro de 2024
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1449 - Vol. 15 / Edição 5 / Período: Setembro - Dezembro de 1947
Seção: Trabalhos Originais Páginas: 187 a 200
PRECONCEITOS MÉDICOS E LEIGOS RELATIVOS ÀS AMIGDALAS E SUA EXPLICAÇÃO (*) - parte 1
Autor(es):
Dr. PAULO MANGABEIRA-ALBERNAZ

As amígdalas têm sido, de tempos imemoriais, eterna fonte de controvérsia. As funções mais extravagantes tem-lhes sido atribuídas. Daí a origem de uma série de preconceitos que, parecendo absurdos, possuem, em verdade, às vezes, legítimo substrato científico. É, entretanto, necessário, vê-los com isenção de ânimo, procurar-lhes explicar as causas, e - o que é mais importante - precisar-lhes a significação, não deturpando, por vezes intencionalmente, por vezes por ignorância, seu verdadeiro alcance.

Neste estudo, terei em mira criticar os preconceitos mais comuns, aqueles que ouvimos frequentemente referidos, quer por leigos quer por médicos. Não poderei me referir a todos, não só para não alongar em demasia o trabalho, como porque, certos deles, são em verdade irrisórios, indignos de merecer referência em estudos médicos. Quando muito, poderiam ser aproveitados em divagações folclóricas.

Primeiro - Extrair as amígdalas é operação inútil, pois elas tornam a crescer.

A operação das amígdalas evita, com toda certeza, o re-aparecimento de tecido linfático nas fóssulas? Podemos responder redondamente: não!

Diante, todavia, de um caso em que se verifica o retorno do tecido após a operação, convém não esquecer que duas são as hipóteses a ser admitidas: 1.ª) a operação foi tècnicamente defeituosa, isto é, incompleta; 2.ª) a operação foi perfeita, mas houve realmente reprodução de tecido.

Se a primeira hipótese não merecia cientificamente, entrar em discussão, não posso deixar de declarar que talvez seja ela a mais frequente em nosso meio, e, sem discussão possível, a principal responsável pela suposição, vigente entre os leigos, de que as amígdalas reproduzem-se após extirpadas. Duas são as causas dêsse fato: uma, a preferência, entre nós pelo método dito mecânico ou de Sluder; outra, o uso da anestesia geral dita à la reine. Por perito que seja o operador, não pode êle evitar às vêzes, deixar um fragmento de amígdala, mòrmente em crianças, aderente à fóssula ou aos pilares. É o que tenho visto acontecer com toda sorte de especialistas, eu inclusive. Entretanto, êsse fato não implica em deixar de reconhecer grande diferença entre um pequeno fragmento deixado na cavidade amigdalina, e certas operações feitas sem a menor técnica, em que fica, ora todo o polo superior, ora todo o inferior, tudo isso cercado de cicatrizes irregulares, que bem denotam a imperícia do cirurgião. Quando se usa o processo de Sluder, é comum o polo superior esquerdo ficar inteirinho em seu nicho. É que nos operadores bisonhos a mão esquerda não pode realizar o mesmo que faz a direita.

Cabe aqui acentuar a minha velha crítica ao processo de Sluder. Método preciso na criança, não compreendo seu uso no adulto. É, neste caso, anti-científico. Se nos lembrarmos de que o recesso palatino existe em 80% dos casos, o seio de Tortual em 10%, e o confluente superior em 10%, chegamos à conclusão de como são raros, no adulto, os casos em que o processo de Sluder realiza de fato a amigdalectomia total.

Poderia concluir que não passa de êrro de interpretação a idéia de que a amígdala operada reproduz-se. De fato, o que se toma como reprodução, nada mais é do que aquilo que não foi extraído. E é por isso que a sintomatologia apresentada pelo paciente, antes da operação, continua a existir, depois dela.

Há, porém, tecido que foi deixado por inadvertência e tecido que se reproduziu, o que é muito diferente. Enquanto aquele pode ser observado nos dias subsequentes à intervenção, êste só aparecerá meses depois.

Por que razão se reproduz o tecido na fóssula? Primeiro, porque as amígdalas não constituem todo o aparelho linfático da garganta. Como sabemos, há, nesta, um verdadeiro sistema conhecido pelo nome de anel de Waldeyer. Feita a ablação das amígdalas pelo processo mais radical, que é a dissecção ou método anatômico, restam folículos linfáticos esparsos pelas paredes laterais e posterior da faringe, pelo espaço existente entre a amígdala palatina e a lingual de cada lado, e, ainda, os conglomerados que constituem as amígdalas linguais. Estudos de Leshin e Pearlman provam que tais folículos são ainda encontrados naqueles prolongamentos da cápsula amigdalina que são as dobras amigdalinas ou plicae: 1) a superior que fecha a ogiva formada pelo encontro dos pilares anterior e posterior, chamada plica supra-tonsillaris ou semilunaris; 2) a ântero-inferior, dita plica triàngularis; e 3) a póstero-inferior, retrotonsillaris. Estas dobras são formadas, em regra, por quatro camadas: a mucosa faríngica, a fascia fibrosa, nova lâmina desta fascía fibrosa e, por fim, a mucosa do fóssula. Verificaram os autores citados, em indivíduos de 3 a 14 anos, a existência, na terceira lâmina das dobras, de quantidade variável de tecido linfóide, por vêzes com formação críptica superficial, em 49% dos casos.

Se temos tanto tecido linfático nas vizinhanças da amígdala e sobretudo nas dobras que lhe prolongam a cápsula, é lógico que pode haver, em determinados casos, proliferação dos folículos linfáticos, e chegar esta a tal desenvolvimento que venha simular verdadeira reprodução do órgão extirpado.

Não devemos olvidar que, não raro, após a extirpação das amígdalas, pode aparecer hipertrofia do resto do anel de Waldeyer, mòrmente dos chamados cordões laterais da faringe e das amígdalas linguais. Esta hipertrofia, a que Lillie dá o nome de faringite granulosa compensadora, foi atribuída por Herbert Tilley a uma necessidade premente que sente o organismo de tecido linfático: "Temos sido consultados muitas vezes por jovens adultos cujas amígdalas haviam sido extirpadas quando crianças. Que achamos às vezes? Uma zona de mucosa hipertrófica um tanto edemaciada, que corresponde ao que se chama "falsos pilares posteriores", ou largas áreas de granulações faríngicas na parede posterior. Podemos mesmo ficar bastante surpresos por descobrir, no local de nossa operação suposta completa, massa relativamente considerável de tecido linfóide, localizada na parte inferior do recesso amigdalino. Que significa tal fato? A meu ver, isto prova que a natureza exige a presença de tecido linfático nas regiões estômato - e rino-faríngicas. Se êle foi extirpado por completo na infância, pode ser reposto posteriormente no lugar, no ponto em que se fizér necessário". Seria tal observação uma prova, a que em geral se dá pouca atenção, do papel fisiológico importantíssimo que cabe a este tecido, diz Tilley. Veremos adiante que esta hipótese é simplista em demasia para ser admitida.

Do que não resta dúvida é de que o tecido linfóide da faringe pode sofrer proliferação após a amigdalectomia total mais perfeita do ponto de vista técnico, não raro ocupando parte da própria fóssula amigdalina. A freqüência com que tal fato é observado varia muito.

Campbell estudou 621 operados e viu que em 77,3% deles observavam-se restos de amígdalas na garganta. Num grupo que foi estudado com maior carinho, e que dizia respeito a estudantes, em 153 havia 54,9% com restos de amígdalas. Dividiu-os, porém, em. dois grupos: um de operados por especialistas, e outro de operados por médicos gerais, pediatras, etc. Em 103 operados por especialistas, encontrou fragmentos de amígdalas em 74,7%, e 25% de fóssula vazias. De 44 operados por médicos gerais em 79,5% havia restos de tecido amigdalino; em 20,5% estavam as fóssulas vazias.

Epstein, que estudou igualmente o assunto em 336 pacientes, observou, em 62,2% dos casos, a existência de fragmentos de amígdala, concluindo que tal fato é mais freqüente em crianças operadas antes dos 4 anos, e menos observado quando a operação é feita acima dos 10 anos. Voltaremos a tratar desta questão da influência da idade, em outro ponto deste estudo.

O trabalho crítico mais moderno e mais completo referente ao problema é, porém, o de Lüscher, de Basiléia. Seu material compreende 639 operados, que procuraram o autor entre 1931 e 1942, dos quais 224 foram re-examinados um ano após a intervenção. Foram propositadamente excluídos os operados pelo método de Sluder, e os que sofreram a intervenção antes de 1925. Dos casos estudados - 224 como dissemos - achou Lüscher as fóssulas completamente vazias em 120, fragmentos de tecido dentro das fóssulas em 104. Destes, havia ligação com a amígdala língua, em 40; folículos na parte central, em 20; na região do polo superior, em 6; agregados de folículos com caseum, em 15; sem indicação local, em 23.

Resulta de suas observações que, em 63% dos casos, as fóssulas apresentavam-se totalmente livres de tecido linfático, e em 37% verificou-se neo-formação de tecido adenóide.

Estudos semelhantes fez Rüedi em crianças operadas pelo processo de Sluder. Em 123 observações, achou pequenos restos de amígdalas em 46 (37%). Não está, porém, explicito no texto, se se tratava de restos deixados por ocasião do ato cirúrgico, ou se de tecido reproduzido.

Outra hipótese que deve ser .levada em consideração é a da retração cicatricial. Nas partes laterais da base da língua, logo para dentro do polo inferior da amígdala, encontram-se pequenos grupos, ilhotas de tecido adenóide, externamente aos grandes agregados que constituem as amígdalas linguais. No ato operatório, se o pilar anterior foi descolado até sua inserção lingual, acontece muitas vezes que, ao dar-se a cicatrização, uma destas ilhotas adenóides linguais é atraída para fora pelo processo cicatricial, dando idéia, ao examinador pouco experiente ou pouco cuidadoso, de tratar-se de remanescente do polo inferior da amígdala palatina.

Não se trata, neste caso, de proliferação de tecido da própria fóssula, mas de tecido vizinho, deslocado pelo repuxamento resultante da cicatrização.

Parece, assim, não ser em verdade simples preconceito afirmar-se que não adianta operar as amígdalas, uma vez que elas podem reaparecer nas próprias fóssulas. É preciso, porém, ponderar que, em primeiro lugar, as fóssulas permanecem vazias em 63% dos casos, o que significaria, na pior das hipóteses, ficar ó insucesso restringido tão sòmente aos 37% restantes.

Mas, destes 37%, ainda cabe apurar 1.°) se o tecido reincidçnte oferece patològicamente a mesma importância que o primitivo; 2.°) se a reincidência significa, realmente, inutilidade, inoportunidade ou mesmo nocividade da operação.

Todos nós, especialistas, temos observado os três fatos em conexão com a amigdalectomia: 1) existência de fragmento deixado inadvertidamente; 2) reprodução do tecido; 3) ilhota lingual repuxada do polo inferior da amígdala. O primeiro traz, muitas vezes, sérias conseqüências, e está fora de discussão que a operação incompleta, com permanência de fragmentos em meio da cicatriz e, portanto com restos de criptas obliteradas, é muito mais prejudicial, do que a amígdala patológica inteira. Rhoads e Dick provaram que os fragmentos de amígdalas deixados nas operações incompletas contém, por grama, maior número de germes, que o órgão total extirpado no ato da operação.

O mesmo, porém, não se pode dizer, nem do tecido que torna a proliferar, nem do que vem, repuxado pelo processo cicatricial, ocupar o lugar da amígdala. O que prolifera de novo não é histológicamente igual a amígdala extirpada, e, como toda razão assevera. Wood, sua presença possui pouca significação no que concerne à infecção focal. É um tecido linfático, não há dúvida, mas dotado de poucas criptas, e estas, que nem sempre existem, são sempre muito superficiais. A verdade é que, nesses casos, se há recidiva do tecido, não se dá o mesmo com a sintomatologia.

Quanto às ilhas linfóides, também não representam, do ponto de vista patológico, o papel da amígdala.

De onde se conclui que, se a operação de extirpação das amígdalas não põe o indivíduo a salvo de surgir tecido semelhante nas fóssulas, não deixa por isso de. trazer vantagens enormes do ponto de vista terapêutico. E como êste tecido que pode reaparecer na região amigdalina é de estrutura linfática, mas não pertence em rigor ao órgão cuja exérese foi feita, vemos que é simples preconceito dizer que a amígdala operada torna a crescer. A explicação de tal hipótese reside mais na operação mal feita, do que na reprodução do tecido.

E por que razão vem o tecido a proliferar de-novo? Segundo Tilley, porque o organismo tem necessidade absoluta de sua existência naquele ponto. Ora, nos pacientes em que - e foram poucos - tive ensejo de deparar verdadeira nova amígdala no local de que havia eu, anos antes, enucleado a primeira, pude verificar, pelo hemograma, alterações muito significativas do sangue, caracterizadas principalmente por elevada linfocitemia. A verdade é que esta renovação do tecido que se observa, como vimos, em pouco mais de 30% dos casos, e que não se manifesta em cêrca de 70%, nada mais é do que a expressão de um estado patológico do sistema linfático. Não raro observamos, em doentes com suas amígdalas, proliferação mais ou menos intensa dos folículos dos cordões laterais e da pare& posterior da faringe.

Nas crianças, a par desta linfopatia encontramos desvios alimentares importantes, além de insuficiências vitamínicas. Para Lillie, a terapêutica da "faringite granulosa compensadora" é o iodo e a dieta. Éle próprio chama a atenção para o regime alimentar usual, baseado no uso quase exclusivo de hidratos de carbono, com ausência propositada de carne e de gorduras de carne.

De tudo isso, tem que se chegar à conclusão de que a amígdala operada por dissecção, extraída com a cápsula, não torna a crescer. Mesmo que apareça de-novo tecido adenóide na fóssula, êste não faz parte da amígdala extirpada.

Segundo - Extrair as amígdalas facilita a invasão do organismo pela tuberculose.

Eis um parecer que ouço repetidas vezes na clínica, e que quase sempre é emitido disfarçada e jeitosamente sob a forma de pergunta. Quase sempre foi o médico de família que o inculcou na mente do leigo.

Parecerá, à primeira vista, que tal opinião é decorrente do papel de defesa em geral atribuído às amígdalas. Mas, nesse caso, por que motivo sua extirpação só predisporia à tuberculose? É que as razões são outras.

A primeira, e capital - por ser realmente a mais conhecida - já é antiga, e muitos que sustentam tal hipótese nem mesmo a conhecem. O fato passou de geração em geração, quase de oitiva.

Há cinquenta anos atrás - mais exatamente em 1894 e 1895 - dois dos maiores nomes da medicina universal, Lermoyez e Dieulafoy, chamavam a atenção para um tipo pouco conhecido de tuberculose. O primeira assinalava a tuberculose da amígdala faríngica, que surgia sem características muito definidas, e que não era possível, pelo exame direto simples, distinguir das vegetações adenóides comuns. O segundo descrevia a "tuberculose larvada das três amígdalas", de diagnóstico muito difícil, e que, igualmente só por meio da inspeção usual, não podia ser diferençada da hipertrofia vulgar daqueles órgãos. Tanto no primeiro caso, como no segundo, a operação não raro determinava o aparecimento de lesões tuberculosas, de tipo ulceroso, na região traumatizada, lesões que se estendiam rapidamente, e quase sempre determinavam a morte do doente.

Ora, o livro de Dieulafoy, Manuel de Pathologie Interne, obra admirável pela clareza, pela nitidez das descrições, pela orientação didática incomparável, que ainda hoje se lê com pro veito e deleite, era a bíblia dos médicos do mundo inteiro, tanto que dele saíram treze ou mais edições. Um dos capítulos desta obra notável era o trabalho apresentado a Academia de Medicina de Paris, referente à tuberculose larvada das tres amígdalas. Já dizia o grande mestre, em se referindo ao tratamento cirúrgico: "As opiniões estão muito divididas. Ainda que eu tenha por várias vezes observado a utilidade e mesmo a necessidade da intervenção,, é preciso agir com grande prudência e inspirar-se em cada caso particular".

Toda a geração, que se formou nas faculdades médicas brasileiras até 1910, teve como livro de cabeceira o tratado de Dieulafoy. Daí nasceu esta ligação entre a tuberculose e a extirpação das amígdalas, estendida por tradição a muitos médicos das gerações mais modernas.

A outra causa desta pressuposição de que a extirpação das amígdalas facilita a invasão do organismo pela tuberculose, reside no fato, aliás conhecido de número relativamente restrito de médicos, de que, por vezes, à operação de amígdalas segue-se uma tuberculização rápida e fatal do organismo. Precisamos., uma vez conhecidas as causas que explicam esse preconceito, estudar qual o seu fundamento, e o que há nelas de verídico.

Para tal fim, torna-se necessário considerar urna série de itens correlatos à, questão, e indispensáveis a seu esclarecimento.

A) As amígdalas, porta de entrada de tuberculose.

Desde as experiências de Chauveau, Orth, Baumgarten, Cadéac, é sabido que, alimentando-se animais de laboratório com produtos contaminados amplamente de material tuberculoso, aparecem lesões tuberculosas das amígdalas, e conseqüentemente, dos gânglios sub-mandibulares.

Wood repetiu estas experiências no porco e verificou que os gânglios eram atingidos pelo mal, nada, no entanto, de patológico tendo sido observado nas amígdalas. Dava-se o mesmo observado por Clamette Guérin e Grysez, em 1913, em experiências por instilação, no globo ocular do cobáio, quer de escarros bacilíferos, quer de uma gota de cultura virulenta: manifestava-se tuberculose a princípio gangliar, depois esplênica, sem lesão alguma ocular.

A prova mais completa que se possui a respeito da tuberculização digestiva é a tragédia de Lubeck. Duzentos lactentes receberam, em vez do bacilo biliado de Calmette e Guérin, germes francamente virulentos. Houve infecção em massa, seguida de morte. Predominaram as lesões da garganta e do intestino, mas em muitos casos, havia de ambas as regiões. Em 98%, as manifestações foram da região íleo-cecal, e se acompanharam de adenopatia mesentérica; em 78%, dos casos o cancro primário aparecerá nas amígdalas, e havia adenite satélite cervical.

Cabe referir ainda as experiências de Martuscelli e Bozzi. Estes autores tomaram de alguns cachorros, e extirparam, sob narcose, uma das amígdalas. Após a cicatrização da fóssula, fizeram embrocações com culturas virulentas de bacilo tuberculoso na região operada, e na amígdala conservada. Só no lado correspondente a esta, apareceu a adenite característica.

Não é, pois, discutível, em nossos dias, a penetração da tuberculose pelas amígdalas. As estatísticas mais modernas demonstram, no entretanto, que a via mais freqüente é a pulmonar (80% dos casos). Vêm, a seguir, a via digestiva, que se observa em 15%, e restam 5% para as demais vias.

O mecanismo da invasão dá-se, na opinião de Calmette, do seguinte modo: os bacilos provenientes do exterior são englobados, no interior das criptas, pelos macrófagos, que representam papel ativo nas amígdalas, mas para os quais os bacilos se apresentam como hóspedes temíveis. Introduzidos os germes no órgão, manifesta-se o processo tuberculoso sob duas formas: a infecção bacilêmica ou linfática latente, e a reação local sub-aguda com formação de nódulos característicos no interior da amígdala, seguida de adenopatia.

Dêste primeiro item, se quizéssemos tirar conclusões apressadas, uma delas seria a de que, ao contrário de predispor o organismo à tuberculose, a extirpação das amígdalas dificultaria a penetração do mal. É o que se poderia inferir do trabalho experimental de Martuscelli e Bozzi. Veremos adiante, porém. que tal fato não corresponde à realidade.

B) A tuberculose primitiva das amígdalas - A tuberculose das amígdalas tanto pode ser primitiva como secundária, e é por vezes extremamente difícil chegar-se à certeza de que o processo tuberculoso pertence ao primeiro tipo. Podem, de-fato, apresentar-se, no organismo, lesões fimatosas, cuja existência não se consegue perceber, não passando o processo patológico da amígdala, com aspecto embora de primitivo, de na realidade secundário, aí chegado pela via hemática.

A confusão, que, por isso, tem sido feita entre os dois tipos de tuberculose da amígdala, é enorme. Daí as estatísticas da freqüência do processo oscilarem de 100% a 5%, e mesmo a menos de 1 %. Aliás, isto depende em parte da orientação dada, aos estudos. Dieulafoy, por exemplo, recebeu certo numero de amígdalas palatinas e faríngicas, extraídas pelas razões comuns. Delas retirou um fragmento bem central, e inoculou sob a pele do abdome de cobáia. A média de resultados positivos, isto é, de animais tuberculizados, foi de 12% para as palatinas, e de 20% para as faríngicas.

Outros autores tomaram por base o exame histo-patológico. Mullin, por exemplo, estudou as amígdalas de 400 operados, encontrando 17 casos de tuberculose secundária com associação pulmonar (4,25%) e 5 de tuberculose primitiva (1,25%). Em 3,6%, o processo era localizado nas amígdalas palatinas; em 1,8%, nas faríngicas.

Estudos mais rigorosos tomaram por base simultâneamente o exame histo-patológico e a inoculação em cobáia. Plum fez, assim, o estudo de 58 amígdalas, correspondentes a 31 casos de amigdalite crônica, em que ficou demonstrada a ausência de tuberculose nos gânglios cervicais: havia 3,5 % de amígdalas tuberculosas (6,5 % de pacientes com tuberculose da amígdala). Em 14 amígdalas faríngicas, todos os exames foram negativos. O autor verificou que os resultados positivos foram mais freqüentes com a inoculação na cobáia, do que com o exame histo-patológico.

Hubert, Arnould e Busser estudaram seus doentes fazendo os dois exames, e além disso a cuti-reação de Von Pirquet. Esta era levada a efeito, e 15 dias depois os pacientes operados. As experiências foram feitas em duzentas crianças de menos de 15 anos de idade. Foram examinadas 76 amígdalas (palatinas e faríngicas), 53 de crianças com cuti-reação negativa (17 palatinas e 36 faríngicas), e 23 com cuti-reação negativa (6 palatinas e 17 faríngicas). Inocularam os autores 51 cobáias: 37 com amígdalas palatinas (12) ou faríngicas (25), provenientes de pacientes com cuti-reação positiva; 14, como testemunhas, com amígdalas palatinas (3) ou faríngicas (11), provenientes de crianças com cuti-reação negativa. Quer pela prova da inoculação, quer pelo exame histo-patológico, não foi apurado um só caso de tuberculose das amígdalas.

Por fim, Mc Cready e Crowe, que estudaram 3.260 operados, nos quais havia adenites jugulares e da nuca, encontraram pelo exame histo-patológico, 138 casos de tuberculose, de que a forma pura da amígdala só foi verificada em 92 (2,8%) .

Vê-se, por aí, como varia a opinião dos autores quanto à tuberculose primitiva das amígdalas. Em verdade, com o rigor maior possível, quem pode asseverar que nesses casos de tuberculose primitiva das amígdalas, fossem todos realmente de tuberculose primitiva?

Acresce que para muitos, o que interessava, no caso, era mais a tuberculização das amígdalas e de seus gânglios satélites, do que a tuberculose primitiva é exclusiva da amígdala. Êste continua a ser um problema digno de estudo, pelo menos quanto à sua incidência. Por que, estudar por exame histopatológico e por inoculação um certo número de amígdalas extirpadas pelos motivos gerais pelos quais o fazemos, apenas demonstra a frequência da tuberculose primitiva das amígdalas, o que também não pode ser confundido com a amígdala como porta da entrada da tuberculose. O mal pode penetrar pela amígdala e localizar-se logo de início no gânglio satélite, ficando a amígdala indene.

C) A adenite cervical amigdalogênica - Outro problema difícil de solver é o das adenites cervicais agudas e crônical,, sobretudo dos gânglios, da cadeia jugular, em sua relação com as amígdalas, tanto as palatinas como a faríngica.

É de conhecimento vulgar que a faringe é uma das regiões do organismo mais ricas de tecido linfóide, e que as amígdalas palatinas e os pilares trazem a linfa diretamente aos gânglios sub-digástricos, em particular ao sub-digástrico principal.

Ora, para muitos autores o "único sinal importante e constante da tuberculose primitiva da amígdala é a adenopatia cervical, na mor parte dos casos unilateral, com todos os caracteres do gânglio tuberculoso".

Mas a verdade é que, em inúmeros casos de adenite jugular, com ou sem peri-adenites, a tuberculose não se acha em causa. De outras vezes, a adenite é tuberculosa, mas a amígdala não toma parte no processo. Recordo-me de três irmãs, de 12 a 15 anos, que apresentaram simultâneamente adenite sub-mandibular com peri-adenite, de marcha crônica. O linfograma demonstrou bacilos em duas delas. As três foram operadas e as amígdalas estudadas histològicamente. Em nenhum dos três casos havia lesões tuberculosas nas amígdalas.

Entretanto, Schlittler, em 20 anos de estudo, reuniu 98 casos de adenite cervical tuberculosa, em que esta era a única localização bacilar encontrada. O estudo histo-patológico das amígdalas demonstrou lesões específicas em 48 casos: 28 vezes numa só palatina; 7 em ambas; 7 na amígdala faríngica; 6 nas três amígdalas.

Plum, de seus observados, em 47 que apresentavam amigdalite crônica com adenite cervical (93 amígdalas), encontrou lesões tuberculosas, pelo exame histo-patológico, em dez (21,3%) e em 14 amígdalas palatinas (15%). Em 16 amígdalas faríngicas dêstes mesmos doentes, havia manifestações tuberculosas em 3 (18,8%).

Entretanto, a adenite cervical, quer da cadeia jugular, quer da sub-mandibular, nada mais é geralmente, do que a resultante de qualquer infecção aguda do aparelho respiratório superior (Kaiser). Sua relação com as amígdalas é, porém, preponderante. Hofer estudou dois grupos de crianças de dois hospitais, um de 147 casos corri hiperplasia das amígdalas, outro de 100 sem hiperplasia: havia adenites cervicais em 80,4% do primeiro grupo, para 33% do segundo. Fowler observou 1.200 crianças operadas. Durante o primeiro ano após a operação, só apareceram 5 casos de adenite cervical. Kaiser, em 847 crianças, nota que, cêrca de metade delas, operadas de amígdalas e adenóides após o primeiro ataque de adenite cervical, sofreram reincidências em 21%, dos casos. A outra metade, não operada, apresentou reincidências em 65% dos casos.

Êstes fatos devem ser evidenciados para pôr em realce o significado real da adenite de origem amigdalina e sua relação com a tuberculose da amígdala, sobretudo do tipo primitivo.

D) A amigdalectomia no tuberculoso - Inúmeros são os casos relatados na literatura especializada universal em que, pouco depois da amigdalectomia ou da adenoidectomia, explodiu um processo tuberculoso de forma septicêmica, seguido de morte. Daí a conclusão, que até o próprio Dieulafoy em parte subscreveu, de que a amigdalectomia, na tuberculose dita larvada, era de temer-se. Lermoyez alarmou igualmente os operadores de sua época. E Caboche, em 1921, dizia, perante o Congresso da Sociedade Francesa de Oto-rino-laringologia, que "a tuberculose miliar da faringe é a conseqüência lógica da amigdalectomia realizada em tuberculosos pulmonares".

Os casos relatados na literatura obedecem a dois tipos principais: 1) após a operação, surgem na faringe nos pilares, ou no cavum - de acôrdo com o local da intervenção - lesões tuberculosas ulcerosas, que se estendem ao aparelho linfático e depois aos pulmões; 2) em-seguida à intervenção, o paciente apresenta-se depauperado, e, dentro de prazo mais ou menos restrito, é atacado de processo granúlico ou meningítico. Se, no primeiro caso, o doente pode vir a restabelecer-se, no segundo, a morte é inevitável.

Há ainda uma terceira ocorrência a considerar, muito mais rara, porém, do que as outras: a da reativação de um foco pulmonar ou plêurico antigo, pràticamente curado, em seguida à intervenção e em conseqüência dela.

Da primeira hipótese, serve de exemplo o caso de Caboche: num doente de 17 anos apareceu, dois meses depois da adenoidectomia, um processo ulcersoo da parede posterior da faringe. Daí, invasão dos pulmões e da laringe.

É típica da segunda hipótese, a observação relatada por Cemach. Um menino de 10 anos, que estava com tosse havia quase, mês e meio, e cujos pulmões nada, apresentaram ao exame, foi operado de adenóides. Duas semanas depois, mostrase sub-febril e três semanas após vem a falecer de meningite tuberculosa. O exame histo-patológico da amígdala faríngica revelou a presença de lesões tuberculosas.

Para documentar o terceiro tipo, temos o caso de Wein. Refere-se a uma moça de 20 anos, que sofrera três meses antes de pleurisia. Como estivesse sub-febril, o clínico geral atribuiu a alteração térmica às amígdalas, uma vez que eram doentes, e a paciente dizia ser muito sujeita a anginas. Operada às 9 da manhã. As 6 da tarde, 40° 2; às 8, 40° 8. No dia imediato, bronquite difusa, com febre contínua (39º). No setimo dia, bacilos no escarro. Bronquiolite, caverna, e morte quatro semanas após a operação.

São êstes casos que dão motivo a certos médicos temerem a operação, de amígdalas, não só nos tuberculosos curados, como nos indivíduos débeis com tara bacilar, pois não há dúvida que, nestas observações narradas, a operação inegàvelmente contribuiu para o desenlace ou para a complicação.

Expostos, entretanto, os casos, vejamos que conclusões permitem eles sejam tiradas de seus gradas de seus ensinamentos.

Dizia Lermoyez, que três hipóteses podiam ser admitidas para explicar o seu terceiro caso: 1) tuberculose latente tornada ativa pelo trauma operatório; 2) infecção pelos instrumentos cirúrgicos; 3) adenóides com tubérculos em repouso, lançados na circulação pelo ato operatório, tal como se desenvolve a tuberculose em seguida à escarificação do lupus da face.

Cemach não pensa do mesmo modo. Acha que, em tais casos, há de-fato um processo de tuberculose latente, e que a operação rompe o equilíbrio imunitário. O organismo, desprotegido, é invadido então violentamente pelo processo infeccioso, nesses casos sempre de aspecto septicêmico: granulia ou meningite.

Não interessa, no entretanto, no caso, conhecer o mecanismo por que se processa a invasão. O que desejamos saber, é como evitar a complicação, e se ela aparece em tal incidência, que torne em verdade a amigdalectomia uma intervenção perigosa.

Em primeiro lugar, fique desde já patente, que o risco de fazer explodir, em casos de tuberculose assintomática, processos granúlicos ou meningíticos, não é devido à região em que se intervêm, e sim ao choque cirúrgico em si. Toda e qualquer intervenção cirúrgica, por simples que seja, levada a cabo em um tuberculoso aparentemente curado, ou em um indivíduo com lesões tuberculosas inaparentes ou latentes, pode determinar os mesmos fenômenos acima relatados. Sébileau, discutindo a comunicação de Bloch, acentuou êste aparecimento de acidentes tuberculosos de ordem geral, em seguida ao tratamento cirúrgico das tuberculoses locais. Declarou que, quando era interno de Verneuil, chamava êste a atenção para esta verdadeira "chicotada" dada pela intervenção cirúrgica na tuberculose, e apresentava aos alunos casos de granulia e meningite, consecutivos a pequenas operações, feitas em tuberculoses locais. Foi mesmo por esta razão, que, rompendo com a regra, vigente na época, de tratar os abcessos frios pela abertura seguida de raspagem, Verneuil criou o método das punções evacuadoraz, seguidas de injeções de éter iodoformado.

Uma vez conhecido êste fato, procuremos saber até que ponto é real êste perigo de operar tuberculosos, quer curados quer latentes.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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