Rio de Janeiro
Em 10-6-44, procurou o ambulatorio de O. R. L. no Hospital São Francisco de Assis, a doente O. Q. M., com 36 anos de idade, casada, parda, brasileira, domestica, natural do Estado do Espirito Santo, onde reside; vem a consulta, queixando-se de uma dor violenta e continua na hemiface direita, com propagação para o ouvido do mesmo lado. Tem dificuldade ao deglutir, pois frequentemente os alimentos refluem pelo nariz. Está rouca e move a cabeça com dificuldade, pois tambem sente muita dor no lado direito do pescoço. Sialoréa.
HISTORIA FAMILIAR: - Pae já falecido, de causa ignorada pela paciente, mãe viva e forte, dois irmãos que gosam saude.
HISTORIA PESSOAL: - Doenças peculiares a infancia (sarampo, coqueluche e catapora). Ha alguns anos teve impaludismo, dizendo-se curada. Tem quatro filhos nascidos a termo e fortes. Nega abortos.
HISTORIA DA DOENÇA ATUAL: - Informa que mais ou menos á seis mezes começou a sentir dores não muito intensas em toda a metade direita da cabeça, coincidindo com o aparecimento de uma tumoração na região lateral direita do pescoço. A conselho de um facultativo fez varias aplicações de infra-vermelho no local da tumoração, as dores entretanto aumentaram notando que o olho direito ficara torto (sic). Como as dores eram mais intensas ao nivel do ouvido direito, procurou um especialista, tendo se submetido a duas intervenções; uma por dentro e outra atraz da orelha (sic) . Trez dias apos a ultima intervenção, ficou rouca e apareceram as perturbações na deglutição; os alimentos, principalmente os liquidos, refluiam pelo nariz. Nessa ocasião notou tambem que sua lingua estava torta. Como as dores na hemiface aumentaram muito, propagando-se tambem até o pescoço e ombro do mesmo lado, resolveu vir ao Rio, quando procurou este ambulatorio.
Esta doente foi internada na 7.ª enfermaria do Hospital São Francisco de Assis, para que com vagar pudessemos examiná-la e apurar a causa dessas paralisias.
EXAME EXTERNO: - Facies atipico, denotando sofrimento, cabeça ligeiramente inclinada para o lado direito, pela tentativa de coloca-la verticalmente, a paciente reage acusando viva dor no pescoço L. D.. Os sulcos da face se apresentam normais, a doente enruga a testa igualmente dos dois lados, assovia e movimenta a boca para a direita e esquerda.
Notamos na parte superior da região externo-cleido-mastoidea, L. D., uma tumoração do tamanho de uma nóz, de consistencia lenhosa, não dolorosa é palpação, sendo recoberta por pele lisa e de coloração normal. Ao redor da tumoração ha diversos ganglios palpaveis. Do lado esquerdo, os ganglios sub-maxilares, retro-maxilares, cervicais e supra-claviculares, estão bem aumentados, sendo visiveis á simples inspecção.
No exame das espaduas, notamos que de braços estendidos lateralmente, o ombro do lado direito está em nivel inferior ao do esquerdo. Pela palpação, verifica-se que os feixes claviculares do trapezio e o externo-cleido-mastoídeo são dolorosos e se apresentam, em comparação com os do lado esquerdo, de consistencia diminuida.
Orofaringoscopia: - Dentes regularmente dispostos, sendo que os molares superiores do lado direito foram recentemente extraidos.
A lingua, no interior da boca apresenta pequeno desvio para a esquerda, quando protraida, mostra acentuado desvio da ponta para a direita. Ao toque com o estilete, hipoestesia na metade direita e pela palpação comparada das duas metades, notamos uma diminuição da consistencia na metade direita. Na pesquiza do sentido do gosto, o cloreto de sodio não é percebido na metade direita, nem na parte anterior nem na posterior, o mesmo acontecendo com o assucar. O brometo de quinina não é percebido na metade posterior, sendo entretanto no terço anterior da metade direita.
O véo do paladar apresenta-se com coloração normal, no repouso ha um ligeiro desvio do mesmo para a esquerda, que se acentua quando a paciente pronuncia as vogais, a, e e i. O reflexo está diminuido, porem presente. Ao toque com estilete, nota-se anestesia da metade direita do véo.
Observando-se a parede posterior da faringe, mantendo a lingua da paciente protraida e fazendo-a emitir a vogal i, notamo2 na parte superior um desvio da massa muscular para a esquerda. (Sinal da cortina de Vernet.)
Laringoscopia indireta: - Epiglote ligeiramente desviada para a esquerda. A corda vocal direita e aritenoide correspondente, achamse paralisadas na posição juxta-mediana.
Rinoscopia anterior e posterior: - Nada revelou de anormal.
Otoscopia: - O. E., nada de anormal. O. D. ao toque com estilete, do tragus e parede anterior do conduto, ligeira hipoestesia. Membrana do timpano retraida, mostrando placa calcarea no quadrante posterior.
Na região retro auricular do lado D., ao nivel do sulco, ha uma cicatriz linear com pequena fistula cutanea em sua extremidade inferior.
Pela acumetria, ficou revelada pequena surdez de transmissão no ouvido D.
Exame Oftalmologico; feito pelo Dr. Joaquim Vidal em 14-6-44:
O. D. Visão - 1, reflexos pupilares normais. Globo ocular em estrabismo convergente devido a paralisia do musculo reto externo (6.º par craniano, - Motor ocular externo). Diplopia.
Fundo do olho: nada de anormal, papila e vasos da retina normais.
O. E.. Visão normal, reflexos pupilares normais, fundo de olho nada de anormal.
Exame Neurologico, feito pelo Dr. A. Austregesilo Filho: pesquiza da sensibilidade da face. Lado E ., normal. Lado D., Anestesia tactil termica e dolorosa no teritorio dos ramos oftalmico e maxilar superior, hipoestesia no territorio do maxilar inferior. Ha uma ligeira atrofia no musculo masseter desse lado.
Não foram encontradas alterações para o lado da motilidade e sensibilidade dos membros.
O exame clinica dos aparelhos respiratorio e circulatorio, nada revelou de anormal, a não ser neste ultimo, uma taquiesfigmia (98 b.p.m.).
Pelos exames acima, ficou patente ser a paciente portadora de uma paralisia combinada do V, VI, IX, X, XI e XII pares cranianos do lado direito. Estas paralisias se caracterisando:
Do V par: - Raiz sensitiva: pela anestesia tactil, termica e dolorosa nos territorios do oftalmico e maxilar superior; hipoestesia no territorio do maxilar inferior. Raiz motora; ligeira atrofia de masseter.
Fig. 1
Do VI par: Pela paralisia do musculo reto externo do olho direito.
Do IX par: Pelas suas fibras sensoriais: perturbação do gosto no terço posterior da metade direita da lingua.
Do X par: Hipoestesia da metade direita do véo - sinal do tragos de Escat, acceleração do pulso.
Do XI par: - Pelo seu ramo externo paralisia dos musculos trapezio e esterno-cleido-mastoídeo. Pelo seu ramo interno - hemiplegia velo-palato-laringea direita.
Do XII par: - Hemiplegia lingual.
Inumeras foram as hipoteses feitas para explicar a origem dessas paralisias, e iniciamos então a realisação dos exames complementares. De inicio a paciente recusou a que fizessemos uma biopsia na tumoração do pescoço, imaginando que iriamos opera-la.
Fig. 2
A reação de Wassermann no sangue foi negativa. O exame do liquor cefalo-raquidiano, nada revelou de anormal, inclusive a reação de Wassermann que tambem foi negativa.
O hemograma de Schilling, a não ser uma pequena monocitose sem significação clinica com o caso, nada revelou.
A radiografia dos campos pulmonares e vasos da base tambem foi normal. As radiografias do cranio, em fronto-naso e de perfil, tambem nada revelaram. As radiografias comparadas das apofises mastoides (Schüller) e dos rochedos (Stenvers), normais. (Ver fig. 1, 2, 3, 4.)
No dia 1.° de julho, ao examinarmos a paciente, notamos que o olho direito estava imovel e havia ptose palpebral do mesmo lado.
Fig. 3
Fig. 4
Fig. 5
Fig. 6
Novamente foi a paciente á exame oftalmologico, que foi feito no dia 3, pelo Dr. J. Vidal:
O. D. Ptose palpebral superior. Globo imovel, pupila em midriase mediana e imovel (paralisia de todos os musculos intrinsecos e extrinsecos do olho). Cornea insensivel (acometimento do ramo oftalmico do V par). Fundo de olho; ligeira anemia na zona do feixe maculo palpebral.
O. E., normal.
No dia seguinte, nova surpresa, ao examinarmos a paciente, notamos que o facial do lado direito estava tomado. Desaparecimento do sulco naso geniano, impossibilidade de movimentar a boca para ambos os lados e não enruga a testa. Alem das paralisias acima citadas, já estavam comprometidos tambem os pares: III, IV e VII.
Nessa altura, conseguimos convence-la da necessidade da biopsia, que foi realisada no dia imediato. Era um tumor profundamente situado, abaixo do esternocleido, de aspecto vegetante, propagando-se para cima; nos pareceu que tomava todo o espaço retro-parotidiano. O resultado da biopsia, foi Carcinoma epidermoide.
Enquanto aguardavamos o resultado histo-patologico da biopsia, a paciente insistiú para que a deixassemos ir ver a familia, prometendo que voltaria dentro de uma semana.
Somente no dia 5 de agosto, volta novamente ao hospital, já não, enxergando do olho direito, chemose conjuntival, diversas ulceras de cornea, e pelo exame do fundo do olho: atrofia do nervo otico.
Nessa altura, queixava-se de não sentir o cheiro de nada, fizenaos a pesquiza do olfato com odores fortes, como amonea, alcool, eter e salicilato de metila, e eram percebidos com muita dificuldade e demora.
Feita novamente a acumetria; no lado D. observamos um consideravel abaixamento do limite superior.
A paciente permaneceu internada ainda por 15 dias, no fim dos quais a todo custo queria voltar para casa, demos alta, e não mais tivemos noticia.
É pois um caso típico de paralisia unilateral global dos nervos cranianos, chamada por muitos, Sindrome de Raymond Garcin, pois foi esse autor que a descreveu em detalhes numa excelente monografia publicada em 1927.
Na descrição de Garcin, essa sindrome é caracterisada clinicamente:
A) - Pelo acometimento global dos nervos cranianos de um só lado.
B) - Pela ausencia de estase papilar e outros sinais de hipertensão craniana.
C) - Pela ausencia de qualquer sinal, motor ou sensitivo, para o lado dos membros.
Caracterisada anatomicamente: - pelo desenvolvimento progressivo de neoplasias basilares, principalmente sarcomas, cujo diagnostico pode ser feito ainda em vida graças a radiografia. Raramente essa sindrome é devida a meningites cronicas da base, sendo que em sua presença Garcin quasi sempre diagnosticava Sarcoma da base do craneo.
Os tumores basilares origem dessa sindrome, podem ser divididos em dois grupos:
1.°) - As néoplasias extra-cranianas, porem de vizinhança, e com ulterior desenvolvimento intra-craniano. Nestas, Garcin coloca com uma porcentagem de quasi 100% as néoplasias de origem rino-faringea.
2.°) - As néoplasias basilares propriamente ditas, fazendo-se excepção dos tumores Hipofisarios, juxta-hipofisarios, tumores do angulo ponto-cerebelar e os chordomas. Os sarcomas basilares são colocados como responsaveis pelo aparecimento da sindrome paralitica unilateral global. Dá a esses tumores, como caracteristica quasi exclusiva, o fato de sua evolução ser progressiva e extritamente unilateral. Esse crescimento progressivo pode ser pela propagação do proprio tumor ou pela infiltração meníngea precoce.
No diagnostico diferencial dessa sindrome é necessario notar, que no inicio, pode ser confundida com algumas paralisias isoladas ou combinadas unilaterais dos nervos cranianos, sistematisados num determinado numero de sindromes bem individualisadas.
Na nossa paciente por exemplo, no inicio, o quadro era duma paralisia combinada dos quatro ultimos pares cranianos, somada á do V par.
Nestas sindromes a localisação topografica é importante, pois nos leva a buscar a causa num dos diversos acidentes osseos da base do craneo.
As paralisias multiplas ultrapassam os limites dessas diferentes sindromes parciais, sendo que estas, têm uma duração passageira na evolução do quadro completo.
Pelo fato dessa sindrome evoluir progressivamente, sem apresentar sintomas de hipertensão craniana e sem alteração da via sensitivo motora, as vezes pode tornar o diagnostico difícil com as meningites basilares, principalmente sifilítica, neste caso frequentemente os sintomas são bilaterais.
A radiografia no dizer de Garcin ajuda muito ao diagnostico, pois precocemente pode dar noticia do tumor basilar.
O nosso caso alem de apresentar as características clinicas gerais da sindrome, pois foi de evolução progressiva, extritamente unilateral e sem sinais de hipertensão craniana nem de perturbações outras motoras, apresenta tambem características particulares do ponto de vista anatomico, pois o tumor era um carcinoma epidermoide, de localisação atipica segundo a classificação de Garcin, extra-craniano (espaço retro-parotidiano), e nada havia no rino-faringe.
O fato de ser carcinoma epidermoide, tem tambem sua particularidade, pois estes tumores são raros em sua propagação intra-craniana e em realizarem a sindrome exclusivamente unilateral.
Acreditamos que no nosso caso, o ponto de partida foi mesmo o tumor do espaço retro parotidiano, pois as primeiras paralisias a aparecerem foram a dos quatro ultimos pares, podendo a lesão ter sido por compressão direta dos troncos nervosos dado o volume do tumor. O acometimento dos outros pares poderia ter sido, tanto por propagação direta do tumor atravez o buraco rasgado posterior, ou qualquer outra via de continuidade da base, ou ainda pelo aparecimento de uma metastase endocraneana.
Aqui caimos no dominio das hipoteses, pois não foi possivel seguir a doente até o desenlace e observarmos a autopsia. Lamentamos com isso o fato de estar nossa observação incompleta, porem aqui a trouxemos como uma pequena contribuição ao diagnostico dessa sindrome, por si bastante rara.