INTRODUÇÃOO diagnóstico das vestibulopatias na infância constitui um desafio ao médico especialista. Suas características, altamente diferenciadas da sintomatologia do adulto, facilmente levam a equívoco o profissional não alertado para esse aspecto. Em escolares, por exemplo, esses problemas podem gerar alterações de postura, equilíbrio e coordenação motora, sabidamente fundamentais na aquisição de aprendizados como a linguagem falada e escrita.
A prevalência dos sintomas vestibulares na infância tens sido até hoje subestimados, em decorrência da dificuldade diagnõsticaz. Cada vez mais, temos tido a oportunidade de diagnosticar problemas vestibulares em crianças que tinham até então sua sintomatologia atribuída a distúrbios neurológicos ou psicológicos. Pela subjetividade dos sintomas vestibulares e pela incapacidade das crianças em caracterizá-los, os dados sintomatológicos desta faixa etária são muitas vezes extrapolados daqueles encontrados em adultos.
Pela necessidade de melhor avaliação dos dados obtidos de crianças com vestibulopatia periférica, foi realizado o levantamento dos casos atendidos no HCFMUSP e em nossa clínica privada, no período de 1990 a 1997, visando enfocar a sintomatologia, antecedentes e diagnóstico eletronistagmográfico nestes casos.
CASUÍSTICA E MÉTODOForam avaliadas retrospectivamente 101 crianças com diagnóstico de vestibulopatia periférica atendidas no período de janeiro de 1990 a abril de 1994, sendo ó acompanhamento realizado até julho de 1997, no setor de Otoneurologia do Departamento de Otorrinolaringologia e Oftalmologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e em nossa clínica privada. As crianças foram encaminhadas de clínicas de neurologia pediátrica, pediatria clínica, assim como de outros colegas otorrinolaringologistas, para elucidação diagnóstica. Em geral, tais crianças apresentavam diagnóstico obscuro e seus sintomas não foram controlados pelo tratamento instituído na clínica de origem. Foram excluídos 10 pacientes, devido a dados incompletos durante o levantamento retrospectivo.
Foi realizada anamnese, junto aos acompanhantes dos pacientes, constando de vários itens otorrinolaringologicos gerais e otoneurolõgicos. A seguir, as crianças foram submetidas a exames eletronistagmográficos. A idade e a colaboração das crianças foram os fatores determinantes para definição daquelas que realizaram as provas calõricas e/ou prova rotatória pendular decrescente. Algumas crianças realizaram as duas provas em questão, sendo que, em outras, o diagnóstico foi eminentemente clínico.
RESULTADOSO grupo avaliado foi composto de 38 meninas (42%) e 53 meninos (58%) com idade variando entre 4 meses e 17 anos, conforme distribuição observada na Tabela 1. Os sintomas e sinais são listados na Tabela 2. Os antecedentes investigados no grupo estão dispostos na Tabela 3. Os resultados referentes ao diagnóstico eletronistagmográfico foram colocados na Tabela 4.
DISCUSSÃOA anamnese na criança com vestibulopatia periférica tem aspectos importantes e intrigantes, que muitas vezes são subestimados³. As dificuldades existem devido à própria idade do paciente, que não informa, ou o faz às custas de dados parciais e inconclusivos, sobre seus sintomas(4). A informação materna, assim, torna-se fundamental para uma boa história clínica que, segundo Blayney(5), é confiável e concordante para a elaboração desta história.
Não observamos predominância de sexo no total dos casos, nem mesmo se avaliados separadamente por faixa etária. Há, no entanto, uma freqüência maior na faixa etária que compreende dos 7 aos 11 anos, em relação às demais, provavelmente porque os sintomas vestibulares são mais facilmente descritos pelas crianças e as alterações do equilíbrio associadas aos brinquedos são melhor observadas. A escassez de adolescentes pode ser explicada pelo fato ele estes procurarem colegas clínicos e não otorrinolaringologistas.
A cefaléia foi o sintoma mais encontrado. Nosso percentual encontra-se um pouco acima daqueles encontrados na literatura(1,4). A associação do quadro vestibular cota a enxaqueca na infância pode ser responsável pelos índices encontrados neste trabalho. Em nossa casuística, a cefaléia foi sempre um sintoma bem investigado entre estas crianças, porque na infância a enxaqueca pode ser causa comum de vertigem(4).
Em nosso estudo, o segundo sintoma mais comum foi a tontura em cerca de 84,4% dos pacientes. Este dado é compatível com aqueles encontrados em literatura, confirmando tal sintoma como um dos mais prevalentes em crianças portadoras de vestibulopatia periférica'. No entanto, Campos(6) identificou altas taxas de alterações vestibulares em crianças "cheiradoras de cola", que não apresentavam queixa de tontura; e, portanto, a ausência deste sintoma não exclui a possibilidade da vestibulopatia. A vertigem é um sintoma incomum na infância(4,7,8); portanto, este sintoma foi considerado como tontura.
Alterações de comportamento, problemas escolares, déficit de desenvolvimento da linguagem e ela motricidade são comumente relatados pelos pais e professores. Aliados às alterações do equilíbrio, correspondem ao grupo das principais queixas que levam à procura de consultórios médicos. Apesar da multicausalidade destes sintomas, eles não podem ser subestimados e são de extrema importância no diagnóstico e acompanhamento clínico das crianças(6).
Sintomas como distúrbios do sono e fobias devem ser sempre investigados. Choros noturnos seta etiologia determinada, associados ou não ao medo de escuro, costumam estar presentes, principalmente em crianças maiores com quadros vestibulares periféricos, e podem passar despercebidos.
Em nossa casuística, as alterações do equilíbrio, bem como as quedas, ocorrem em quase 44'% das crianças avaliadas. É interessante notar que na pratica clínica este fator é importante e muitas vezes o -motivo que leva as mães a procurar o pediatra ou o neurologista. A causa vestibular nem sempre é lembrada, corno já foi relatado em publicações anteriores(1,3,7,9).
Sintomas como convulsão, síncopes (perda ou alteração da consciência) e início gradual e progressivo da vertigem devem nos direcionar à pesquisa de urna causa central para a vestibulopatia; porém, tais sintomas também podem ser encontrados em patologias periféricas.
TABELA 1 - Distribuição das 91 crianças em relação ao sexo e à idade.
TABELA 2 - Sintomas e sinais mais comuns.
* Nº = Número de crianças avaliadas para este sintoma e sinal
TABELA 3 - Antecedentes mais comuns.
* Nº = Número de crianças avaliadas para este antecedente
TABELA 4 - Resultados das provas eletronistagmográficas.
*PC = Prova calórica.
**PRPD = Prova rotatória pendular decrescente.
Um dado sintomatológico interessante, e nítido em relação às crianças menores, é o fato de que elas preferem permanecer no berço, em vez de ficar no colo materno, o que, no nosso ver, pode ser atribuído à compensação proprioceptiva que resulta da maior área de contato no berço, em crianças com déficit vestibular.
Alguns autores acreditam que a causa mais comum de distúrbios vestibulares são as disfunções da tuba de Eustáquio, com ou sem efusão'°. Cerca de 60% das crianças em nosso estudo tinham ou tiveram algum tipo de otopatia. Esta taxa de otopatias corresponde a quase dois terços de nossas crianças, um número não muito grande, se comparado com outros sintomas / sinais / antecedentes, mas de importância clínica significativa. O número não foi coincidente com os relatos da literatura(1.3.11.12)
A presença de náuseas e vómitos, mesmo que inexplicada, deve alertar o profissional médico para a investigação de uma possível labirintopataa. Os percentuais encontrados em outros trabalhos são discordantes, variando de 21% a 61% (1.7)). Ern nosso trabalho, encontramos uma porcentagem de 38,4%.
Enurese noturna, dores abdominais, sudorese e palidez são menos freqüentes como queixas principais; porém, podem estar presentes em patologias do labirinto na infância, principalmente na enxaqueca e na vertigem paroxistica benigna em crianças. Movimentos espásticos devem ser lembrados, embora em nossa casuística este dado foi pouco prevalente(13,14). Segundo Bottino e Formigoni em 1989, ao avaliarem 170 casos de crianças labirintopatas, há urna nítida relação entre torcicolo congênito, vertigem paroxistica benigna e a enxaqueca(9).
Quanto aos antecedentes familiares, a enxaqueca familiar foi encontrada em cerca de 90% das crianças em estudo. Isto vem corroborar com a associação já discutida anteriormente. A enxaqueca, a vertigem paroxistica benigna da infância e o torcicolo congênito, no nosso ver, podem corresponder a estágios evolutivos diferentes dentro da história natural de uma mesma doença.
O parto do tipo cesariana teve um percentual que é concordante com os dados de saúde pública no Brasil, se levarmos em consideração que estas crianças são em boa parte da clínica privada. No entanto, o índice de sofrimento fetal nestas crianças foi alto, cia ordem de aproximadamente 43%. De alguma forma, a hipóxia sofrida por estas crianças pode ter contribuído com o aparecimento dos sintomas vestibulares.
O exame eletronistagmográfico (ENG) é valioso na avaliação clínica da vertigem na infância(1,3,6,7). Em crianças maiores, por volta dos quatro anos de idade ou mais, realizamos os testes calóricos. Nas demais foi possível realizar a prova rotatória pendular decrescente (PRPD). Das 91 crianças, 90% apresentaram um resultado positivo em pelo menos um dos exames, o que indica alta sensibilidade elos mesmos, principalmente quando associados. Se excluirmos as crianças que não puderam realizar o teste calórico (n=2) e levarmos em consideração somente as provas rotatórias, a sensibilidade do exame isolado fica em torno de 72%, correspondendo a um índice satisfatório para a pesquisa da vertigem nesta faixa etária. Na prática clínica, associando-se dados de uma anamnese bem direcionada aos exames eletronistagmográficos, conseguimos diagnosticar a presença da vestibulopatia na infância em sua quase totalidade de casos.
Apoiados em nossa experiência clínica, podemos dizer que a vestibulopatia periférica na infância apresenta sintomatologia, antecedentes e sinais bastante diversos daqueles encontrados nos adultos, merecendo um capítulo â parte na otoneurologia, e devendo ser incluída como importante diagnóstico diferencial nos distúrbios do equilíbrio
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASl. CAMPOS, M. L; GANANÇA, F. F.; CAOVILLA, H. H.; GANANÇA, M. M. - Prevalência de sinais de disfunção vestibular em crianças com vertigem e/ou outros tipos de tontura, RBN- ORL, 3 (3): 1165-70, 1996.
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3. CATES, G. A.-Vertigo in Children. Ear, Nose&Throatjournal, 59. 44-58, 1980.
4. BOWER, C. M.; COTTON, R. T. -The spectrum of Vertigo in Children. Arch. Otolaryngol. HeadNeckSurg.,121: 911-5,1995. 5. BLAYNEY, A. W. - The dizzy child. Proceeding of the Irish Otolaryngological Society, p. 55-61, 1983.
6. CAMPOS, M. 1. - Da avaliação da função vestibular em adolescentes "cheiradores de cola". Estudo Eletronistagmográfico. São Paulo, 1988.57p. Tese de Mestrado -UNIFESP. 7. GOLZ, A.; WESTERMAN, T.; GILBERT, L. M.; JOACHIMS, H. Z.; NETZER A. - Effect of middle ear effusion on the vestibular labyrinth. Ibejournal of'Laryngology and Otology, 105.9879, 1991.
8. TUSA, R. J.; SAADA, A. A.; NIPARKO, J. K. - Dizziness in Childhood. Journal of Child Neurolog , 9 (3): 261-74, 1994.
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11. BEM-DAVIDj; PODOSHIN, L.; FRANCIS, M.; FARAGGI, D. - Is the vestibular system affected by middle ear effusion? Otolaryngol. Head Neck Surg., 109 (3.1): 421-6, 1993.
12. CASSELBRANT, M. L.; FURMAN, J. M.; RUBENSTEIN, E.; MANDEL, E. M. -Effect of Otitis Media on the Vestibular System in Children. Ann. Otol. Rhinol. Laryngol., 104 (8):620-4, 1995. 13. COHEN, H. A.; NUSSINOVITCH, M.; ASHKENASI,A.; STRAUSSBERG, R.; KAUSCHANKSY, A.; FRYDMAN, M.-Benign Paroxysmal Torticollis in Infancy. Pediatric Neurology, 9 (6): 488-90, 1993.
14. EVIATAR, L. - Benign Paroxysmal Torticollis. Pediatric Neurology, 11 (1): 72, 1994.
*Professor Assistente Doutor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo-SP
**Médico Pós-Graduado da Disciplina de Clínica Otorrinolaringológica da Faculdade de Medicina da USP
***Assistente Doutor da Disciplina de Clínica Otorrinolaringológica da Faculdade de Medicina da USP
Disciplina de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - Serviço do Prof. Aroldo Miniti. Endereço para correspondência: Divisão de Clínica Otorrinolaringológica - Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 - 64 Andar, Sala 6021 - 05403-000 São Paulo /SP. Fax: (011) 280 0299. Artigo recebido em 19 de agosto de 1998. Artigo aceito em 7 de janeiro de 1999.