INTRODUÇÃONa forma genética humana há um aumento de suscetibilidade para doenças vasculares generalizadas no paciente diabético. Estas doenças vasculares consistem sobretudo de aterosclerose e doenças de pequenos vasos (microangiopatia diabética). Atualmente cerca de 80% dos pacientes diabéticos morrem de alguma forma de doença cardiovascular (1, 2). Este número representa o dobro do número de mortes por doenças cardiovasculares na população em geral.
A microangiopatia diabética consiste principalmente no espessamento das paredes de vênulas e capilares. Este espessamento é causado por aumento de espessura das membranas basais e por depósito de material PAS positivo (mucopolissacarídeos) nas paredes dos pequenos vasos (3). Estas alterações foram descritas em capilares da pele, músculos, nervos e olhos.
Os rins e a retina são freqüentemente afetados pela microangiopatia diabética e conseqüentemente têm sido extensivamente estudados.
O ouvido interno de pacientes diabéticos tem sido estudado histopatologicamente em busca de alterações na microcirculação. Jorgensen (4) estudou os ossos temporais de 32 pacientes diabéticos usando hematoxilina e eosina e PAS como técnicas de coloração. Ele descreveu espessamento severo das paredes dos capilares na stria vascularis causado por depósito de material PAS positivo e concluiu que a microangiopatia diabética parece afetar também os pequenos vasos do ouvido interno. Makishìna e Tanaka (5) estudaram os ossos temporais de quatro pacientes diabéticos. Descreveram espessamento fibroso das paredes e estreitamento do lúmen de artérias no conduto auditivo interno e nos capilares da stria vascularis.
Na literatura encontram-se relatos de diminuição da acuidade auditiva em pacientes diabéticos em porcentagem que varia de 80 a 0% (6). Certamente isto se deve pelo menos em parte à dificuldade em separar as perdas devidas a presbycusis das devidas ao diabetes.
É natural portanto que haja interesse em estudar a patologia da microcirculação no diabetes experimental. Esta condição tem sido induzida em animais através de drogas diabetogênicas das quais duas têm sido particularmente úteis: aloxan e streptozotocin.
O streptozotocin, droga usada neste trabalho, é um antibiótico originalmente extraído do Streptomyces achromogens (7) e posteriormente sintetizado em laboratório (8). A droga produz diabetes lesando irreversivelmente as células beta das ilhotas do pâncreas (9). Uma simples injeção do agente em dose apropriada produz hiperglicemia permanente.
Capilares dos rins, pâncreas e dos olhos têm sido estudados em animais tornados diabéticos pelo streptozotocin (10). Os resultados têm sido contraditórios, havendo dúvidas quanto à capacidade desta substância de induzir lesões vasculares, apesar da hiperglicemia que provoca. Marshak (1972) (11) induziu diabetes em chinchilas com uma única injeção intraperitoneal de streptozotocin na dose de 100 a 120 mg/kg. O estado hiperglicêmico foi monitorado por 18 meses e manteve-se estável.
Ele estudou a cóclea do ponto de vista eletrofisiológico e morfologicamente, por meio de preparações convencionais de osso temporal e não achou anormalidades.
Costa (1966) (12) estudou os ossos temporais de ratos feitos diabéticos através do aloxan e mantidos hipergfcêmicos por seis meses. Ele descreveu espessamento das paredes de vasos do modíolo devido a depósito de material PAS positivo, espessamento da membrana basal de capilares da stria vascularis, além de alterações das células da stria vascularis.
Oliveira et al. (1977) (13) estudou os capilares da cóclea de chinchilas feitas diabéticas com streptozotocin usando preparações de superfície com colorações especiais para os capilares. Foram descritas alterações significativas nos capilares da stria vascularis e ligamento espiral de animais diabéticos há seis meses e um ano. Não há outros estudos do ouvido interno em animais experimentalmente diabéticos na literatura.
Materiais e métodosO método de indução do diabetes experimental com streptozotocin em chinchilas, bem como a comprovação do estado hiperglicêmico nos animais através de curvas glicêmicas realizadas periodicamente, foram descritos em detalhe em outra publicação (13) e serão portanto descritos sumariamente aqui. Seis chinchilas foram feitas diabéticas através de uma única injeção intraperitoneal de streptozotocin na dose de 100 mg/kg. Curvas glicêmicas realizadas periodicamente comprovavam o estado hiperglicêmico permanente dos animais após o tratamento com streptozotocin. Após três, seis e 12 meses de diabetes experimental estabelecido grupos de dois animais foram sacrificados com dose maciça de pentobarbital pela via intraperitoneal, decapitados e tiveram os ossos temporais removidos para estudo morfológico.
Duas técnicas de preparação dos ossos temporais foram usadas:
a. Os ossos foram decalcíficados, colocados em blocos de celoidina e cortados no sentido horizontal. Os cortes seriados tinham 20 microns de espessura.
b. Foram obtidos cortes finos do dueto coclear iguais aos usados para microscopia eletrônica. A técnica de obtenção destes cortes está descrita em detalhes em outra publicação (14) e não será repetida portanto.
Os cortes espessos foram corados com hematoxilina e eosina e com PAS (Periodic Acid-Schiffl. Os cortes finos do dueto coclear foram corados pela técnica de Gomori (PASM - Periodic Acid-Schiff-MethenamineSilver).
ResultadosAs Figs. 1 a 9 mostram o resultado deste estudo morfológico. Não foram detectadas alterações nos capilares da cóclea nas preparações convencionais de osso temporal coradas pela hematoxilina e eosina nem pela técnica do PAS.
Figura 1 - Chinchila diabética há três meses. Coloração com hematoxilina e eosina, magnificação 100X. As estruturas do dueto coclear do turno basal são normais.
Figura 2 - Chinchila diabética há seis meses. Coloração com hematoxilina e eosina, magn ficação IOOX. As estruturas do dueto coclear do turno basal são normais.
Figura 3 - Chinchila diabética há 12 meses. Coloração com hematoxilina e eosina, magnificação 100X. As estruturas do dueto coclear no turno basal são normais.
Figura 4 - Chinchila diabética há três meses. Coloração com PAS, magnificação 400X. Capilares da stria vascularis parecem normais
Figura 5 - Chinchila diabética há seis meses. Coloração com PAI magnificação 400X. Vários capilares da stria vascularis vistos em secção transversal parecem normais.
Figura 6 - Chinchila diabética há 12 meses. Coloração com PAÂ magnificação 400X. os capilares da stria vascularis vistos em secção transversal parecem normais.
Figura 7 - Chinchila normal (controle). Coloração com técnica de Gomori (PASM), magnificação 400X. Capilares na stria vascularis têm contornos lisos e regulares de suas membranas basais
Figura 8 - Chinchila diabética há 12 meses. Coloração com a técnica de Gomori (PASM), magnificação 400X. Stria vascularis e ligamento espiral do turno basal. Os capilares na stria vascularis mostram contornos irregulares (comparar com Fig. 7) mas não há espessamento de membrana basal.
Figura 9 - Chinchila diabética há 12 meses. Coloração com a técnica de Gomori (PASM), magnificação 400X. Stria vascularis e ligamento espiral do turno basal. Os capilares na stria vascularis mostram irregularidade no contorno de suas membranas basais (comparar com Fig. 7) mas não há espessamento desta estrutura.
Nos cortes finos do dueto coclear corados pela técnica do PASM foi possível demonstrar em chinchilas diabéticas há seis meses e há 12 meses nítida irregularidade no contorno das membranas basais dos capilares da stria vascularis em comparação com animais hígidos (não diabéticos). Entretanto não foi possível evidenciar nenhum espessamento óbvio da membrana basal dos capilares da stria vascularis em animais diabéticos.
ComentáriosOs resultados obtidos nas preparações convencionais de osso temporal coradas com hematoxilina e eosina estão de acordo com o obtido por Marshak (11) e são essencialmente negativos. Para que alterações da microcirculação coclear aparecessem em preparações convencionais de osso temporal seria necessário que fossem severas e generalizadas, de modo a provocar alterações estruturais no dueto coclear e no modíolo.
Alterações vasculares pouco acentuadas e localizadas não apareceriam com o uso deste método.
A coloração com PAS foi feita na esperança de demonstrar espessamento da membrana basal de capilares da cóclea na chinchila diabética, a exemplo do que demonstrou Costa (12) usando o rato. Entretanto nossos resultados na chinchila foram inteiramente negativos. Para isto há duas explicações plausíveis: a espessamento de membrana basal é difícil de demonstrar mesmo usando microscopia eletrônica (15, 16) e os resultados obtidos em retinopatia diabética com relação a esta alteração morfológica são contraditórios; b. a chinchila tem tempo médio de vida muito maior que o rato. Assim sendo, é possível que o tempo decorrido desde a indução da hiperglicemia em nosso experimento tenha sido muito curto para produzir espessamento de membrana basal demonstrável por esta técnica histológica na chinchila.
O método de coloração que denominamos PASM foi descrito por Gomori e tem sido usado em outros órgãos da economia mas nunca foi usado antes na cóclea. Ele parece ter nítidas vantagens sobre o PAS para demonstração de membrana basal nos capilares da cóclea. Esta estrutura (Figs. 7, 8 e 9) aparece muito bem delineada em relação aos tecidos circunjacentes, permitindo um julgamento melhor de alterações de contorno e de espessamento das membranas basais. Deste modo foi-nos possível demonstrar claramente (Figs. 8 e 9) irregularidades de contorno das membranas basais de capilares da stria vascularis em chinchilas diabéticas há seis e 12 meses em comparação com animais normais. Vale lembrar que esta alteração (irregularidade de contorno de membranas basais) tem sido descrita mais freqüentemente em retinopatia diabética do que espessamento desta estrutura (15, 17). As alterações de contorno das membranas basais encontradas em nossos animais provavelmente representam lesões incipientes causadas pelo diabetes experimental.
Em conclusão podemos dizer que:
Há indícios claros de que o diabetes experimental produzido pelo streptozotocin causa alterações vasculares ao nível da microcirculação do ouvido interno e portanto este é um modelo animal válido para ò estudo de patologia vascular na cóclea que merece ser mais explorado no futuro.
A técnica de Gomori (PASM) tem vantagens definidas sobre o PAS no sentido de evidenciar alterações ao nível da membrana basal de capilares da cóclea e portanto deve ser usada com mais freqüência em estudos futuros. Uma vez estabelecido o modelo experimental e conhecidas as alterações vasculares causadas pelo diabetes experimental, estudos de eletrofisiologia coclear em animais diabéticos poderão nos ensinar muito sobre o papel da patologia da microcirculação na gênese da surdez neuro-sensorial.
SummaryThe authors studied the capillaries in the stria vasculares of chinchillas made diabetic by a single injection of streptozotocin intraperitoneauy. Conventional temporal bone preparations stained with hematoxilin and eosin as well as PAS staining failed to show any morphologic change in the basal membranes of stria capilaarie& Thin sections of the cochlear duct stained by the Gomori technique showed irregularities in the contour of the basal membranes of stria capillaries after six and 12 months of established experimental diabetes. Thickness of the basal membranes appeared normal in these animals. They comment on the possible meaning of the findings in this morphologic study and make some recomendations for future investigations in the field of cochlear vascular pathology.
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1 Coordenador da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília.
2 Médico estagidrio da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília.
Trabalho realizado na Disciplina de Otorrinolaringologia do Departamento de Medicina Especializada da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília, Brasília, DF
Endereço dos autores Faculdade de Ciências da Saúde Dept° de Medicina Especializada Universidade de Brasília - 70910 - Brasília - DF.