ISSN 1806-9312  
Terça, 15 de Outubro de 2024
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1377 - Vol. 14 / Edição 6 / Período: Novembro - Dezembro de 1946
Seção: Trabalhos Originais Páginas: 449 a 471
AS ANGINAS NAS HEMOPATIAS (1)
Autor(es):
Dr. PAULO MANGABEIRA-ALBERNAZ (2)

A sistematização dos processos inflamatórios da garganta, que se apresentam nas várias afecções do sistema hematopoético, constitui um dos problemas mais intrincados de nossa especialidade. Em verdade, em tais casos, há a considerar, não só a possibilidade de certas doenças do sangue serem secundárias a processos flegmásticos da garganta, como a de estes, por sua vez, não passarem de meros sintomas locais daqueles. Acresce que, no tocante às chamadas hemopatias, estamos ainda em fase incipiente, nem só quanto à etiologia, como à terapêutica, e mesmo à posição delas no quadro nosológico. Há casos de agranulocitose terminados em mononucleose (Claus) ; de agranulocitose transformada em leucemia mieloblástica (Kindler) ; e, como acentuam os principes da hematologia - Naegeli, Mayer e Sternberg, Ferrata, Hertz, Hirschfeld e outros - casos em que a dificuldade é às vezes extrema para distinguir a leucemia aguda leucopênica da agranulocitose. Por sua vez, a leucemia leucopênica pode aparecer no decurso de qualquer tipo de leucemia, isto é, dos três primordiais, o linfático, o mielogênico e o monocítico. Como se tais dificuldades não bastassem para tornar o problema de tal modo complexo, há que atentar na terminologia variegada e confusa da hematologia, em que se emaranham não só escolas, como concepções pessoais ilimitadas. Não só a terminologia, como a própria histologia normal do sangue. Basta citar esta frase lapidar de Kracke, uma das figuras de maior relêvo na hematologia moderna, para se ter idéia das dificuldades que o problema consegue enfeixar: "É muita vez impossível distinguir um monócito intensamente granulado de um metamielócito. Um exame feito pelo método vital pode eventualmente permitir esta distinção, mas, a nosso ver, o critério de identificação das células por meio do método acima referido pode incidir nos mesmos erros que o critério adotado nas preparações coradas pelos métodos comuns. Focalizamos monócitos em um campo do microscópio e convidamos alguns dos melhores hematologistas da América a identificá-los, e os resultados foram tão diferentes, quanto se a identificação tivesse sido feita por um grupo de estudantes de medicina bisonhos. Isto serve apenas para mostrar a discórdia que existe do que diz respeito à morfologia dos monócitos".

Tais palavras, referentes apenas a estas células, podem ser estendidas a vários outros problemas hematológicos. Vejamos, por exemplo, o que tem acontecido no referente à chamada mononucleose infecciosa. Êste mal foi descrito por Filatow em 1885, e batisado por Pfeiffer, em 1889, pelo nome de febre gangliar. Em 1922, Schultz passava a reescrevê-lo, como uma nova entidade nosológica, sob o nome de angina monocítica, a que, em 1927, Ustved, dava, por sua vez, o nome de angina linfocítica, alegando que o predomínio, no sangue, não era de monócitos, e sim de linfócitos. Já Sabrazès e Saric dão ao mal o nome de angina linfo-monocítica, admitindo que é a linfo-monocitose que o caracteriza. E declaram textualmente

"As dificuldades de diferenciação, às vezes grandes, entre linfócitos e monócitos, apesar da esplêndida coloração pelo MayGiemsa e os processos eletivos de um de nós, exigem certa sagacidade dos pesquisadores. Isto se deve às formas anormais quer de uma, quer de outra categoria de elementos brancos. Um de nós, em 1911, já havia assinalado as formas anormais de linfócitos, que se apresentam nesta afecção. Grande número de autores tem se ocupado do assunto. A dificuldade foi contornada, evitada ardilosamente, diremos, pelos que, na palavra mononucleose, englobaram os linfócitos, os monócitos e as formas anormais destas células."

Fica, desta sorte, patente a dificuldade do diagnóstico preciso destas afecções e como é pouco segura a comparação dos diagnósticos publicados, uma vez que a diversidade de escola torna por vêzes muito difícil, senão impossível, chegar-se a conclusões indiscutíveis.

***

As manifestações que as hemopatias determinam na garganta são indiferentemente descritas como angina ou amigdalite, predominando a primeira designação. Como é notório, as palavras ora mencionadas empregam-se geralmente em medicina como sinônimos. Em estudo anterior, procurei demonstrar que a amigdala, como a faringe, são, anatômicamente, partes completamente distintas, com individualidade própria. Mostrei ainda que há afecções que ficam limitadas, ora a uma destas regiões, ora à outra. Fiz ainda ver que a palavra angina, usada desde Galeno ou pouco antes dele e, se não criada por êle, por êle posta em largo uso, representa, de-fato, um processo global de toda a garganta, não raro atingindo o laringe. O grande mestre da medicina definia-a como:
"a constrição da garganta com dificuldade de respirar e de deglutir, acompanhada de sintomas decorrentes da inflamação, falsa ou verdadeira, da garganta e do laringe".

Quero crer que êste falsa ou verdadeira (legitima vel spuria, no latim), queira referir-se ao que chamamos hoje primitiva ou secundária, a ursächlichen Angina e a Folgeangina dos autores alemães.

É claro, pois, que, para pôr um pouco de ordem na terminologia das inflamações da garganta, temos de aceitar três localizações diferentes: a inflamação da faringe, faringite; a in-
flamação das amígdala, amigdalite; a inflamação global, isto é, a soma das inflamações da faringe e da amígdala, a angina.

Partindo desta premissa, podemos desde logo admitir que, nas hemopatias, os três tipos inflamatórios podem apresentar-se. De início, o processo ora é da amígdala, o que é mais comum, ora da faringe. Na fase mais adiantada, o processo é anginoso e quase sempre já se estende à própria cavidade bucal, pelo menos às gengivas.

***

Há, em verdade, anginas hemopáticas, isto é, anginas características, típicas, de determinadas hemopatias, ou mesmo das hemopatias em geral? Absolutamente não. Há processos inflamatórios da garganta que podem sugerir ao clínico a possibilidade de uma doença geral, mas quase sempre isto acontece pela relação que o médico percebe entre o sintoma e o estado de decadência orgânica ou de reação somática que o paciente apresenta. Os dois quadros - amigdalite, faringite ou angina + estado geral sèriamente atingido - é que despertam a atenção do especialista para a possibilidade da hemopatia.

Citarei dois casos concretos. O primeiro diz respeito a uma menina de 15 anos, que se me apresentou, por causa de uma inflamação da garganta, no Ambulatório da Santa Casa de Campinas. Não pude apurar grande coisa pelo interrogatório: a doença datava de pouco mais de quinze dias, e se caracterizava por pronunciada fraqueza e dor de garganta. O exame revelou amígdalas enormes, pediculadas. Seu característico capital era o colorido roxo, como se sobre elas tivessem sido aplicadas ventosas. Tal côr era difusa a todo o parênquima, e o revestimento epitelial não apresentava erosão nenhuma visível. A mucosa da bôca mostrava-se em extremo pálida. Na menina, muito enfraquecida, chamava igualmente a atenção a marcada palidez. O exame de sangue denotou leucemia linfática (pelo que sabemos hoje talvez fosse mielogênica) aguda, e a doente não durou mais de vinte dias.

Reporta-se o segundo caso a uma senhora de 52 anos, residente em cidade vizinha de Campinas (Araras). Doente havia 28 dias, seu mal começara como uma doença infecciosa geral, e a hipótese primitiva foi de gripe. Ao cabo de poucos dias, seu médico percebeu angina fibrino-purulenta( pseudo-membranosa) e retirou material para exame bacterioscópico: bacilos fusiformes e espiroquetas em abundância predominavam nos campos microscópicos. Diante disso, instituiu o tratamento pelo bismuto em injeções. Como, porém, a doente não melhorasse, e pelo contrário, o estado geral cada vez se tornasse mais precário, foi chamado um especialista, que propôs a terapêutica da angina pelo neo-salvarsan. A doente recebeu uma injeção de miosalvarsan, e, horas depois, a temperatura chegava a 40° e o estado geral se agravava sobremodo. No dia imediato, fui chamado. Encontrei uma doente prostrada, com febre alta, extremamente pálida, com temperatura elevada, respiração e pulso muito rápidos. Lesões ulcero-necróticas, pouco extensas, nas amígdalas, na amígdala lingual, na parte anterior da gengiva inferior. Não havia, no pescoço, gânglios palpáveis. O tipo da lesão e o estado geral, tal como no primeiro caso, trouxeram-me à mente a idéia de agranulocitose ou leucemia. O exame, feito por um técnico, revelou agranulocitose total. Êste mesmo exame feito, depois, por Monteiro Sales, daria leucopenia (2.000 p.mmc.), granulopenia (20%), linfocitose (80%), aneosinofilia, ausência de elementos imaturos. O diagnóstico seria de agranulocitose.

Casos como êstes abundam na literatura. A frequência com que o faringologista é obrigado a intervir nestes casos, decorre ao fato de muitas vêzes o sintoma, não direi mais evidente nem mais exuberante, porém mais incômodo, apresentar-se na garganta. Veremos adiante por que aspecto se manifesta êle, uma vez que êste é um dos pontos mais importantes dêste estudo.

O que digo a respeito da agranulocitose e da leucemia, estende-se às outras hemopatias. Entretanto, por vêzes, o aspecto da lesão é estranho. Foi o que se deu no primeiro caso que citei, e de que não vi outro até hoje, nem vi referência alguma na extensa literatura compulsada a respeito do assunto. Sabrazès e Saric relatam um caso de leucemia aleucêmica em que o mal começou por uma espécie de fluxão das amígdalas. O médico que atendeu ao paciente achou que aquele aspecto não se enquadrava nas afecções usuais da garganta e rotulou-o de "extravagante". Só depois é que as amígdalas se mostraram tumefeitas e cobertas por falsas membranas escuras.

Ustved, no entanto, descreveu com minúcia extrema e caracteres quase patognomônicos a angina linfocítica:
"As amígdalas mostram-se inflamadas e às vezes o próprio véu e a úvula tomam parte no processo. A mucosa não apresenta aquela vermelhidão brilhante da amigdalite críptica aguda, não se assemelha ao tipo encontrado na escarlatina, nem tem aquele aspecto gelatinoso que se vê na difteria. Apresenta matiz mais claro, e as amígdalas podem mostrar-se manchadas ou desiguais com aspecto muito peculiar. Placas brancas por vêzes muito pequenas, vêm-se na superfície do órgão, ao qual aderem firmemente.

Não se trata de placas justapostas, mas de necrose da mucosa".

Esta angina linfocítica é a mesma a que Sabrazès e Saric dão o nome de angina linfo-monocítica. Vejamos a descrição da angina, dada por êstes autores

"Todos os tipos de amigdalite têm sido assinalados: o entumescimento eritematoso simples; a forma críptica; o exsudato pultáceo, esbranquiçado ou acinzentado com mau cheiro ou mesmo pútrido; o aspecto difteróide; a úlcera necrótica."

Por aí se vê que é algo exagerada a descrição de Ustved. Não há, em verdade, amigdalite, faringite ou angina, cujo aspecto seja característico da chamada mononucleose infecciosa, nem de qualquer das hemopatias.

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Se não há nenhum tipo de angina característico das hemopatias, fique desde logo firmado que, também não há anginas hemopáticas. Há, sim, nas hemopatias, processos anginosos, amigdalites, faringites, que se manifestam como sintomas ou epifenômenos da discrasia sanguínea. Mas, dizer como Schultz, angina monocítica; como Ustevd, angina linfocítica; como Sabrazès e Saric, angina linfo-monocítica; como Friedmann, angina agranulocítica; parece a mim impropriedade terminológica
1.°) porque, no termo angina, incluem muita vez os autores, não só as três manifestações inflamatórias capitais da garganta - amigdalite, faringite e angina, como processos difusos que se estendem às gingivas, bochechas, à língua e até ao laringe e à traquéia;
2.°) porque têm sido observadas hemopatias em operados de amígdalas, e, em tais casos, o único processo que se poderia apresentar na garganta seria a faringite;
3.°) porque há casos de agranulocitose, leucemia, mononucleose, etc., em que não se apresenta qualquer sintoma, inflamatório ou não, localizado na garganta;
4.°) porque, nestas afecções, o processo inflamatório da garganta é apenas simples sintoma e não é razoável designar uma afecção por um sintoma que se pode apresentar em quase todas as doenças infecciosas e que pôde justamente faltar na que dele tirou a denominação.

É óbvio, pois, que a designação de tais afecções por angina, não deve e não pode ser mantida.

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Para muitos autores as hemopatias - pelo menos certas delas, como a agranulocitose - podem ter início na garganta. Tal suposição decorre de dois fatos capitais: 1.°) a lesão ulcerosa agranulocitótica começa no fundo das criptas das amígdalas, tendo, pois, uma fase invisível ao exame; 2.°) a punção esternal demonstra que nem sempre a medula óssea se acha comprometida. Há casos em que o exame revela normalidade das séries branca e vermelha na medula, e granulopenia no sangue periférico.

Daí se inferiu que, em certos casos, a amigdalectomia poderia influir favoràvelmente no prognóstico, e curar o paciente. Grahe, entre outros, é apologista desta terapêutica. Zange reputa-a muito perigosa, e estabelece que, para recorrer à operação, é necessário apurar se se trata de amigdalite causal (ursächlichen Angina) ou de amigdalite consequente ou secundária (Folgeangina). Êste autor não esconde, porém, que tal distinção é, sob o aspecto clínico, extremamente difícil e, mesmo, em certas circunstâncias, pràticamente impossível, pelo menos enquanto o processo necrótico, partido da profundidade das criptas, não se tiver apresentado na superfície da amígdala. A necrose oculta-se durante certo tempo sob o quadro da amigdalite vulgar propagada, com infiltração peri-amigdalina tórpida. Zange insiste na diferenciação, pois, na amigdalite causal, a amigdalectomia, sem nenhum preparo do doente, é permitida e até de vantagem, ao passo que, em casos de amigdalite secundária, a intervenção é extremamente perigosa, exigindo preparo minucioso e acurado do paciente (transfusões, salvarsan, etc.). Apesar de todo êste cuidado, cita o autor o caso de um doente, com alterações do sistema hematopoético em seguida a leucemia, em que, por causa de provável estado irritativo mielótico, foi indicada e realizada a amigdalectomia imediata, a que se seguiu processo gangrenoso extenso, difuso, das fauces, com agravamento do quadro mielogênico do sangue, e morte por septicemia. Tratava-se em realidade de leucemia mielogênica genuina, com amigdalite secundária necrótica ainda inaparente.

Do estudo histopatológico dos processos necróticos da garganta nas hemopatias, Zange, em outro trabalho, conclui que "as amígdalas, com suas criptas dispostas profundamente, muitas vezes cheias de elementos infecciosos dificilmente elimináveis, e, por privação do ar, particularmente apropriadas às infecções anaeróbicas, são pontos de predileção para o aparecimento de necrose do tecido". A seu ver, êsses processos se iniciam pelo quadro da inflamação comum com infiltração peri-amigdalina. Pôde o autor, em certo caso, observar, em cortes, focos evidentes de necrose situados na profundidade das criptas. Em casos mesmo em que o processo necrótico superficial era muito discreto, havia, na parte mais profunda das criptas, focos extensos, difusos, fato igualmente assinalado por Schultz. Tais dados, que Zange foi o primeiro a publicar, "explicam melhor" - diz êle - "o fato já sobejamente conhecido de que as doenças em estudo localizam-se muito mais frequentemente nas amígdalas do que em partes outras do corpo". E daí conclui por indicar, em tais casos, como terapêutica adequada, a amigdalectomia.

É evidentemente por demais simplista a concepção de Zange. Reznikoff contesta-a, quando diz que êstes males sempre começam pela médula óssea. Cita o caso muito instrutivo de um paciente que acompanhou por espaço de oito meses, e em que diàriamente fez a contagem dos glóbulos sanguíneos. Certo dia, apresentou o sangue 5000 leucócitos, com apenas 5% de polinucleados. Foi internado o paciente no hospital, embora nada estivesse sentindo, mas, no dia imediato, queixou-se de estar a garganta áspera e manífestou-se dentro de pouco "o quadro da agranulocitose". Tal fato" - diz o autor - "é muito importante, pois demonstra que êsses pacientes têm, primeiro, uma afecção da medula óssea, e, secundàriamente, a da garganta, e, quando chegam a nossas mãos por causa da inflamação do istmo, estiveram já doentes por tempo relativamente longo, com disfunção da medula óssea". Êste é, aliás, o modo de ver da mor parte dos autores.

A verdade é que os pesquisadores que se têm ocupado do assunto, isolam-se no "quadro da agranulocitose" sem atentar a que esta imagem não é de determinada doença, mas de esgotamento do aparelho de defesa do organismo, que pode ser causado por várias afecções.

Nada prova, de modo indiscutível, no momento atual, que qualquer das hemopatias tenha por ponto de origem a amígdala. É de crer que estas afecções atinjam de início o próprio aparelho hematopoético, e que, nas amígdalas, por sua qualidade de órgãos muito expostos à infecção, surjam os sintomas mais fáceis de perceber. Assim sendo, a extirpação das amígdalas não parece, em nenhum caso, intervenção aconselhável em tais afecções, mòrmente hoje, quando possuimos, contra os agentes infecciosos, armas tão preciosas como os antibióticos, mòrmente a penicilina.

Mesmo que assim não fosse, não refere a literatura nenhum caso em que se tivesse conseguido a cura por meio da amigdalectomia, não só na agranulocitose pura, como nas chamadas síndromes agranulocíticas. Do que não há dúvida é de que a intervenção nêstes casos é sempre extremamente perigosa.

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Insistem vários autores no aspecto especial, característico, das manifestações inflamatórias observadas na garganta, no curso das hemopatias.

Para Reznikoff, a evolução por exemplo, da agranulocitose faz-se com caracteres em verdade peculiares. "A primeira manifestação que percebemos é congestão discreta, muito leve. O paciente queixa-se de que, ao deglutir, parece a garganta estar ferida. Ràpidamente, porém, torna-se ela irritada de modo difuso, mas de maneira diferente da que se observa na amigdalite simples, na qual a mucosa apresenta colorido vermelho brilhante, enquanto , nestes casos, a coloração é de um rubro purpúreo. Não há riscos de côr vermelho-brilhante. As lesões, que se apresentam na pele de tais doentes, são as mesmas, e, se estas manifestações cutâneas forem examinadas, não se encontram polinucleados, e é-se forçado a concluir que um dos característicos mais notáveis da ausência de polinucleados é esta côr de púrpura. Imediatamente depois disso, se o mal progride, aparece edema intenso, que é carater constante, e, logo depois, a necrose e o esfacelo".

Vimos, igualmente que outros autores, conferem característicos quase patognomônicos às inflamações que aparecem na garganta em outras hemopatias.

Para pôr um pouco de ordem no estudo do tema, e facilitar a compreensão de uma série de fatos a êle correlatos, torna-se necessário considerar, primeiramente, as várias hemopatias. É extremamente difícil, senão impossível, harmonizar todas as opiniões, e, sobretudo, esquematizar as chamadas doenças ao sangue ou do sistema hematopoético, sobretudo as referentes à série branca. Há, mesmo neste particular, meros sintomas que se tem querido alçar ao papel de entidades patológicas. Fala-se em neutropenia infecciosa, mononucleose infecciosa, linfocitose infecciosa, leucopenia maligna, etc. Nestes casos, apenas uma parte, nem sempre muito significativa, é usado para designar um todo complexo; isto é, um sintoma isolado dá nome a uma entidade mórbida.

Não raro o valor de um dêstes sintomas tem sido exagerado ao ponto de querer-se basear tão sòmente nele o diagnóstico do mal. É o caso, por exemplo da monocitose. Angina de monócitos ou monocítica foi uma das designações iniciais da hoje chamada mononucleose infecciosa. Daí inferirem certos autores que o mal se limitava a um processo flogístico da garganta, acompanhado de monocitose. Ora, não basta aparecer monocitose no curso de um processo anginoso ou semelhante, para poder ser firmado o diagnóstico de mononucleose infecciosa. Contele, em seis casos de angina de Plaut-Vincent e em um de angina necrótica, encontra 10 a 28% de monócitos. Daí chega à conclusão de que a mononucleose não é um quadro patogênico independente, e aconselha a dizer-se angina com reação linfocitêmica, monocitêmica e mista - linfo-monocitêmica. Por sua vez, Friedemann e Elkeles, estudando a angina úlcero-necrótica fuso-espiroquética, opinam que as anginas dêste tipo, seguidas de mononucleose, nada mais são do que formas graves de enfermidade. Os sintomas gerais - adenites, inflamações do fígado e do baço, são consequências da fuso-espiroquetose geral. Müller vai mais longe: "Angina monocitica e angina de Plaut-Vincent devem ser considerados quadros patológicos idênticos, diferentes apenas na gradação. A mor parte dos casos de simbiose fuso-espiroquética é seguida de reação linfática".

Em verdade, a monocitose acompanha diversos estados patológicos. Vemo-la no varíola, no sarampo, na coqueluche, na parotidite epidêmica, no paludismo, na escarlatina, na tuberculose, na febre de Malta, na febre tifóide, etc. Aparece indiferentemente no curso de estados caracterizados por hiperleucocitose ou por leucopenia. Schilling diz haver três fases hematológicas na defesa do organismo contra as infecções: a primeira, de luta, com aumento dos polinucleados ; a segunda, de reação com monocitose; a terceira, de convalescença, com linfocitose e eosinofilia. Em certas infecções, a segunda fase confunde-se com a primeira. "Em outras infecções agudas e crônicas, são notadas monocitoses verdadeiras, específicas, lentas, fazendo parte integrante da evolução do processo mórbido" (Lima Filho).

Não é, pois, possível, dar valor absoluto apenas à monocitose.

Já vimos, no início deste trabalho, a dificuldade extrema em separar monócitos e linfócitos. O próprio Schultz, criador da designação do processo conhecido por angina monocítica., e, até certo ponto, o cientista que isolou êste quadro patológico, acabou por propôr substituir-se tal nome pelo de angina linfoidocelular (lymphoidzellige Angina), baseado na sugestão de Arneth de designarem-se linfócitos e monócitos pelo nome de células linfóides.

Dêste fato nasceu uma confusão, ainda vigente entre os clínicos, entre linfocitose e monocitose.

A linfocitose verdadeira pode igualmente acompanhar inúmeros estados patológicos. Schwarz, reportando-se a um caso da "chamada angina monocítica" por êle observado com Frey, chama a atenção para o aparecimento da linfocitose, mesmo sem angina. Vemo-la na coqueluche, no sarampo, na febre gangliar, etc., mais pronunciada nestas duas últimas infecções. Referindo-se a casos de angina de Plaut-Vincent, clínica e bacteriològicamente diagnosticados, observados na febre gangliar de Pfeiffer, lembra o autor que, só em 50 a 60% dos casos desta afecção, aparece o processo anginoso, de sorte que não são os germes da simbiose que determinam a reação linfática, e sim a infecção primitiva causada pela própria febre gangliar, a qual perturba o equilíbrio biológico do tecido linfadenóide, e torna-o accessível ao ataque dos germes de simbiose fuso-espiroquética.

Estudando as "anginas de reação linfática", Mihaljevic conclui, do estudo de dez casos, que, para distinção entre estas e as anginas vulgares, são comuns aos casos observados os se
guintes sinais: 1.°) adenopatia generalizada; 2.°) inflamação com carater úlcero-membranoso e necrótico; 3.°) decurso longo; 4.0) reação linfocítica particular no sangue, quase à custa dos linfócitos e principalmente dos grandes.

A neutropenia é outro sintoma de cujo significado se tem tirado conclusões em demasia elásticas. Ao que diz Reznikoff, encontram-se geralmente na clínica três tipos: a) a neutropenia infecciosa, como, por exemplo, Goodner observou na infecção experimental pneumocócica, na qual surge muito antes de o animal apresentar febre e hemocultura positiva; b) a neutropenia resultante de exaustão de todo o aparelho hematopoético; c) a neutropenia chamada granulocitopenia ou agranulocitose.

A prova da confusão entre estes sinais hematológicos está nos casos, encontrados na literatura, de agranulocitose transformada em mononucleose (Claus, Haberfeld e Rudolph) ; agranulocitose com mononucleose (Tencer, Landsberg) ; mononucleose transformada em agranulocitose (Elmenhoff-Nielsen). Numa das observações de agranulocitose referidas por Lima Filho, em que o paciente apresentava lesões necróticas estômatofaríngicas extensas, havia pronunciada leucopenia de tipo monocítico (58%). Pergunta o autor: "Onde o classificar? Como angina de monócitos ou como aconiocitose (agranulocitose) ? Em favor desta última hipótese falam a leucopenia intensa e a gravidade do caso, de rápida evolução, terminando pela morte; milita em apôio da primeira o número muito elevado de monócitos, sem alteração do teor linfocitário".

É evidente, desta sorte, que o problema diagnóstico destas afecções do sangue apresenta dificuldades por vezes insuperáveis, e que muita vez o diagnóstico apresentado não se escuda em provas francamente demonstrativas.

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Do ponto de vista do que interessa particularmente ao especialista de garganta, deveremos, entre as hemopatias, ter em mente as seguintes:

1.°) As leucemias. O estabelecimento de tipos especiais (promieloblástica, linfoblástica, mielocítica, aleucêmica, panmielotísica, etc.) é pouco seguro. Interessa saber se a leucemia
é aguda ou é crônica. Como o diz muito justamente Kracke, "é muito mais importante estabelecer ou excluir a leucemia, do que determinar-lhe o tipo, pois do ponto de vista prático, o prognóstico é o mesmo, seja qual fôr a espécie".

2.°) A linfadenose benigna. É o nome mais adequado para designar o que Schultz chamou angina linfoidocelular, e que Sprunt e Evans cognominaram mononucleose infecciosa, nome hoje universal. Devemos, neste capítulo, encarar três tipos diferentes:

A) A chamada febre gangliar de Pfeiffer, que, para muitos autores, difere da chamada angina linfoidocelular, correspondente à verdadeira mononucleose infecciosa. Caracteriza-se por manifestar-se epidèmicamente e pelo fenômeno de Hanganatziu-Deischer, aplicado em clínica sob o nome de reação de Paul e Bunnel (elevação dos anticorpos heterófilos).

B) A angina monocítica de Schultz ou angina de reação mononuclear de Friedmann. Êste tipo é difícil de esclarecer, e tem como elemento diagnóstico diferencial precípuo a reação de Hanganatziu-Deischer, que se apresenta sempre positiva. Em doenças que se acompanham de mononucleose, tais a coqueluche, o sarampo, a lues secundária, o paludismo, as agranulocitoses, a leucemia linfóide, a angina do Plaut-Vincent, a reação é sempre negativa.

Esta doença, uma vez que fique patente a sua independência da febre gangliar, é idêntica à angina linfocítica de Ustved e à angina linfo-monocítica de Sabrazès e Saric.

C) A linfocitose infecciosa de que, desde 1941, foram publicados 32 casos. É a febris
lymphocytica de Rosenbaum. Tem se querido fundir esta afecção com a linfadenose benigna (mononucleose infecciosa). A diferença entre as duas é o aumento nítido do número de pequenos linfócitos normais na linfocitose infecciosa, quando comparada ao aumento discreto dos linfócitos atípicos, verificado na linfadenose benigna. Além disso, os anticorpos heterófilos não se apresentam aumentados significativamente na linfocitose infecciosa (Meyer, Lorenz, Hard e Alt).

3.°) As agranulocitoses. São, por vêzes, manifestações independentes, mas não raro fases terminais de quaisquer das hemopatias. Quero crer que, em que pesem opiniões contrárias, a agranulocitose nada mais é do que uma simples síndrome, ligada a várias enfermidades insuficientemente conhecidas e ainda imprecisas, do aparelho hematopoético.

4.°) A linfogranulomatose maligna, doença de Hodgkin, afecção de natureza indeterminada, que atinge principalmente o sistema linfático.

Nestes quatro tipos se resumem as hemopatias que interessam ao faringologista. No mais, cai-se no emaranhado da sinonímia mais rica de toda a medicina, ou na confusão babélica das classificações histológicas do sangue.

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Percorrendo a riquíssima literatura das hemopatias e das suas manifestações para o lado da garganta, é curioso observar como os autores se contradizem a cada passo na sua descrição. De um trabalho para outro, às vezes no mesmo artigo, percebemos esta variedade de opiniões que apenas reflete a insegurança das assertivas. Para muitos, o aspecto é característico, quase patognomônico, nesta ou naquela hemopatia.

Estudemos êstes pareceres, levando em conta a observação de cada autor, para depois expor as estatísticas.

Já vimos que, na linfadenose benigna (mononucleose infecciosa), a amigdalite ou a angina apresenta-se sob os tipos mais diversos. Schultz descreve-a como um processo semelhante à difteria, portanto fibrino-purulento (pseudo-membranoso dos clássicos), necrótico superficial. Nas cinco observações iniciais constantes de seu livro vemos prevalecer a amigdalite, em vez da angina, e o tipo fibrino-purulento.

Na opinião hoje dominante, porém, a amigdalite, a faringite ou a angina, que se apresenta na linfadenose, não é de tipo tão idêntico. Nos casos que tenho observado, a manifestação sintomática da garganta nada tem de especial e obedece quase sempre ao tipo críptico agudo. Nesta infecção - está provado que a linfadenose é um mal de natureza infecto-contagioso, transmissível ao macaco e ao homem - Wising), não é absolutamente a angina o caráter principal. Mc Kinley, baseado no estudo de 50 casos, reputa o sintoma clínico mais valioso e constante a inflamação generalizada dos gânglios linfáticos. É esta polimicroadenite difusa o sinal mais proeminente da doença. Diz Kracke que, em 78% dos casos, há manifestações amígdalo-faríngicas. Refere êle: "Hà frequentemente infecção intensa da garganta com edema do tecido linfático, a chamada faringite granulosa". É evidente que se trata aqui de um lapso, no que diz respeito à faringite granulosa; esta é uma modalidade de inflamação de carater eminentemente crônico, e que nada tem que ver com as doenças do sangue.

Na literatura especializada verifica-se que, tanto a amigdalite como a angina que acompanham a linfadenose, obedecem a vários tipos. Como já tivemos oportunidade de referir, Sabrazès. e Saric asseveram que elas se manifestam sob qualquer dos tipos usuais. Em todo caso, predominam nas observações os tipos pultáceo, críptico agudo e fibrino-purulento. As formas eritêmato-catarral e úlcero-necrótica são raras, sendo a primeira um tipo de reação inicial à infecção, de duração efêmera.

Nas leucemias agudas, os sintomas de garganta são raros. Nos relativamente poucos casos que observei, o sintoma que trouxe o paciente à consulta foi, de modo geral, a hemorragia nasal repetida. Quando, porém, no curso dos processos leucêmicos, se apresentam sintomas localizados na garganta, o tipo mais comum é o úlcero-necrótico. Observam-se nas amígdalas, nos pilares, no véu, nas paredes da faringe, lesões ulcerosas mais ou menos profundas, revestidas ou cheias de massa purulenta enegrecida e pútrida, de odor nauseabundo. Trata-se de um processo verdadeiramente gangrenoso, em um organismo totalmente destituido de defesa.

Outro aspecto que tem sido assinalado nas hemopatias é a amigdalite hipertrófica. É uma hipertrofia mole, balofa, linfomatosa. A amígdala dêste tipo tem sido encontrada nas doenças. do sangue, mòrmente nas leucemias, na linfogranulomatose maligna (doença de Hodgkin), na sífilis, na tuberculoso (pseudolinfadenia de Sabrazès). Assinalei já um caso de hipertrofia. hemorrágica que me levou, conjugado ao estado geral, à suposição de hemopatia, confirmada pelo laboratório (leucemia linfogênica aguda).

Brunner e Fischer estudaram as alterações da amígdala nas leucemias, tomando por base a observação de sete casos, três de leucemia linfática crônica, três de leucemia linfogênica crônica, e um de leucemia mieloblástica. Para êles, a hiperplasia da amígdala com redução das criptas (amígdala esférica) é característica de leucemia linfática nos casos precocemente diagnosticados. Além disso, observa-se sob a mucosa lisa das vias aérodigestivas superiores, a formação de tumores leucêmicos. Na leucemia mielogênica crônica (mielose) não há sintomas característicos da fase inicial. Ao contrário, na leucemia mieloblástica aguda, observam-se sintomas precoces de diátese hemorrágica, processos gangrenosos graves de bôca, etc.

Nas leucemias aleucêmicas, Sabrazès e Saric verificaram o seguinte. Em um caso, as duas amígdalas estavam tumefeitas, como também tôda a região peri-amigdalina, e havia falsas membranas quase pretas. Foi nêste doente que se apresentou, no inicio, um processo inflamatório da garganta, que o clínico achou diferente dos tipos comuns, rotulando-o de extravagante.

Na outra observação, os autores encontraram tumefação de tôda a estômato-faringe, enduto pseudo-membranoso acinzentado muito aderente das amígdalas e da úvula.

Na alcucia hemorragica, cita Schultz igualmente lesões de caráter destrutivo. De seus três casos, no primeiro, referente a uma criança de pouco menos de quatro anos, as amígdalas,estavam enormes e revestidas de enduto cinzento; mas, na necroscopia, foram encontradas úlceras. No segundo, em um rapaz de 17 anos, havia úlcera da amígdala esquerda, cheia de massa cremosa. No terceiro, ulcera pequena da amígdala e do véu palatino, processo que foi percebido pelo exame clínico, mas que, na necroscopia, não foi mais encontrado, nada tendo, então, sido observado, de anormal nas amígdalas.

O tipo predominante na agranulocitose de qualquer espécie é a angina úlcero-necrótica. Quer me parecer que tal se dá, porque o diagnóstico quase sempre é tardio, e o médico atende ao doente já na fase de estádio ou na terminal da moléstia, quando o estado de decadência orgânica é tal, que a gangrena já se difundiu a toda a cavidade da bôca e até a pontos outros, como os órgãos genitais.

Em certos casos, todavia, não tem sido observada a angina, com tais caracteres. Nos dois casos de Aristides Monteiro, em um, nada havia na garganta, e a agranulocitose manifestou-se no curso de mastoidite aguda. No outro, apresentou-se angina de tipo pultáceo, e as duas amígdalas estavam revestidas de enduto que se estendia, à esquerda, até o cordão lateral. O exame bacteriológico do enduto foi negativo, quer para difteria, quer para fuso-espiroquetose.

Na observação relatada por Braga, o doente queixava-se de dor de garganta. Havia pontilhado pequeno de pus nas amígdalas. A inflamação da garganta cedeu completamente, por três dias, manifestando-se, porém, estomatite. Reapareceu, depois a amigdalite, com aspecto pultáceo.

Casos há em que falta qualquer sintoma localizado na garganta.

A diversidade de pareceres, no que tange à sintomatologia que se apresenta na garganta no decurso das diferentes hemopatias, j[a ficou mais ou menos evidenciado por menção feita em parte outra dêsse estudo. Supus, todavia, que seria êste fato de grande número de casos.

De nunca menos de trezentos trabalhos relativos ao problema, quer artigos, quer monografias, quer tratados, lidos tanto em resumo como na íntegra, apurei 441 observações, descriminadas no quadri n.º 1.


QUADRO N.º 1



Do tipo benigna e suas supostas variantes, verifica-se que, nos casos observados, a manifestação encontrada na garganta apresentava os tipos expostos no quadro n.º 2.


QUADRO N.º 2



Da leitura dêsse quadro, vê-se que, em 99 casos de linfadenose benigna, relatados por vários autores, as lesões da garganta apresentavam-se sob dez tipos diferentes, de que predominaram a angina de Plaut-Vicent, a angina úlcero-necrótica simples e a amigdalite fibrino-purulenta.

Para a distribuição dos 59 casos das diversas leucemias, veem-se os dados no quadro n.º 3.


QUADRO N.º3



O tipo de inflamação obeservado com maior frequência nas leucemias é, por conseguinte, ainda, a angina úlcero-necrótica e, a seguir, em muito mais baixa incidência, a hipertrófico-hiperplástica.

Muito mais complexo, talvez pela cópia de casos observados é o quadro nsa agranulocitoses. (quadro n.º 4).


QUADRO N.º 4



Ainda aqui predominam os tipos úlcero-necróticos, seguidos da forma edematosa, semelhando o fleimão velopalatino. É de notar, porém, que em 283 casos, foram observados 24 tipos diferentes de manifestações inlflamatórias.

Estes dados estatísticos provam à evidencia que nenhuma das hemopatias apresenta, na garganta, lesões que se possam considerar características.

Todo êste arrazoado demostra cabalmente que é um absurdo falar-se em anginas hemopáticas. Há, na realidade hemopatias com amigdalites, faringites ou anginas, destituídas, aliás, de qualquer carater de especificidade.

Se, no entanto, os processos inflamatórios da garganta, que costumam aparecer nas hemopatias, não assumem tipos peculiares quanto à etiologia e quanto à morfologia, não deixam, por isso, de, pelo seu decurso e por sua tendência ao agravamento, concorrer muita vez, a pelo menos levantar a suspeita do mal em causa.

Já tive ensejo, por mais de uma vez, de despertar a atenção para o caso particularíssimo das chamadas amigdalite e angina úlcero-membranosas (melhor úlcero-necróticas) ou de Plaut-Vincent. Por longos anos reputadas como manifestações primitivas, sabemos hoje, que elas costumam enxertar-se sôbre grande número de lesões. Daí a frequência com que manifestações dêsse carater e dessa etiologia se apresentam nas mais variadas entidades clínicas, que se acompanham de marcada decadência orgânica, geral ou local. Admiti, por isso, na classificação por mim proposta, um tipo vulgar, que é o usualmente encontrado, e que tem por causa, às vêzes, um simples resfriado ou defluxo. Temos, nessa espécie, o que se poderia chamar a forma primitiva. Sob o nome de forma secundária enfeixar-se-iam as manifestações que, sob o mesmo aspecto morfológico, a mesma etiologia, as mesmas características histo-patológicas, teriam entretanto causas coadjuvantes diferentes. Acontece que, como demonstrou, entre outros, Mc Clintock, a simbiose fuso-espiroquética é hospedeiro frequente da cavidade bucal, onde vive em estado de saprofitismo. Em havendo diminuição de resistência geral ou local, esta associação micróbica assume papel virulento, dando origem a lesões absolutamente específicas. Ao estabelecer a classificação das afecções inflamatórias da garganta, admiti, no tocante ao tipo úlcero-necrótico secundário, entre as amigdalites, o tipo observado nas hemopatias, e o tipo que se manifesta nas intoxicações medicamentosas; entre as anginas, os tipos observados acima, e mais o dependente das hipovitaminoses. Em todos êstes casos, trata-se de amigdalite ou angina de Plaut-Vincent indiscutível, com sua tríade sintomática por mim estabelecida - dor, mau cheiro, úlcera revestida de falsas membranas, e exame bacterioscópico positivo. Mas nem sempre a cura se consegue, como é de regra no tipo primitivo.

Recordo, nêste particular, o caso de uma criança de sete anos, que se queixava de dores de garganta, mal de que vinha sofrendo, havia já quinze dias. O doentinho achava-se em estado pouco satisfatório: pálido, cansado, com o pescoço cheio de gânglios, visíveis a olho nu; o exame revelou-os pelo corpo inteiro. O hálito era fétido, e o exame mostrou, na amígdala esquerda, úlcera escura, cheia de massa pastosa. Parte do pilar anterior e da úvula havia sido destruída. O exame da secreção confirmou a suspeita de angina fuso-espiroquética. Ao exame clínico, grande depauperamento geral; a rádio do tórax mostra gânglios hilares, pulmões pouco claros. Fiz o tratamento por mim preconizado desde 1922; embrocações com bismuto a 30%. Três a quatro dias depois, a lesão da amígdala e da úvula estava cicatrizada, mas, horas após, apareceu lesão análoga do lado direito. O tratamento bismútico determinou a cicatrização da nova úlcera, mas, mal um lado entrava em fase cicatricial, surgia nova lesão em outro ponto. Só então resolvi mandar fazer o exame do sangue: linfocitose de 80%, células de Türck. Dias depois, o menino vinha a falecer.

É isto que se observa nas hemopatias, em grande número de casos. Diante, pois, das formas ulcerosas sobretudo, deve o médico desdobrar-se em cuidado e atenção. Toda angina de Plaut-Vincent que não ceder a uma ou duas injeções de bismuto e, sobretudo, a embrocações com bismuto, torna-se suspeita, e o médico deve recorrer prontamente ao hematologista.

Temos, assim, na resistência ao tratamento específico, o primeiro sintoma a levantar a suspeita de doença do sangue.

Outro sinal de valor, assinalado por Schultz, é a marcha rápida da angina, isto é, a sua transformação, em poucos dias, de angina crípica em fibrino-purulenta e necrótica. Tal fato é de observação algo comum nas leucemias.

Brunner e Schnierer aconselham, como elemento diagnóstico valioso, o cito-diagnóstico do conteúdo. Retira-se este por meio de uma sonda fenestrada, e faz-se, com o material obtido, um esfregaço em lamínula. Se não fôr possível achar as criptas, o que, principalmente nas leucemias, não é raro, exerce-se pequena massagem sobre o órgão, e retira-se a secreção eliminada, pelo menos das criptas do polo superior. De três casos de leucemia mieloblástica, em dois os autores acharam mieloblastos, células que não existem no conteúdo críptico, nem da amígdala normal, nem da amigdalite críptica. Em dois casos de leucemia linfática crônica, o que predominava eram linfócitos, que não se encontram nunca na amigdalite crônica, e só muito raramente na amígdala normal.

Chama igualmente a atenção do especialista a presença de processos amigdalíticos ou anginosos em indivíduos cujo estado geral se acha gravemente comprometido. Em dois dos casos que tive ensejo de acompanhar, o diagnóstico foi quase imposto por esta associação de sintomas. É outro dado de valor no diagnóstico das hemopatias.

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Não comporta êste estudo a parte hematológica, que é de alçada do especialista nêstes assuntos. Indiscutìvelmente poucas vezes na clínica cabe ao laboratório papel mais relevante do que no diagnóstico das hemopatias. Se, todavia, em certas delas, tais as leucemias e as agranulocitoses, o diagnóstico de modo geral não oferece grande dificuldade, o mesmo não se pode dizer da linfadenose benigna, a chamada mononucleose infecciosa, cujo característico hemático principal é a linfo-monocitose. Ora, como já vimos, não só a linfocitose, como a monocitose, como a associação das duas, pode aparecer em anginas comuns, ou no curso de certas infecções gerais. O quadro n. 5 dá uma idéia das alterações do sangue periférico verificadas nas enfermidades mais frequentes, servindo de auxiliar para o diagnóstico.

QUADRO N.º 5

No reconhecimento da linfadenose benigna é de grande auxílio a prova da aglutinação das hemácias de Hanganatziu e Deischer. O soro humano inativo a 58° aglutina normalmente, na proporção de 1:8, uma suspensão de hemácias de carneiro no soluto aquoso de clorêto de sódio a 9%. Em todas as hemopatias, nas várias anginas, na linfogranulomatose maligna, nas adenopatias em geral, esta proporção permanece invariável. No entanto, na linfadenose benigna, ela se eleva a 1:64, chegando até a 1:4096. É o que se conhece hoje, em clínica, pelo nome de prova de Paul e Bunnel, explicando-se a reação pela existência no sangue periférico dos doentes de linfadenose benigna de anticorpos heterófilos. "A reação francamente positiva é garantia pràticamente absoluta de que o paciente está sofrendo de mononucleose infecciosa" (Kracke).

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Se conclusões podem ser tiradas dêste longo estudo, três sobrelevam quaisquer outras:
1.ª - Não há absolutamente manifestações de carater específico localizadas na garganta, em qualquer tipo de hernopatia, não se podendo, pois, falar, a rigor, em angina ou amigdalite hemopática.

2.ª - As amigdalites, faringites ou anginas, pelo seu decurso ou por sua associação a grande depressão somática, podem levar o clínico à suposição de hemopatia, a ser verificada pelo hematologista.

3.ª - As reações inflamatórias, que as hemopatias possam vir a determinar na garganta, são manifestações secundárias, não raro terminais, de males de natureza pouco precisa, em que o fator exaustão do aparelho defensivo hematopoiético está combinado a infecção secundária.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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