ISSN 1806-9312  
Sexta, 26 de Abril de 2024
Listagem dos arquivos selecionados para impressão:
Imprimir:
1353 - Vol. 2 / Edição 6 / Período: Novembro - Dezembro de 1934
Seção: Várias Páginas: 575 a 578
Prof. Dr. Henrique Guédes de Mélo (1857-1934).
Autor(es):
-

Com a morte do Dr. Henrique Guédes de Mélo, ocorrida na Capital Federal no dia 8 de Novembro ultimo, a oto-rino-laringología e oftalmología nacionais perdem um dos seus mais antigos e dedicados representantes.

Na sessão de 1 7 de Novembro deste, a Secção de Oto-rino-laringología da Associação Paulista de Medicina prestou significativa homenagem á sua memoria, tendo feito o necrologio do ilustre mestre, o Dr. Gabriel Porto, que proferiu a seguinte oração:

Snr. Presidente

Meus caros colegas.

Com desvanecimento aceitamos a honrosa incumbência do nosso ilustre Presidente e prezado amigo, de proferir, na sessão de hoje, algumas palavras em homenagem ao erudito Mestre - Henrique Guédes de Mélo, recentemente falecido na Capital do País. Agimos assim, cedendo ao nosso primeiro impulso, inspirados por sentimento mixto de simpatia e admiração que sempre nos despertaram o saber e as virtudes do varão ilustre, que a morte acaba de nos roubar. Foi o destino, que nos primeiros anos de nossa vida profissional nos aproximou de Guédes de Mélo, permittindo que continuassemos a cultivar a amizade que lhe dedicava nosso saudoso Pai. Dele, guardamos a impressão de que todos seus atos eram orientados por uma infinita bondade e um profundo saber; as palavras por ele proferidas e o carinho com que tratou um jovem apenas saído dos bancos academicos, nunca serão por nós esquecidos.

Ao meditar, entretanto, na grande responsabilidade que nos pesava sôbre os ombros, de, em nome da ilustrada secção de Oto-laringologia da Associação Paulista de Medicina, homenagear a tão alto expoente da classe, e reconhecendo além disto a precariedade de nossos dotes oratorios, tivemos impeto de recuar, entregando este encargo a qualquer um
de vós que, possuidor de melhores dotes literarios e menos bisonho do que nós na arte de falar, serieis capaz de burilar uma pagina biográfica digna daquele a quem rendemos hoje nosso preito de saudade. Cedendo, porém ao nosso primeiro impulso e ao desejo de obedecermos a nosso digno presidente cujo pedido foi para nós uma ordem, aqui estamos a cumprir um dever, iludidos talvês, que a voz do coração possa conferir eloquência a quem nunca a possuiu. Perdoem-nos, prezados colegas, a nossa audacia.

Henrique Guédes de Mello nasceu em Recife em 6 de Abril de 1857 e doutorou-se pela Faculdade de Medicina da Baía em 1879. Clinicou em Itapíra, no Estado de São Paulo, de 1880 a 1882. Nesse ano fez sua primeira viagem de estudos á Europa. De volta ao Brasil, estabeleceu-se no Rio de Janeiro onde iniciou sua atividade profissional dedicando-se á oftalmo e á oto-laringologia. Durante toda sua existência foi um incondicional amigo dos doentes e dos livros. Médico abnegado, vivia para seus clientes, sem se preoccupar com a remuneração de seus trabalhos; dedicava-se do mesmo modo ao indigente e ao rico. Conta-nos Porto-Carreiro, que, certa vez, ha vinte anos levaram-lhe uma doente gratuita, glaucomatosa, caso inteiramente perdido quoad valetudinem; era uma senhora nervosa, aflita, que desesperava da nefasta cegueira.

Leve colírio para corrigir a irritação da mucosa foi a receita de Guedes de Mello; e acalmou a doente, dizendo que o remedio havia de pô-la bôa. Isto foi ha vinte anos; a doente volta-lhe ainda hoje periodicamente, ao consultorio; e a cada visita, sempre gratuita, o suave medico lhe infunde novas esperanças; a cura é lenta, muito lenta, mesmo; mas virá, no entanto... E a pobre creatura mantem as suas esperanças no simples colírio e na palavra bondosa do doutor.

Tão longa sugestão só fora possível da parte de um coração repleto de bondade, como o do velho mestre. A piedósa mentira tomaria aspecto de embuste grosseiro, se acaso provinda de uma alma menos bem formada. Não a sustentaria pacientemente vintes anos, sem interesse imediato, quem não conhecesse nem cultivasse o prazer de ver os outros felizes... ou menos desgraçados".

É Anatole France que nos diz o medico tem lojas de mentiras. Sim, de abençoadas mentiras acrescenta judiciosamente Miguel Couto.

Possuia Guédes de Mélo uma modestia encantadora e era um cultor vestido nas roupagens do mais puro vernáculo ás sociedades cientificas, a apaixonado da ética medica. Tudo que observava nos doentes com sua paciencia beneditina e sua privilegiada inteligencia de pesquisador trazia que dedicou grande parte de sua afanosa existência.

Foi socio fundador da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, seu presidente efetivo quatro vezes e prestou-lhe tão relevantes serviços que lhe conferiram o titulo de Presidente Honorario; distinção conquistada em tempos idos por Catta Preta e Hilario de Gouvea e nos dias de hoje por Osvaldo de Oliveira.

A Academia Nacional de Medicina dedicou tambem um especial carinho; eleito membro titular em 1897 ocupou a presidencia da secção de cirurgia especializada durante treze anos, cargo que exerceu com raro brilho até os ultimos dias de sua vida. Em 1928, ao festejar seu jubileu profissional, recebeu significativa homenagem organizada pela Academia Nacional de Medicina e apoiada por todas as Associações cientificas do Rio de Janeiro.

Era ainda Presidente Honorario da Sociedade Brasileira de Oftalmologia, da Associação Medica do Instituto Penido Burnier e da extinta Sociedade Brasileira de Oftalmologia e Oto-rino-laringologia; membro correspondente da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Curitiba e da Societé Française d'Ophtalmologie.

Foi chefe e fundador das clinicas oftalmologicas do Hospital Nacional de Alienados, do Hospital dos Lazaros, do Hospital das crianças José Carlos Rodrigues, da Policlínica de Botafogo e do Hospital Central da Marinha. Como se vê, foi Guédes de Mélo o fundador dos principais serviços de oftalmologia do Rio de Janeiro.

Sua bagagem cientifica é das mais preciosas; deixa nada menos de uma centena de publicações sobre oftalmologia e oto-rino-laringologia, todas do mais alto valor cientifico. Não caberia aqui, caros colegas, nas despretenciosas palavras que vos dirigimos a analise minuciosa de seus trabalhos. Limitar-nos-emos a citar as principais comunicações referentes á nossa oto-laringologia.

Localizações extra-amigdalianas da angina de Vincent"; "Cinco casos de angina de Ludwig, terminados pela cura"; "Paralisia labio-glosso-laringéa"; "Diplegia facial"; "Corpos estranhos da glote"; "Fistulas mastoidéas"; "Polipo nasal de extraordinarias dimensões, operação e cura". Foram alguns de seus interessantes casos comunicados.

Com Azevedo Lima fez um estudo classico sobre "Lesões nasais e auriculares da lepra".

Coube-lhe como especialista a prioridade das intervenções na mastoide, no que foi auxiliado pelo Prof. J. Marinho que deste assunto fez sua tese inaugural. Seus escritos sobre Rinolitos, Angina de Ludwig e Rinorragias são paginas que engrandecem a literatura médica do País.

Foi ainda quem primeiro aplicou entre nós a esofagoscopia, iniciando a técnica em colaboração com o saudoso Alvaro Ramos; escreveu sobre o assunto interessante monografia.

"Aneurisma da carotida interna ao nível do seio cavernoso", minucioso estudo sobre um caso que observou é ao nosso ver a obra prima de suas publicações médicas.

Guédes de Mélo foi um grande animador dos Congressos Médicos Nacionais, tendo sido presidente efetivo do 4° e honorario do 5°, ambos realizados no Rio de Janeiro.

Sustentou varias polemicas cientificas, mas nunca sua palavra descambou para o ataque pessoal, manteve-se sempre no terreno cientifico. Memoravel foi a polemica que sustentou com Vitor de Brito sobre a questão da evisceração e da enucleação na panoftalmite.

Em 1926 defendeu na Academia Nacional de Medicina a operabilidade das amigdalas palatinas em brilhante conferencia em que revelou, ao par de belissima erudição, logica e clareza na argumentação. E, em 1929, no Congresso realizado por ocasião do centenario da Academia de Medicina, presenciamos Guédes de Mélo com sua saúde já alquebrada, combater com vigor juvenil as novas idéas, então apresentadas sobre a etiologia do tracôma. Neste congresso fechou com chave de ouro suas atividades cientificas.

Entretanto, caros colegas, a melhor obra de Guédes de Mello foi a escola que creou. Foi ele o Mestre de Abreu Fialho, João Marinho, Penido Burnier, Renato Machado, Edilberto de Campos e de tantos outros a caminho das culminancias da profissão.

Poliglota e poligrafo, manejava com perfeição nada menos de seis linguas, entre elas o latim e o grego. Com este arcabouço poude estudar a fundo o nosso vernaculo tornando-se autoridade em questões de linguagem médica, sobre as quais publicou varios trabalhos.

Amava a musica, a filosofia e a literatura. Muito vos teria ainda dizer, meus caros colegas, sobre o temperamento artistico de Guédes de Mélo, si para tanto não nos faltassem o engenho e arte.

J. Marinho, nosso querido Mestre e amigo a quem mais uma vez nesta Casa, rendemos nossas homenagens, costuma-nos dizer em seu alto senso filosofico, que na velhice a felicidade só pode ser encontrada entre os livros, longe dos prazeres vãos e do mundo; e
J. Marinho vive profundamente este pensamento. Antes que a velhice lhe batesse ás portas enclausurou-se em sua bibliotéca e dela só sae para expôr seus judiciosos pensamentos.

Guédes de Mélo pensava do mesmo modo. Na ultima quadra de sua vida o destino foi-lhe cruel, a morte roubou-lhe os entes mais queridos, mas naquele recanto tranquilo e sombrio de sua casa, na bibliotéca, encontrou sempre a felicidade. E, entre os livros e o piano, onde nas sinfonias de Beethoven e nas baladas de Chopin retemperava sua alma sofredora, decorreram seus ultimos anos de existencia. E nesse ambiente foram escritos "Os comentarios e tradução do 25° Canto do Inferno de Dante", trabalho galardoado pela Academia Brasileira de Letras com o premio de erudição e a Fabula onde, no dizer de Augusto Linhares, encontra-se, engastadando as joias de todas as literaturas, não a ganga impura do linguajar comum, senão sim o ouro velho, o ouro bom da mais lidima linguagem classica portuguêsa.

Meus caros colegas, eu vos peço, de pé, um minuto de silencio em homenagem a Henrique Guédes de Mélo que em vida traçou um paradigma para as gerações atuais.

A "Revista Oto-Laringologica de S. Paulo", associando-se ás manifestações de pesar prestadas ao ilustre morto, apresenta ao Dr. Guédes de Mélo Filho, seu distincto colaborador, sentidas condôlencias.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


Imprimir:
Todos os direitos reservados 1933 / 2024 © Revista Brasileira de Otorrinolaringologia