ISSN 1806-9312  
Quarta, 27 de Novembro de 2024
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1328 - Vol. 2 / Edição 4 / Período: Julho - Agosto de 1934
Seção: Notas Clínicas Páginas: 305 a 307
Corpo estranho do nariz (1)
Autor(es):
DR. FRANCISCO HARTUNG (2)

Não é de maior interesse o capitulo de corpos estranhos do nariz. Entretanto, é possivel nele, ás vezes, encontrar algum ponto digno de meditação.

Em geral, estes corpos estranhos pertencem ao grupo dos chamados urgentes; de facto, ha urgencia, nunca para as condições da creança, mas para o sistema nervoso dos pais ou
para evitar que algum dos circunstantes ou um clinico amigo seja forçado pela «entourage» do pequeno travesso a impelir. o botão, milho ou conta de colar muito além de onde a creança,
era capaz de fazê-lo. E' esta a situação em 99 % dos casos, que não merecem maior comentario. Na pequena percentagem de excepções pretendo incluir a observação que se segue.

A. C, moça solteira de 18 anos de edade, residente nesta capital, apresenta-se a minha consulta com esta anamnése. De cinco anos a esta parte vem sentindo máo cheiro no nariz, facto confirmado pela irmã que a acompanha e por outras pessôas da familia. Relata mais que naquela época, um clinico de confiança emitiu a opinião, que se tratava de um caso de ozena, receitando umas injecções e um medicamento local. Embora sem grande melhoria, a custa de muita higiene, moça de apurado trato que é, foi suportando esta situação, ora melhor, ora peior, mais ou menos conformada com o máo prognostico sobre os seus padecimentos.

Acontece porém que, de um ano e méio para cá o mão cheiro aumentou extraordinariamente de intensidade, a-pesar do tratamento diario, de nada mais valendo as lavagens e injecções. Evitava toda a sorte de convivio social, como bailes e teatros, no receio de denunciar a sua triste situação. Para fugir á sua pungente realidade nunca mais quis procurar os recursos de qualquer outro profissional, porque se apavorava com a provavel confirmação da entidade morbida de que pensava ser portadora. Foi entretanto a isto forçada a instancias do seu dentista, que se incomodava e se condoia com a sua situação.

Aparece á consulta com a anamnése descrita; é possuida de grande nervosismo, que se revela aos menores gestos. Queixa-se mais de intensas dóres de cabeça com muita frequencia. Chama a atenção para o máo cheiro que tanto a atormenta, mas é de notar que não se refere a crostas; apenas acusa alguma hemorragia, de vez em quando.

O exame nada revela de interesse na conformação externa do nariz. O contrario dá-se com a rinoscopía, porquanto imediatamente se me depara na fossa nasal esquerda, um grande corpo que a obstrue, situado em sua parte mediana, entre o septo e corneto inferior correspondente. Este corpo é movel ao toque do estilete, fazendo sangrar ligeiramente a mucosa circunvisinha, a qual é bastante irritada. O quadro dá uma primeira impressão de um grande sequestro luetico, a-pesar de não se perceber intenso máo cheiro como costuma acontecer na sifilis. Apresenta o corpo estranho uma côr bastante escura; é muito duro ao toque metalico e a sua, situação não permite perceber claramente os seus limites.

Apesar do relutar da paciente, depois de bem anestesiada e adrenalisada a fossa, foi o corpo estranho retirado sem maior dificuldade, provocando apenas ligeira hemorragia; foi verificada então, depois de desimpedida a fossa, a completa integridade ossea tanto dos cornetos como do septo; a mucosa que tinha contacto com o corpo estranho mostrava-se irritada e naturalmente sangrando um pouco. Curativo com nitrato de prata a 3 %. Nebulisações antisepticas para fazer em casa.

A 8 do corrente, 23 dias depois do relato, tornei a vêr esta moça em ótimas condições: tanto o mão cheiro como a dôr de cabeça desapareceram radicalmente como era de esperar. A fossa nasal atingida encontrava-se perfeitamente normalisada.

O exame do rinolito revela, em parte central, um grande nucleo central de côr preta, extremamente duro ao qual se superpoz uma grande camada de calcificação.

Tive a impressão de que este nucleo tivesse uma origem exogena e por isso tratei de apurar a anamnese.

Relata-me a moça ter uma vaga reminiscencia de que na meninice introduzira em seu nariz, um grão de feijão; por outro lado, uma pessôa da familia conta-me no dia seguinte, que ha quem possa afirmar ser o corpo introduzido em vez de feijão uma conta de colar.
Isto será oportunamente verificado, depois de visto o rinolito pelos presentes.

Como diflue do seu relato, este caso não se presta a muita divagação de ordem teorica ou pratica, porquanto os seus comemorativos não constituem uma eventualidade comum na vida diaria.

Não se lhe póde negar, entretanto, certa originalidade, merecendo um comentario.

Ninguem vae discutir si uma alta cultura medica ou si uma notoria intuição possam permitir a um clinico fazer incursões em qualquer direcção no campo da patologia; mas, si um espe-
cialista, com os elementos de semiotica dos quais dispõe, póde ás vezes mudar radicalmente de opinião entre uma anamnese e uma rinoscopia, o que pensar da responsabilidade daquele, ao firmar um diagnostico acabrunhador como é o da rinite atrofica, sem haver uma certeza conscienciosa do que vae dizer?

Qual seria o futuro desta jovem, sempre a fugir de uma opinião especialisada, no justificado receio de vêr confirmado o nebuloso prognostico de sua enfermidade e sempre a evitar o convivio de uma sociedade a que tinha todo o direito? Não nos deixemos levar por questões filosoficas, que aqui não têm lugar, mesmo porque estas palavras não constituem censura a quem quer que seja, nem pretendem comentar a conduta clinica de ninguem; apenas assinalamos mais um erro perfeitamente comparavel áqueles que a labuta profissional nos reserva para amanhã.

Entretanto, como já dissemos, o caso merece ser comentado porque ha gente que descrê e muitas vezes com sinceridade, das vantagens da especialisação medica.

Realmente é erro grave levar a especialisação ao exagero; é erro lamentavel nos limitarmos a um recanto qualquer da medicina, perdendo por completo de foco o evoluir da patologia geral.

Não ha duvida, porém, que a reciproca tambem é verdadeira. Todo aquele que milita em medicina ,geral, deve conhecer quais as conquistas de especialisação que a medicina, já consagrou e ter o senso de perceber até que ponto póde ser util ao meio em que vive, de modo a recuar com presteza, cedendo logar a quem de direito, desde que vieram a falir os seus recursos de semiologia e a sua intuição clinica.


(1) - Comunicação apresentada á Secção de Oto-rino-laringologia da Associação Paulista de Medicina em 17 de Maio de 1934.
(2) Oto-rino-laringologista da Santa Casa de S. Paulo
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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