ISSN 1806-9312  
Sábado, 23 de Novembro de 2024
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1247 - Vol. 7 / Edição 3 / Período: Maio - Junho de 1939
Seção: Notas Clínicas Páginas: 283 a 286
GLOMERULONEFRITE. AMIGDALECTOMIA. CURA
Autor(es):
DR. FRANCISCO HARTUNG

S. Paulo

Não comporta a observação que se segue divagações de ordem teorica, nem dá interesse a revêr literatura do assunto, porque, nefrite, como complicação de angina, é um caso passado em julgado. Poderia ser mesmo uma desatenção para com os colegas, convida-los a sondar de novo este terreno, tido como dos mais firmes em patologia. Não vou pois repisa-lo, pois que a minha intenção é outra.

A observação, em si, resume-se em um caso de glomerulonefrite, de causa focal dependendo da amigdala, curado pela extirpação desta ultima. Não pôde pois ser mais simples e banal. Entretanto, a indicação operatoria revestiu-se de circunstancias tais que me proporciona um comentario.

Não é a primeira vez que ponho em foco a velha questão da indicação operatoria para a amigdalectomia. Em tempos passados, tive já oportunidade de abordar este assunto, estudando este problema quando nele entra o fator tuberculose, demonstrando ser dificil armar a equação, sobretudo quando não se trata da forma evolutiva da molestia. Não vou rememorar tudo o que disse, mas em comentario final me manifestei contra a operação no tuberculoso, mesmo em fase latente, porque o beneficio que se possa prestar a este ou áquele doente não está em proporções com o desastre que se segue, ás vezes, á amigdalectomia de que nós todos temos conhecimento, e, com o prejuizo que causamos á coletividade, que dela tanto necessita. Não interessa a argumentação de que não se possa estabelecer uma relação de causa e efeito entre a extirpação da amigdala e a disseminação bacilar, mesmo porque não é uma consequencia exclusiva da operação amigdaliana; qualquer cirurgia no tuberculoso pôde ser acidentada. Mas, infelizmente, devido á popularidade das operações de garganta, ficam as amigdalectomias muito mais sujeitas ao comentario leigo.

E a nós, com centenas ou milhares de casos operados, sempre entusiasmados com os seus benefícios, sabendo quanto a operação de amigdala é necessaria á humanidade, cabe defender e vulgarisar a sua base cientifica.

Haverá quem refute imediatamente já ter tido ocasião de operar tuberculosos, de condições especiais de resistencia sem as consequencias desastradas a que me refiro; ou quem argumente com a existencia de casos cujas más condições amigdalianas tornem difíceis a deglutição em doente que tem necessidade de superalimentar-se. Na realidade, é doloroso propor a entrega destes doentes á sua propria sorte. Mas, por acaso resolvemos com rapidez as disfagias de epiglote e das aritenoides, e que são em percentagem tão mais elevada? A anestesia do laringe é uma solução satisfatoria? Não temos de nos conformar com os tratamentos medicamentosos, a espera de que as condições pulmonares se reflitam favoravelmente sobre as vias aereas superiores?

Haverá tambem quem me negue conhecimentos de tisiogenese, para pretender selecionar os doentes operaveis. Só a premissa é verdadeira, por que não seleciono os casos para a cirurgia. As minhas reservas dizem respeito sómente aos adultos, que são clinicamente ou radiologicamente tuberculosos, porque é neste numero que conto as minhas observações. Quanto ás creanças, nunca fiz a menor restrição e jamais tive o menor arrependimento. Portmann propõe o Pirquet ou Mantoux sistematicamente, mas nós sabemos que é uma conduta impraticavel. E si Portmann toma uma tal atitude, razões de sobra ha para isso. O caso que vou relatar é bastante eloquente neste sentido. Operei uma creança cuja indicação não poderia ser mais bem fundamentada, sob condições precarissimas, por ter levado dias a vencer a resistencia da familia e do seu pediatra, cuja cultura especialisada aliás nada deixava a desejar. São os frutos que colhemos das operações erroneamente indicadas. Sou convencido de que afastando os casos de indicação duvidosa, teremos outro prestigio e força moral todas as vezes que a indicação se impuzer.

OBSERVAÇÃO: - C. M. S., 6 anos de edade, menino branco, sem maior interesse em seus precedentes clínicos. Nascido em Paris, filho de paes brasileiros, sempre foi uma creança forte, com ótima aparencia quando veio da Europa. A 20 de julho do ano passado, tem uma gripe, ligeira angina, um pouco de bronquite, tosse e febre. A 24, nota a mãe, que o pequeno está um pouco inchado, levando-o imediatamente a um pediatra. O exame de urina revela 9 gramas de albumina, varos cilindros granulosos e hialinos, alguns leucocitos e 3 a 4 hematias em cada campo. A 1 de Agosto, a densidade caíra para 1020 e a albumina para 2 gramas; não foram encontrados cilindros, os leucocitos existentes eram em pequeno numero, mas em compensação, o numero de hematias aumentara extraordinariamente. A 6 de Agosto, 5 dias mais tarde, portanto, a situação agravase. A densidade continua bôa, 1017, a albumina a abaixar, 0,50; mas, reaparecem os cilindros hematicos, granulosos e hialinos, encontra-se pús, e a quantidade de globulos vermelhos é de tal modo abundante, que a urina tem côr de caldo de carne, na impressão do analista. Tambem dosa-se a uréa no sangue: 0,49, praticamente meia grama, teor muito exagerado para uma creança que está a leite e chá ha duas semanas. Neste dia, 6 de Agosto, 16." de molestia, sou chamado para me manifestar sobre o estado das amigdalas. O aspeto macroscopico nada tinha de significativo no momento. Não obstante esta impressão, fui de opinião de operar o pequeno com toda a brevidade, desde que se afastassem outros elementos etiologicos. Os dentes tinham bom aspeto, e um dos sinus maxilares, era ligeiramente velado; o exame rinoscopico completamente negativo, sem a menor sinal de congestão ou derrame nas fossas nasais. Mesmo com reservas sobre as verdadeiras condições do seio, manifestei-me formalmente pela operação imediata da amigdala. Nem poderia ser outra a minha atitude, deante do reaparecimento dos cilindros, da enorme descarga de hematias, pús presente na urina e alta dose de uréa no sangue, não obstante o rigor da dieta. Percebo porém, a resistencia conservadora da familia e do pediatra, opinião aliás muito respeitavel, mas a minha indicação operatoria foi definitiva. A 7 peiora mais a situação: o menino queixa-se de muita dôr de cabeça e de vista muito escura; tem temperatura baixa. Como estivesse em hipertensão, faz-lhe o clinico uma sangria de 50 cc. No dia 8 de Agosto, a densidade da urina é baixa, 1006; a côr avermelhada é menos intensa, mas em compensação, a albumina de novo subiu de 0,5 para 1,5 grama. O exame macroscopico continua a revelar os diversos tipos de cilindros, muito pús e 15 a 20 hematias por campo. Uma semana mais tarde, a 15, a densidade voltou para 1020, tornando outra vez a urina ao aspeto de caldo de carne. O exame químico acusa uma grama de albumina, e no sedimento tambem a situação continua má: Muitos cilindros, bastante pús e numerosas hematias. Era ainda a mesma a situação a 20 de Agosto, quando me resolvi a força-la. Apesar do rigor do regimen, do repouso absoluto, a hematuria era intensissima, dando a impressão grosseira de que o pequeno urinava sangue puro; de vez em quando ficava a creança cianosada e dispneica, mesmo sob a ação continua dos cardiotonicos; edema das palpebras e vomitos frequentes; tensão arterial muito alta; 130 de pulso; o pequeno continua a queixar-se de dôres de cabeça e vista escura, dando á mãe a triste impressão de que o seu filho não mais a enxerga. Que a ninguem fique a impressão de as côres deste quadro estejam exagerada e propositadamente carregada. A realidade foi de fato esta e não tiro o colorido sombrio porque amanhã podemos nos defrontar identica situação. Realmente a situação era grave, e a minha indicação operatoria já datava de doze dias. Apesar de tudo, doente hipertenso, edemaciado, muito acelerado, meia grama de urea no sangue não obstante a dieta, acometido de dispnéa e cianose, sustentei o meu ponto de vista, apelar para a cirurgia como unica solução para o caso. Como continuassem as reservas do clinico, que torno a afirmar eram das mais respeitaveis, alvitou-se ouvir um tertius, o qual sem fugir á gravidade da situação aceitou a extirpação das amigdalas como uma formula desesperada. Uma vez preparado o doente, com medicações tonicardiacas, operei-o a 22 de Agosto, um mez e dois dias depois do aparecimento do edema. Anestesia nenhuma, dadas as suas condições. O pequeno resentiu-se bastante com o ato cirurgico tornando-se muito mais combalido e assaltado por intensa dispnea. Convenientemente assistido pelo clinico, conseguiu refazer-se do traumatismo, mas os tres primeiros dias ainda foram de muita anciedade; ás vezes cianotico, pulso muito elevado e urina insignificante em quantidade e sanguinea; no terceiro dia pareciam ir-se todas as esperanças; o pulso irregular ameaçava colapso. Só no quarto dia post-operatorio, começou a consolidar-se a situação. O pulso tendeu a baixar-se, desapareceu o estado ancioso da creança, reabsorvendo-se o edema que ainda havia, a urina foi aos poucos se tornando mais abundante e menos carregada na sua côr. A primeira analise post-operatoria tem data de 2 de Setembro, 11 dias depois do ato cirurgico. Tem ainda a urina aspeto turvo, porém não é mais sanguinolenta; apresenta traços de albumina; encontram-se raros cilindros hialinos e granulosos, muitos leucocitos e numerosas hematias. Basta comparar este com o ultimo exame preoperatorio, que acusava 1 grama de albumina e côr de caldo de carne para se aquilatar da diferença de situação. Depois houve um incidente, aparecendo catapora no pequeno doentinho; aumentou, na urina, outra vez, a quantidade de albumina, havendo mesmo um pouco de pús, mas os exames sucessivos então feitos foram demonstrando paulatinamente o resultado que tanto se desejava. Em 18 de Outubro, menos de 2 mezes depois da operação, encontram-se apenas traços de albumina, raros cilindros hialinos e nenhum pús.

Desta data em deante o pequeno foi se refazendo com rapidez, a medida que voltou definitivamente á sua alimentação ordinaria.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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