ISSN 1806-9312  
Sábado, 23 de Novembro de 2024
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1240 - Vol. 7 / Edição 3 / Período: Maio - Junho de 1939
Seção: Trabalhos Originais Páginas: 199 a 219
"SEPSE OTOGENICA" - parte 1
Autor(es):
DR. RAUL DAVID DE SANSON*

ALGUMAS PALAVRAS

Escolhido, por unanimidade, pela Sociedade de Oto-rinolaringologia do Rio de Janeiro, para relator do Têma carioca do primeiro congresso que se realizou em outubro de 1938, sob o patrocinio daquela Sociedade, na cidade do Rio de janeiro, aquiescemos, com grande prazer, ao convite e assumimos o encargo com a condição expressa, aceita por todos os membros presentes ,e endossada por votação unânime da Sociedade, de nos secundarem com a sua colaboração individual para tentar coordenar, fóra da literatura de além mar, o conceito brasileiro da "sepse otogenica", de especial interesse, por ser de todos sabido e conhecido que as complicações da otite média supurada têm, habitualmente, entre nós, carater muito mais benigno que nos Estados Unidos da America do Norte e na Europa.

Para semelhante consecução dirigimo-nos, por carta-circular, logo após a nossa investidura no cargo de relator, à grande maioria dos especialistas de todos os estados do Brasil e a todos os membros da Sociedade, não presentes à sessão, na qual fomos solicitados para relator. Aproveitamos para pedir que nos seja perdoada a falta involuntaria, se por acaso o nome de algum foi omitido e, ao mesmo tempo, testemunhar o nosso profundo agradecimento aos prezados colegas que tiveram a gentileza de acudir ao nosso apelo. Foram cinco de S. Paulo, dois do Rio, um de Minas, dois do Ceará e um do Rio Grande do Sul. Como entre as onze respostas recebidas, apenas tres traziam uma contribuição individual, vimo-nos na contigencia de mudar a orientação do trabalho, que vai, portanto, publicado apenas com ponto de vista pessoal.

Aos três prezados colegas, que mandaram a sua valiosa contribuição para um trabalho de colaboração, renovamos os nossos agradecimentos e pedimos permissão para silenciar os nomes.

A divergencia frequente que o assunto cria entre clinicos, especialmente entre pediatras e otologistas, pede que se estabeleça, já não dizemos uma doutrina, porém, um ponto de vista clinico e terapeutico que afaste controversias em beneficio do doente.

É possível que se possa dest'arte, dentro de um criterio judicioso, resolver com mais acerto, sobre a abstenção ou a oportunidade de uma intervenção.

Atualmente, o conceito da sepse otogenica se insurge contra a orientação de um tratamento que espere pela sintomatologia classica da tromboflebite infecciosa. Compete à argucia do especialista interceptar-lhe a marcha. O criterio mais generalizado de catalogar a septico-pioemia no capitulo da tromboflebite, nem sempre justifica a expectativa armada e, cumpre assinalar, que muitos autores que não aceitam a septico-pioemia sem trombose, admitem, quando não se comprova a trombose do seio, a presença de um trombo parietal ou a existencia de uma trombose profunda de dificil alcance.

A impossibilidade de orientar o assunto, com a finalidade desejada, deixou-nos inteira liberdade, diante do compromisso assumido perante a Sociedade de Oto-rino-laringologia do Rio de janeiro. O silencio, em resposta ao apelo dirigido aos membros da Sociedade de Oto-rino-laringologia do Rio de Janeiro, mostrou bem o desinteresse para uma colaboração em conjunto e a condição expressa, por nós exigida, para assumir o encargo, desligaram-nos inteiramente do compromisso formulado com tais restrições. Este trabalho sai, pois, sem qualquer pretensão de doutrina e se basea na observação coligida em 26 casos da nossa clinica, dos quais alguns já conhecidos em trabalho anteriormente publicado. (1)

A analise das observações mostra bem o criterio seguido pelo especialista e tambem quanto pode o entendimento bem compreendido quando todos os esforços convergem em beneficio da doente.


A presença de um fóco de supuração, na proximidade de uma veia, encaixada em tecido osseo, como sucede com o seio lateral, justifica, em certas complicações das afecções do ouvido médio, a descarga de toxinas e germens na circulação, estabelecendo bacteriemia septicemia, pioemia, toxemia.

Nas complicações das otites médias supuradas, especialmente nas fôrmas cronicas, a visinhança do seio sigmoideu é a causa mais frequente da sepse otogenica. A porção sinusal se infecta na quasi totalidade dos casos, obedecendo a lei de Körner.

Através do seio sigmoideu, a infecção alcança o bulbo da jugular, mais frequentemente o seio transverso ou petreo-escamoso, podendo se estender ao seio cavernoso através dos seios petreos do craneo, ao torcular e, excepcionalmente, ao seio do lado oposto (Henrici e Kikuchi). Pelo bulbo a infecção estende-se à jugular interna os sintomas exteriores são nesse caso muito patentes), às vezes, à veia cava superior e pode terminar na auricula direita. Antes de alcançar a luz do seio venoso, as lesões locais se caracterizam, sucessivamente, por peri-flebite supurada ou fungosa e, num estado mais adiantado, por endo-flebite, parietal ou obliterante. Com muito acerto diz Chatellier "a trombose do seio lateral é o caso mais tipico de flebite provocada, de fóra para dentro, por progressão centripeta de uma infecção vizinha". A opinião de Beck, baseada em pesquizas anatomopatologicas, confirma o conceito da alteração. da parede do vaso (endoflebite) e pressupõe que na trombo-flebite otogenica trata-se mais de um processo inflamatório, exsudativo, plastico, do que, propriamente, uma verdadeira trombose.

Naquele percurso a trombose pode afetar a entrada de todos os vasos aferentes e, em certos processos cronicos, de longa duração, não constitue exceção encontrar-se, à palpação, na região cervical, a jugular endurecida e resistente. Assim sucedeu num dos nossos doentes: R. T. menino de 9 anos de idade, residente no Rio (registro particular, N.º 20.132 - 5 de setembro 1932). Em setembro de 1933 teve otite média catarral aguda do O. E., no decurso de uma gripe, que sarou com aplicações quentes. Voltou à consulta em 11 de maio de 1936, acometido de otite média supurada dupla, mais acentuada do lado direito, que se iniciou há cerca de um mês e meio. Durante o curso da molestia a temperatura oscilou, varios dias, entre 39º,5 e 40º, com ausência de outro qualquer sintoma de tromboflebite do seio lateral. Fez uso de vacinas anti-piogenicas, sendo que a primeira serie baixou a temperatura e a segunda parece ter provocado uma reação que se manteve por alguns dias em 39º,5 e oscilando depois entre 37º e 37º,5. Quando baixou a temperatura, apareceu uma discreta infiltração para dentro da ponta da mastoide, do lado D., que julgámos, a principio, correr por conta de reação ganglionar.

Pela otoscopia, ligeira reação, com perfuração insignificante no quadrante postero-inferior, de ambos os timpanos e secreção pouco abundante em ambos os condutos auditivos externos. Como a pesquiza cuidadosa da sensibilidade da mastoide direita revelasse reação mais acentuada na altura da emissaria mastoidéa, com ausência absoluta de edema, e os movimentos de rotação da cabeça para o lado oposto se fizessem com dificuldade, pedimos uma radiografia das mastoides.

A radiografia (Dr. Sicupira, N.º 30.067, 11-5-1936) revelou: "Destruição das celulas da mastoide do lado D.".

Aconselhámos intervir e a operação foi combinada para o dia 13 de maio.

Operado na Fundação Gaffrée e Guinle, auxiliou o Dr. J. Kós, e da narcose com cloretila se encarregou o Dr. Rubem Amarante. Cortical muito porosa, sangrando facilmente. Chamou a atenção o afastamento da sutura temporo-mastoidéa. A remoção da cortical, na altura do antro, deu saída a uma onda de pús, de consistência viscosa. O material colhido mandado para exame (Laboratorio do Dr. E. M.). Toda mastoide se achava comprometida. A punção do seio foi negativa e a incisão mostrou que ele se achava trombosado. Todo tecido doente foi removido, com exceção das extremidades do trombo, que foram respeitadas. Abaixo do seio lateral a meninge foi largamente exposta, após a remoção da ponta, apresentando sinais evidentes de paquimeningite. Terminámos a intervenção com a colocação de um dreno embebido com substância gordurosa e antiséptica. Recomendámos cuidadosa observação da temperatura.

15-5-1936 - Passou muito bem. Decimos de elevação da temperatura. Voltou para casa.

26-5-1936 - Tem tido acessos febris, fugazes, 39º,5. Estado geral muito bom. Reação da região parotidiana. Vacina. Compressas quentes.

31-7-1936 - O post operatório teve ainda pequenos incidentes com a infiltração da região cervical superior. Nesta data o paciente teve alta, completamente curado. Cicatrização perfeita.

Como sequela de tromboflebite permaneceu, no terço superior da região carotidiana, um cordão fibroso, paralelo ao bordo anterior do esterno-cleido mastoideu, que pressupõe a extensão da tromboflebite ao terço superior da jugular interna.

Na intervenção o seio venoso apresentou-se trombosado e supurado. Não lhe tocámos nas extremidades e tão pouco praticámos a ligadura da jugular. Drenámos o fóco e permanecemos na espectativa para ligar a veia se para tanto nos parecesse indicado.

Apesar do empastamento da região cervical ter sido prolongado e pouco extenso, pudemos acompanhar, pela palpação, a sua transformação num cordão fibroso, na goteira carotidiana. A natureza da lesão, a sua localização e evolução admitem considerar esse cordão como reliquat de um processo inflamatório da veia jugular interna, certamente trombosada, e do tecido conjuntivo de vizinhança.

Quando a inflamação progride e evolue para supuração, os ganglios da vizinhança são envolvidos e a localização na base do crânio permite uma grande expansão que se caracteriza pelo abaulamento na faringe, dôr, às vezes, na deglutição (Kummel) por nevrite do glosso-faringeu e perturbações motoras no território dos três ultimos nervos craneanos (Goldflam-Lubliner). Externamente, na região cervical, o edema da base do craneo é muito discreto.

A grande resistência que as paredes do seio oferecem à infecção é a razão apontada porque esta complicação não é observada em maior escala. Este ponto de vista de Leutert foi confirmado por Haymann com experiências feitas sobre o cão e o macaco. Citam-se observações de mastoidite complicada de abcesso cerebelar, com o seio venoso sem alteração e no entanto envolvido em pús.

A grande divergência das estatisticas permite, no entanto, admitir que um dos principais fatores desta divergência ainda é o pouco conhecimento do assunto pela grande maioria dos otologistas.

Contido o seio por um desdobramento da dura, a reação inflamatória pode não se cingir exclusivamente à veia. Com o espessamento das suas paredes, sintomas de meningite localizada, paquimeningite, podem se manifestar e tambem de leptomeningite si as meninges moles participam da inflamação, com a formação de abcesso encefalico, de preferência cerebelar por obediencia anatomica. Retido o pús entre as meninges e o osso, ou dentro das meninges, teremos o abcesso justa ou intra-meningeu, mais frequente a primeira modalidade nas mastoidites postero-superiores pelo alcance de uma superficie meningéa de facil descolamento, parte integrante da zona de Gerard Marchant. Abcesso cuja sintomatologia é muito discreta, muitas vezes apenas se manifesta por crises dolorosas intermitentes e sintomas graves que podem passar completamente desapercebidos. Estes abcessos são, como bem diz G. Laurens, simples achados cirurgicos. Mouret e Seigneurin dividindo as mastoidites em postero-superior e postero-inferior justificam anatomicamente porque nas fôrmas postero-superior o seio venoso é alcançado na sua porção transversa, no segmento posterior do cotovelo e as meninges do andar cerebral, enquanto que nas fôrmas postero-inferior, a lesão se localiza na porção sigmoide do seio e as complicações meningéas se processam na loja cerebelar.

Entre os nossos casos de tromboflebite, alguns dos quais já publicados (1), estão citadas algumas observações com estes caracteres. São casos que curam quasi sempre com facilidade quando socorridos a tempo, cura que se justifica pela limitação da supuração em zona de grande tolerância.

Si a trombose se fez de fóra para dentro e o trombo foi infectado, dá-se a fusão purulenta, acompanhada de necrose das veias e toda a massa se transforma num verdadeiro abcesso que tambem alcança as extremidades do trombo, fazendo desaparecer todo e qualquer vestigio vascular. Enquanto a infecção não transpuzer esses limites, a cura se fará ainda com relativa facilidade, apezar do quadro sintomatologico ser ruidoso e aparentemente assustador.

Observação: Senhora F. P., 40 anos de idade, casada, moradora no Rio (registro particular n.º 4.996). No dia 30 de dezembro de 1922 fomos chamados pelo Dr. R. para ver a paciente acometida, após forte gripe, de otite média aguda supurada do O. D., acompanhada de ligeira reação da mastoide. Dôr suportavel na região do esterno-cleido-mastoideu, que se apresentava ligeiramente empastada. Estava havia 8 dias com acessos de febre, que oscilavam entre 40º e 41º, precedidos de calefrios e terminavam por sudorese abundante. Nos primeiros dias a supuração foi profusa. Como diminuisse e passados dous dias voltasse a bombear a membrana do timpano, fizemos uma paracentése: Restabelecida a supuração, baixou a temperatura, melhorando o estado geral da doente.

Nova congestão, novo espessamento do timpano e temperatura a 40",5. A elevação da temperatura e a escassez da supuração do ouvido nos levaram a prolongar a incisão da paracentése. Apesar deste recurso cirurgico, a paciente peiorou de tal fôrma - vertigens tão violentas que não permitiam qualquer movimento na cama, vomitas em játo e surdez que nos vimos na contigência de insistir, após 48 horas de observação, na imediata trepanação da apofise mastoide, muito sensivel à pressão. Neste mesmo dia acentuou-se o empastamento da região carotidiana. A nossa indicação deixou a familia indecisa.

No dia 12-1-1923, formulada a ameaça de abandonar a doente, foi aceita a nossa indicação. Removida para a Casa de Saude de S. Sebastião, foi operada às 9 horas da noite.

Anestesia geral pelo eter. Ao descolar o periosteo chamou a atenção abundante hemorragia em superficie. Aos primeiras golpes de escopro, o osso muito friavel, cedeu facilmente e encontrámos uma larga cavidade cheia de pús e, atentando nos reparos anatomicos, constatámos que a mastoide se achava, por assim dizer, fundida e, da massa necrosada e purulenta, fazia parte o seio lateral, muito anterior e superficial. Foi então exposta a dura-mater na região do tegmen timpani e verificado o seu aspecto normal. Antro mastoideu muito pequeno.

Descoberto o seio lateral, numa longa extensão, encontrámos, na vizinhança do joelho inferior, um grande trombo, que foi completamente removido, com auxilio da Bureta, até que o sangue aparecesse nas extremidades da região, trombosada. Várias punções feitas para trás do seio lateral, sobre o cerebelo, por causa das vertigens, foram negativas. Terminámos a intervenção com o tamponamento do seio trombosado. e a colocação de dois drenos de gaze, um para baixo, em direção ao golfo da jugular, e outro para cima, em direção ao "lagar" de Herófilo. Dentro da caixa colocámos um terceiro dreno. Saco de gelo.

13-1-1923 - A doente passou bem a noite; Temperatura 38°,6 e pulso 68.

Estado geral regular,

14-1-1923 - Acentuaram-se as melhoras; temperatura maxima 38º,2. Funções fisiológicas normais. Queixa-se de dôr quando movimenta a cabeça.

Até o dia 28 o estado geral da paciente, de dia para dia, melhorou. Consistiu a medicação em injeções de sôro glicosado e electrargol. A temperatura, que se mantinha havia dias abaixo de 39º, subiu na tarde do dia 28 de janeiro a 39º,5. Pedimos hemocultura, assim como exame bacteriologico da urina. A paciente referira, na sua anamnese, uma pielite. A cicatrização da ferida operatória caminhava normalmente e a secreção no conduto era insignificante. Continuar a fazer uso das injeções de prata coloidal.

2-2-1923 -- Temperatura, à tarde, 37º,5.

5-2-1923 - Doente em ótimas condições.

Hemocultura negativa. Como o exame bacteriologico da urina revelasse a presença de coli-bacilo, foi preparada e administrada uma vacina antipiogena.

Alta, completamente restabelecida, nos ultimos dias de Fevereiro.

Em menos de 24 horas a remoção do fóco mudou radicalmente a situação. Essa modificação, aliás, é a regra, a não ser que as alterações patologicas já tenham ultrapassado as extremidades do trombo e invadido a circulação. Os caracteres então da infecção modificam o quadro da molestia e a sua gravidade fica subordinada à abundancia e raça de germens. Neste período, a brusca elevação de temperatura constitue um precioso elemento de orientação. Nesta etapa, o mecanismo da infecção se aproxima daquele que se realiza de dentro para fóra, intravascular, com a diferença que, nesta ultima fôrma, o trombo é infectado de início, razão pela qual todas as reservas são poucas quanto ao prognostico.

Voltando às lesões limitadas com fusão das paredes vasculares e formação de abcesso, processo de osteo-flebite acompanhada de paquimeningite supurada destrutiva; convém insistir que, se a evolução não fôr interrompida por uma intervenção cirurgica, a contaminação das extremidades do trombo não é obrigatória. Diminue, é certo, o risco da infecção e das metastases, porém cresce o risco de complicações meningéas e encefalicas. A invasão caminha então em profundidade, estende-se ao encefalo com sinais de edema cerebral agudo, circunscrito e hiperemia da piamater, e evolue para complicações ainda mais graves.

A literatura registra certos casos de infecção tão violenta que a defesa organiza fica sem poder reagir. A invasão é de tal forma agressiva que as toxinas não dão tempo ao sangue para se coagular localmente e oferecer resistência à luta contra a trombose. O calefrio inicial e as grandes oscilações termicas dispensam qualquer outro sintoma. A intervenção cirurgica é, geralmente, o unico recurso terapeutico, principalmente se a anamnese fala em passado auricular. E preciso, todavia, lembrar que a tromboflebite do seio lateral pode, aparentemente, se caracterizar com essa mesma sintomatologia. A analise dos sintomas permite, no entanto, constatar que a repercussão sôbre o estado geral é muito mais atenuada na tromboflebite do seio lateral e os acidentes de piemia, mais rapidos e mais graves na flebite da jugular.

Outras vezes, ocurrência rara, o coagulo se organiza à custa de elementos endoteliais, que dão origem a vasos de nova formação, que se encarregarão da nutrição do coagulo e cujo completo desaparecimento pôde deixar, como simples sequela, uma placa cicatricial, endurecida de esclerose.

Si é dificil e raro surpreender a sepse otogenica na sua fase inicial, o contrário póde se observar na septicemia secundaria aos ferimentos cranianos que alcançam a vizinhança dos seios venosos. A lesão exposta permite especular com mais acerto sôbre as perturbações e ditar com mais precisão a conduta do tratamento.

Tivemos o ensejo de semelhante oportunidade no dia 14 de maio de 1938, quando fômos solicitados para esclarecer o caso de um jovem, que sofrêra um ferimento por arma de fogo sôbre a região ocipital direita, na vizinhança do seio lateral. Havia quatro dias que fôra ferido e a familia estava alarmada com os sintomas, todos êles atribuidos a um estado de shock. O paciente se achava prostrado, sonolento, pulso um pouco acima de 50 batimentos por minuto. Temperatura de 38º e decimos, precedida neste dia de calefrios e desde 24 horas cefaléa suportavel. As radiografias nada mostravam dentro da massa encefalica, a região ocipital, porém, crivada de pequenos pedaços de chumbo. Levantado o curativo, notámos um certo empastamento da massa muscular, que se insere na apofise da mastoide, especialmente sôbre o bordo posterior, onde a palpação era sensivel e a pressão um pouco mais forte sôbre a massa muscular desta região, feita de baixo para cima, trouxe algumas gotas de pús.

Com estilete sondámos o ferimento. Pelo atrito tivemos a sensação de osso destruido e, como o estilete penetrasse facilmente, caminhámos apenas alguns milimetros além do osso desnudado, com receio de penetrar na massa encefalica. Diante do empastamento, do pús, da solução de continuidade do osso, da febre, da cefaléa, do pulso lento e do relativo torpor, pedimos novas radiografias, em outras posições (estas ultimas não modificaram o juizo das anteriores) e propusemos intervir imediatamente. Trepanação da região ocipital sôbre o ferimento, realizada às dez e meia horas da noite. Anestesia por infiltração. Incisão de dez centímetros, vertical, sôbre o seio transverso. Ao descobrir o periosteo, constatámos que, de fato, a parede ossea sofrêra solução de continuidade. Dentro do seio venoso, cuja parede estava destruiria e que se apresentava trombosado, achámos um pequeno pedaço de osso e outro de chumbo. A nossa impressão, ao sondar o ferimento com um estilete, não fôra errada e andámos acertados não procurando saber até onde poderiamos levar a nossa sonda. Os dois corpos estranhos foram removidos e regularizada a parede do seio. Constatada a presença de um hematoma, de regular extensão, entre o osso e a dura mater, foi a trepanação alargada até os limites do hematoma, que se estendia para baixo, em direção ao buraco ocipital. O hematoma foi totalmente removido e, para tanto, traçada sôbre a incisão vertical, uma segunda horizontal, na mesma extensão, que permitiu uma visão larga sôbre a região trepanada, numa superficie aproximada de 4 a 5 cms. Não tocámos no seio transverso. Regularizados os bordos da meninge, parte integrante da parede do seio, colocámos dentro do vaso um dreno de gaze, tendo o cuidado de não tocar nas extremidades do trombo. A intervenção foi muito bem suportada e correu sem incidentes.

Dormiu bem a noite; pela manhã o termometro marcava, apenas, decimos de elevação de temperatura. As sequências operatorias foram boas, todavia, o pulso se manteve instavel, porém, sempre em ascenção para o limite normal.

Permaneceu na Casa de Saúde cerca de três semanas. Posteriormente fez os seus curativos em casa e no consultório. Ocupa-se dos seus afazeres, sem licença de voltar, por enquanto, à sua profissão de aviador.

Como pormenor, convém lembrar que o paciente é um rapaz forte e sadio, de 22 anos de idade.

A historia, no caso em apreço, é muito clara e permitiu surpreender a etapa intermediaria da infecção local à septicemia.

A brusca elevação de temperatura, precedida de calefrios, e a trombose do seio lateral dilacerado, limitado por infiltração purulenta permitem afirmar que a sepse otogenica se desenhou sem tempo para se instalar. A intervenção cirurgica interpôs-se vitoriosa. O decurso post-operatório e a cura sem acidentes confirmaram esta suposição.

A evolução do processo infeccioso pede, todavia, uma distinção entre a septico-pioemia auricular sem trombose e a tromboflebite de um seio venoso com septico-pioemia. Foi Körner quem primeiro insistiu sôbre semelhante diferenciação, a qual se opusera Leutert com a hipotese de uma trombose parietal, não obliterante, por lesão da veia jugular, e Griesinger e Heymann acreditando na passagem direta dos germens através dos tecidos vasculares.

Na septico-pioemia auricular sem trombose, as conexões vasculares, extraordinariamente importantes, do aparelho auditivo, justificam a facilidade que tem o germen para invadir o aparelho circulatório através dos calibrosos troncos venosos da dura-mater, que apresentam, neste território, caracteres que escapam à nossa argúcia - ausência de valvulas, largueza de secção e rigidez das paredes - talvez com o fim de favorecer a circulação, uma vez que o cerebro recebe, em média, mais de 130 c.c. por minuto, para um volume de 100 grms. de orgão, subordinada à pressão sistolica, aos movimentos respiratórios e às ondulações vasomotoras.

A via linfática, neste território, fica, por enquanto, inteiramente fóra de qualquer cogitação, pois ainda não é bem conhecida, nos seus detalhes, a distribuição dos linfáticos no ouvido médio, excetuada a rede da membrana do tímpano. Pertence à escola de Schwartze a hipótese da infecção se estender por esta via, confirmada por outros, inclusive Grunert e Meier e tambem por Körner em 1896.

Presentemente, a opinião unânime estabeleceu que o fóco septicêmico deve ter conexões muito estreitas com o sistema vascular, porém, não será de estranhar que amanhã êste conceito sofra alteração. De fato, a importância das conexões vasculares do ouvido médio é consideravel. O seu sistema de venulas e capilares favorece, é fóra de dúvida, e em muitas direções, a invasão microbiana e tambem aponta as grandes dificuldades que o cirurgião encontra para interceptar a marcha de uma infecção. As tributações vasculares nos mostram as relações do assoalho da caixa com o golfo da veia jugular (Raugé), das paredes inferior e interna com o seio cavernoso através do plexo carotidiano (Tröltsch e Körner), do tegmen antri diretamente com a dura, da rede venosa do labirinto com o seio petreo inferior pela veia auditiva interna; com o seio petreo superior do aqueduto do vestibulo e com a jugular interna pela veia do aqueduto do caracol, sem contar os numeros pequenos vasos que desembocam no seio pelas veias osseas e emissárias.

Merece uma especial referência a veia sigmoido antral d'Elsworth, que nasce por numerosos ramusculos no âmago do tecido esponjoso peri-antral e vai ter ao joelho do seio logo abaixo da crista do rochedo. (Chatellier).

Além destas conexões vasculares, Chatellier (H. P.) conseguiu ainda, em pesquizas anatômicas e radiográficas, demonstrar a existência de muitas venulas que, oriundas do arcabouço mastoideu, alcançam pontos diversos do bordo anterior do seio sigmoideu e cita que, em 1881, Bezold já notára, para trás da sutura petro escamosa, que a cortical superficial é rugosa e espessada pelas sólidas inserções do esterno-cleido-mastoideu, do esplenio e do pequeno complexo. Esta disposição constituiria um obstaculo à evolução, para o exterior, das supurações mastoidéas posteriores e superiores e favoreceria o alcance da cortical profunda e das regiões que ela protege. Mouret e Segneurin, num estudo sôbre as mastoidites atípicas ou para-mastoidites, chamam a atenção para a possibilidade, nas mastoidites postero-superiores, da exteriorização, através da cortical interna, atingir o seio transverso e a porção posterior do cotovêlo do seio. Stanculeanu e Depoutre chegaram ao extremo de opinar que a celulite postero-inferior é responsavel, na grande maioria dos casos, pela tromboflebite do seio. Atingida a caixa óssea do seio, a presença habitual de um ninho celular, na vizinhança do cotovêlo do seio, estabiliza a infecção nesta altura e o pus, que se coleta, deprime e recalca, sob forte pressão, a parede vascular, até obstruir completamente a luz do vaso - Passow, Urbantschitsch, Bondy, Ruttin. Na flebite primitiva do golfo da jugular, fôrma de infecção extremamente rara, na opinião de Sebileau, a infecção não caminha por contiguidade. Ela se processa à custa, ou das venulas que da caixa vão ao golfo, ou pelas deiscências anormais do assoalho da caixa, ou, ainda, através dos minusculos canais anatômicas, que dão passagem, pelo osteo introito, ao ramo anastomótico do pneumogastrico, no fundo do golfo, ou pelo canal do tímpano, que abriga o nervo de Jacobson.

O calibre daqueles vasos varia de acôrdo com os individuos e, pelo fato da lesão se iniciar na septico-pioemia auricular sem trombose, num vaso do rochedo, tomou a designação de petreo ou osteo-flebite. Designação que deixa bem claro a hipótese formulada e que justifica o conceito, da grande maioria dos autores, que nas tromboflebites sem trombose aparente, ou elas se fazem num ponto mais distante, ou no íntimo do tecido osseo, em vaso de calibre tão reduzido que escapa á observação. Neste tipo de septicemia não se constata, diz Körner, a formação de abcessos metastaticos, porém, a autópsia revela lesões de endocardite séptica, equimoses no endocardio, hemorragias musculares e outras lesões orgânicas, constituindo o tumor do baço um achado quasi que obrigatório.

No número de junho de 1938, foi publicado nos Anais franceses de Oto-rino-laringologia, um caso de tromboflebite sinuso jugular, de localização atípica, apresentado em 21 de fevereiro a Sociedade de Laringologia dos Hospitais de Paris, por Ramadier, caso muito instrutivo, de septicemia confirmada pela hemocultura, com punção do seio lateral, por duas vezes, negativa. O paciente, que sofreu duas intervenções, veio a falecer. O laudo de autópsia constatou a integridade das meninges e da massa encefálica e mostrou lesões muito interessantes do trato sinuso-jugular, ausência de trombose do seio lateral e tambem de lesões parietais aparentes.

Mesmo aspecto na altura do golfo, porém, logo abaixo deste, na extremidade superior da jugular, descobre-se um coagulo branco, com dois centímetros de extensão, livre na luz do vaso.

Ao ser removido, acompanharam-no duas ou tres gotas de pús viscoso e, à secção, verificou-se que o seu centro estava amolecido. Para exame histológico foram retirados três segmentos, um na altura do seio, o segundo na altura do golfo e o terceiro da jugular, abaixo do golfo. O Laboratório forneceu o seguinte resultado - Segmento do seio: lesões parietais importantes, com infiltração de polinucleares, formando em certos pontos esboços de abcesso miliar. Segmento do golfo: as mesmas lesões, porém, menos acentuadas, infiltrações sobretudo linfo-plasmocitarias, edema intersticial. Segmento jugular abaixo do golfo: As lesões parietais se apresentam ao maximo - no tecido celulo-adiposo adjacente, abcesso miliar, trombo vascularizado.

Esta observação é altamente instrutiva e mostra quanto a falta sistemática de autópsias prejudica a investigação. Nas suas conclusões Ramadier diz muito bem. O paciente morreu de septicemia otogenica, confirmada na anti-véspera da sua morte pela hemocultura e no entanto o seu quadro clinico foi o mais confuso possível: décimos de temperatura, punção do seio normal, fundo do olho normal, Queckenstedt normal, punção sub-ocipital - liquido claro, tensão com manometro de Claude 40 - 2 elementos por campo, dôres temporo-parietais, cefaléa persistente, grande prostação e emagrecimento, com ausência de sintomas meningeus, conduzindo o diagnostico para a hipótese de complicação encefálica.

Não fosse a autópsia e este caso permaneceria, certamente, como muitos outros, nas estatisticas, no quadro das complicações encefálicas.

Na sua origem, o mecanismo infeccioso nos dois tipos de tromboflebite é mais ou menos semelhante e a sintomatologia muito proxima. A diferença anatômica e clínica varia apenas numa questão de gráu, de acôrdo com o calibre do vaso que justifica, porque na tromboflebite do seio lateral, as metastases têm uma particular predileção para o aparelho respiratório, especialmente na criança, enquanto que na séptico pioemia sem trombose do seio, as articulações e as bainhas tendinosas peri-articulares são mais atingidas. Körner pressupõe que a razão desta localização esteja na dependência do volume do embolo. Grande na séptico-pioemia com trombose do seio lateral encontra uma barreira no retículo vascular do pulmão, facilmente atravessado pelos minusculos trombos da séptico-pioemia sem trombose. Invadida a grande circulação, qualquer ponto do sistema arterial póde abrigar o embolo. A localização nos capilares periféricos acarretará, como já vimos, artrites ou abcessos musculares, de mais facil diagnóstico, porque chamam a atenção por causa da dôr e da inflamação que dificultam os movimentos e mudança de posição na cama. Nos capilares viscerais, os abcessos do fígado, do baço, dos rins, do intestino e da laringe. Cumpre registrar a preferência para a localização no coração e a possibilidade da formação de abcesso encefálico, metastático do lado oposto (Pitt, Krukenberg). Hayman é de opinião que as embolias pulmonares mortais são raras e, por vezes, os sintomas de um pleuriz ou de um pneumo-pneumothorax de início súbito são as únicas manifestações reveladoras de metastases pulmonares. Na grande maioria dos casos, a percussão nada revela e a ausculta apenas sinais de bronquite difusa, sopro ou estertores de bronco-pneumonia. Mais frequentes são os infartos, que se denunciam pelo escarro hemoptóico, raros, por sua vez, no fígado e nos rins. Ballance e Jansen publicaram abcessos laringeus por metastases. Ambos os casos terminaram pela morte. A observação que se segue caracteriza bem um caso de sepse otogenica complicado de Infarto Pulmonar.

A. J. S. -17anos, operário. Registro da Policlinica de Botafogo, em 9 de maio de l934. Veio à consulta para examinar o O.E. que está supurando há um mês.

Antecedentes - Pais falecidos por causa que ignora. Tem 3 irmãs fortes.

Exame do Dr. Veloso - O. E., pela inspeção, grande tumefação da região mastoidéa. Pela otoscopia nota-se quéda da parede postero-superior do conduto, deixando ver apenas parte da membrana timpânica. Supuração abundante. Descolamento e projeção do pavilhão para diante. Flutuação. Tratamento - Intervenção.

Anestesia geral pelo Balsoformio, Mastoidectomia classica. Fístula da cortical externa. Grande quantidade de pús. Exposição do seio lateral e das meninges cerebrais. Gaze iodoformada. Cirurgião: Dr. Veloso, auxiliado pelo Dr. Costa.

10-5-1934 - Ontem o doente teve 36º,8 de temperatura. Hoje amanheceu com 38º. Tomou um purgativo e uma injeção endovenosa de Formino-Dextrose. Mudou o curativo.

11-5-1934 - Teve ontem febre até às 4 horas da tarde, acusando a temperatura maxima de 38º, às 12 horas. Hoje amanheceu com 36º,3.

12-5-1934 - Ontem teve temperatura maxima 36º,5. Hoje, às 7 horas da manhã, teve 37º,5. Ao fazer o curativo o Dr. Costa notou um descolamento do couro cabeludo, dirigindo-se no sentido da região parietal, o qual, depois de convenientemente desinfectado, foi drenado com gaze.

13-5-34 - Amanheceu com 37º. Ao fazer o curativo nada encontrámos de anormal, apenas o mesmo aspecto torpido da ferida e descolamento da região parietal. Fomos chamados pela enfermeira de Serviço, às 13 horas, porque o doente estava com 39º,3. Levantámos o curativo para deixá-lo mais frouxo. Injeção intramuscular de prata coloidal.

14-5-34 - Amanheceu com 39º,2. Levantámos o curativo, puncionámos o seio lateral, obtendo saída de um liquido com aspecto de sôro. Seio trombosado e sem pús, o que foi verificado após incisão, que seguiu a punção. A sondagem, nas duas direções, não provocou a saída de sangue, o que prova a extensão do trombo. Foi feito um esfregaço, da serosidade saída à punção, para exame de Laboratório. Foi iniciado o tratamento com septicemina endovenosa (2 injeções de 4 c.c. com 9 horas de intervalo), balneoterapia (2 banhos) e gelo na cabeça. Temperatura máxima 40º,1 - sendo nesse momento feita a pequena intervenção acima descrita.

15-5-34 - Amanheceu com 38º,3. Foi levantado o curativo, que continua em ótimas condições. Tomou 10 c.c. de sôro anti-estreptococico e 8 c.c. de Septicemina na veia, dóse esta repetida à noite. Por esta ocasião, o paciente apresentava temperatura máxima de 40º,4, pelo que foi determinado um banho e dado a ingerir uma cafiaspirina. Momentos após o banho, a temperatura apresentou-se 39º,2. Foi receitada Urotropina.

16-5-34 - Tem continuado a tomar Urotropina internamente, na dóse de 2 gramas diárias. Teve ontem, às 6 da manhã, 37º,2 - às 8 horas, 39º - às 16 h., 39º - às 19 h., 38º,5. Continua com Septicemina na veia: 16 c.c. diários. Urotropina internamente.

17-5-34.- Temperatura 39º,7.

18-5-34 - 8 h. 36º,5 - 14 h., 39º - 1 7 h., 35º,4 - 22 h., 39º,2.

19-5-45 - 7 h., 36º,7 - 14 h., 38º - 16 h., 39º,3.

20-5-34 - 7 h., 37º - 10,30 h., 37º,5 - 16 h., 39º - 18,40 h., 39º,5.

Apresentou tosse e escarros sanguineos, sinais de Infarto pulmonar.

21-5-34 - 7 h., 39º - 21 h., 37º,9. O Dr. Granadeiro fez um exame clinico, nada encontrando para o lado de pulmão e coração.

22-5-34 - Passou bem.

25-5-34 - Teve pela manhã nova elevação de temperatura, atingindo 40º, com escarros de sangue. Exame do Dr. Granadeiro, sem nada encontrar. Tomou 20 cc. de sôro anti-estreptococico. Foi feito envoltorio revulsivo com Antiphlogestina.

25-5-34 - Temperatura máxima de 39º,9 às 12 horas. Declinou até 36º,8 á noite.

26-5-34 - Passou o dia sem temperatura, atingindo 37° à noite. Foi suspensa a aplicação endovenosa de Septicemine. Tomou uma ampôla de Sparto-camphre.

27-5-34 - Passou muito bem. Temperatura 36º,5.

28-5-34 - Temperatura máxima 37º.

29-5-34 - Temperatura máxima 36º,7. O doente passa muito bem.

30-5-34 - Temperatura 36º,4.

31-5-34 - Temperatura 36º,5. 1-6-34 - Temperatura 36º,5.

O exame do esfregaço do liquido retirado à punção, do seio lateral, revelou cocos em cadeia (streptococos). Foi feito no Laboratório de Biologia Clinica.

4-9-34 - Alta completamente curado. Audição boa, apenas ligeira lateralização de Weber.

Comentário - O doente apresentou-se ao Serviço com a sintomatologia classica de mastoidite anterior exteriorizada, sobrevinda no decurso de uma otite aguda. As informações dadas pelo paciente eram poucas e imprecisas, motivo porque não foi possível precisar o início da complicação endocraneana que apresentava no ato operatório e que consistia na flebite do seio sigmoideu. Seria assim superfluo fazer conjeturas que não se coadunam com o verdadeiro espírito que deve presidir a elaboração de uma observação médica, onde as deduções levam comumente ao caminho do devaneio científico. A partir, porém, do ato cirurgico e incluindo-o, o doente esteve sob os cuidados imediatos do Serviço. Que assistimos então? - um paciente acometido de otite aguda, complicada de mastoidite e flebite do seio sigmoideu, depois de feita a remoção do foco séptico inicial, pela intervenção acima apontada, começou a apresentar sintomas de septicemia, que não ofereciam dúvidas quarto à sua interpretação. Êles seriam racionalmente, sem esforço de lógica, filiados à complicação encontrada, para a qual dever-se-iam voltar as atenções do cirurgião. Não tendo feito, na intervenção, a punção do seio, que foi mantido intato, apesar do aspecto das suas paredes denotar a existência de um processo anatomo-patologico de periflebite, decidimo-nos, diante do quadro da temperatura, a intervir no seio. A nossa decisão vacilou logo entre a ligadura da jugular e a abertura do seio no proprio fóco e ambas as coisas ao mesmo tempo. Optámos, porém, pela segunda dessas soluções: puncionamos o seio no dia 14, encontrando-o acupado por um trombo extenso, uma vez que seus limites não foram encontrados nas duas direções em que praticámos a respectiva sondagem. Fizemos ao longo de sua parede uma incisão, colocando dentro do proprio seio, após retirada de um liquido com aspecto de sôro, aí existente, que mandámos a exame, um dreno.

Durante os dias que se seguiram a essa intervenção, o doente continuou a apresentar oscilações de temperatura, do tipo septicêmico. Retirámos sangue para uma hemocultura, que resultou negativa: no tubo de gelose nenhum germen se desenvolveu. Foi quando sobreveio um infarto pulmonar, seguido de remissão da temperatura.

Finalmente, já em caminho de cura, começou a apresentar novas oscilações de temperatura, às quais se seguiu um abscesso no braço esquerdo, certamente devido a uma embolia num capilar periferico.

Do tratamento clássico de tromboflebite, fizemos a destruição do foco séptico inicial e a trombectomia parcial, pois tanto vale retirar o trombo de um vaso quanto limpá-lo e drená-lo, quando êsse trombo já se amolecera. Não fizemos nem a ligadura da jugular nem a trombectomia total, por qualquer dos processos conhecidos.

O resultado foi excelente, porquanto, numa enfermidade de letalidade elevada como a tromboflebite, o doente sobreviveu e curou. Não nos permitimos, todavia, tirar dele conclusões categóricas. Não ligámos a jugular. Fizemos bem? Fizemos mal? Teriamos evitado o infarto pulmonar e a metastase cutanea, e até outras que, provavelmente, se deram atrás do quadro de temperatura, que resumia sua sintomatologia clinica? São interrogações que à consciência nos repugna de responder de modo categórico e ilusório. O que nos parece, no entanto, fóra de dúvida, é que, o tratamento da tromboflebite do seio lateral, cirurgico por excelência, coadjuvado com as várias modalidades da terapeutica anti-infecciosa, todas tão precarias, deve consistir na remoção do foco inicial, com larga exposição do sela, para permitir posteriores intervenções a seu nivel e, particularmente, a trombectomia parcial. A ligadura da jugular nos parece logica, como meio de bloquear o fóco endomastoideu e tem a preferência dos oto-rino franceses. No entretanto, ela não foi feita no caso presente, nem lhe causou maior dano semelhante abstenção. Se a tivessemos praticado, como foi intenção nossa diante do quadro septicêmico apresentado pelo paciente, certamente as glorias do sucesso terapeutico seriam hoje suas.

Quase todos aqueles que se ocuparam do assunto assinalam a séptico-pioemia sem trombose do seio mais frequente no decurso da otite aguda e a séptico-pioemia com trombose (osteo flebite) do seio lateral na dependência dos processos inflamatórios cronicos do ouvido médio.

Si o conceito da septicemia evoluiu e abrange um sentido muito mais lato, sente-se que a interpretação do seu mecanismo é ainda muito controvertida e que a discordância é principalmente devida ao fato de não se poder comprová-la experimentalmente. Entre infecção local e septicemia, como diz Lafite-Dupont, há, é fóra de dúvida, uma distinção de etapa e o ideal seria, para a terapeutica, se pudessemos alcançar, como é possivel nos traumatismos craneanos, a manifestação inicial da infecção antes de sua generalização.

O conceito do mecanismo da infecção aceita a penetração, num qualquer ponto do organismo, do agente causador que alcança os tecidos vizinhos e neles se desenvolve. Se a defesa local é suficiente, a infecção se limita; do contrario, ela se generaliza, com a passagem dos agentes na corrente circulatória a "septicemia".

Se a septicemia é pois função da penetração - por descarga no sangue, de toxinas e microbios oriundos de um fóco séptico, e não implica na proliferação de microbios no sangue, como sucede na septicemia experimental ou na septicemia humana, no seu último período, quando a morte se aproxima; se a bacteriemia pôde existir sem sintomas septicêmicos (Bacteriemia infectante - pioemia) e se a bacteriemia é moeda corrente nas infecções (Nathan e Maurice Renaud), vemos quanto acerto há na definição proposta por Gastinel e Reilly, no relatório ao Congresso de Medicina de Paris: "O ESTADO CLINICO SEPTICÊMICO PASSA ALÉM DA DEFINIÇÃO BASEADA SOBRE O ÚNICO CRITERIO BACTERIOLOGICO".

Lafite-Dupont completa esta definição considerando a Septicemia como um termo nosologico aplicando-se a um sindrome clinico, compreendendo modalidades biológicas. Reconhece que em toda infecção há penetração de toxinas no sangue, toxemia que se traduz por elevação de temperatura, considerada, por alguns autores, o resultado de um choque coloido-clasico, provocado pela desintegração das albuminas dos germens causadores da infecção e que existe septicemia quando os sintomas clínicos o indicam mesmo se a hemocultura é negativa, pois que a bacteriemia é transitória. Tudo depende do momento oportuno da colheita do sangue, nem sempre ao nosso alcance. E' sabido tambem que no vivo o sangue é máu meio de cultura. O seu poder bactericida se opõe juntamente com os elementos do sistema reticulo-endotelial à multiplicação dos germens no sangue circulante. Tais conceitos consolidam a concepção de infecção e septicemia, ipso-facto, reunidas por um traço de união. Questão de etapa, torna-se dificil determinar, quando se inicia uma infecção, dizer qual o criterio para falar em septicemia, tanto mais que tudo depende em principio do quadro clinico. Entre infecção local e infecção geral há uma escala, série de etapas que impossibilita falar em gravidade de infecção e, foi por esta razão, que alguns dividiram a infecção otogenica em dois grupos: um, no qual a principal sintomatologia se caracteriza por temperatura elevada, de grandes oscilações, precedida de calefrios e terminando por sudação abundante, com o aparecimento ou não de fócos metastaticos na sua evolução; outro, cujo quadro se define por manifestações graves e duradouras: febre contínua, sem a formação de fócos purulentos secundários. Esta fôrma corresponde, habitualmente, a pioemia ou, ainda, a fôrma de evolução septicêmica. A observação, que se segue, aponta, na sua evolução, um quadro tipico do segundo grupo.

B. R., 7 anos de idade, residente no Rio de janeiro. Registro particular 13.278. Em 4 de julho de 1931 fômos chamados de urgência, pelo Dr. Joaquim Nicoláo, para ver o paciente, no Hospital dos Ingleses, onde se achava internado, já com indicação para ser operado.

Enfermára havia dez dias, de otite média supurada aguda, e fôra tratado por outro especialista, que lhe fizera uma paracentése e aconselhara o uso permante do saco de gêlo.

Encontrámos a criança em estado de profundo abatimento. Temperatura de 38",5 e 100 pulsações por minuto. Torcicoli para D.. Dôr, muito violenta, à pressão, para atrás da mastoide. Toda a região retro-auricular se apresentava muito infiltrada (Mastoidite tipo Moure). Secreção abundante no conduto. Tímpano muito hiperemiado e espessado. A temperatura vesperal é, frequentemente, precedida por calefrios é a baixa do acesso se caracteriza por sudação. Resolvemos intervir imediatamente.

Narcose com éter. Traçada a incisão, o periosteo, facilmente descolavel, apresentou a cortical externa de côr azulada, sem brilho, denunciando a existência de um processo de osteite. Toda a mastoide se achava doente, processo de osseo-celulite flegmonosa. Remoção fácil de todas as celulas, até a ponta, só com o auxilio da cureta. O seio lateral, descoberto intencionalmente e puncionado, deu sangue, com aspecto normal. Todo o tecido osseo, que se apresentava doente, foi removido para trás do bordo posterior da mastoide e, para baixo, quatro dedos além da ponta, limite da zona infiltrada, onde foi colocado um dreno de borracha.

Temperatura, ao terminar a intervenção, 38º,2. Saco de gêlo.

7-7-31 - Por ter voltado e permanecido a temperatura em 40°, foi re-operado. Narcose pelo éter. Maior exposição do seio e da meninge cerebelar, ambas de aspecto normal. Nova punção do seio, normal. A remoção do tecido osseo se estendeu para baixo e para trás, acompanhando o trajeto do seio lateral, em direção ao golfo. Abertura acidental do seio. Hemorragia profusa, sustada com o tamponamento. Gêlo, Cilotropina na veia. Pedimos hemocultura e hemograma. Leucocitose 21.000. Normoneutrofilia (Dr. Leite Pinto, 7-7-31 ).

10-7-31 - Passou um pouco melhor, Temperatura continua oscilando entre 38 e 39º. Hemocultura negativa.

16-7-31 - Foi levantado o curativo. Nada de anormal. Como a temperatura se mantivesse desde ontem muito elevada e que a ferida operatória estivesse assaz infiltrada, assim como a massa muscular adjacente, coberta de tecido vegetante, submetemos, novamente, o paciente à narcose pelo cloretila e fizemos ampla e cuidadosa curetagem. Nenhum fóco de pús foi encontrado. Seio lateral e meninge cerebelar normais.

21-7-31 - Melhorou muito. Pequena reação febril. Contagem global dos leucocitos 12.000. Linfocitos 29 %. Estado geral ótimo.

18-8-31 - Saiu da Casa de Saúde. Em 25-9-31 - cicatriz consolidada. Alta curado.

Caso suspeitíssimo de sepse otogênica, caracterizado por uma curva térmica excessivamente prolongada, sempre elevada, precedida de calefrios e terminada por sudorese.

No entanto, o hemograma sem maior significação e a hemocultura negativa. Sofreu três intervenções sôbre a mastoide, que se estenderam ao osso ocipital, sem que se notasse qualquer alteração do seio lateral. As punções repetidas do seio lateral sempre trouxeram sangue. Permaneceu mais de dous meses enfermo, com uma curva térmica típica de septicemia. Calefrios intensos precediam os acessos, que terminavam com suores abundantes. Em todas as três intervenções, sendo que a última alcançou a região inferior do osso ocipital, tivemos que remover tecido osseo doente, com o aspecto macroscópico de osteíte.

Buzello quer ver na bacteriemia, toxemia, pioemia e septicemia apenas etapas de um mesmo processo, etapas que o organismo pôde vencer mais facilmente nos primeiros tempos, quando a pioemia ainda não se declarou, pelas suas melhores condições de imunidade. Conceito já brilhantemente sustentado por Verneuil, na Academia de Medicina de Paris (1869-71 ), encarando a pioemia como uma septicemia embólica.

A medida que a imunidade baixa, a defesa do organismo se enfraquece e favorece a última etapa, o estado septicêmico.

Durante muito tempo e ainda hoje, alguns autores consideram êste estado fóra do alcance da terapeutica e, por tanto, incuravel. Ponto de vista naturalmente contestado, pois se torna difícil traçar limites para afirmar a incurabilidade da sepse otogênica, para a qual a cirurgia é a arma soberana, sobretudo nas infecções osseas. Aliás, esta corrente extremista encontra um formal desmentido nas várias observações de cura espontanea, citadas na literatura - Wreden, Stacke, Grunert e Zeroni, Eulenstein, Urbantschich, Preston, Henet, Griesinger, Heydenreich e os nossos dous casos, observados no curto espaço de um ano. A cura nestes casos está, pensam alguns, subordinada à organização de um trombo passível de reabsorção e ausência, bem entendido, de complicações intracraneanas que tenham ultrapassado determinado limite.


Aos 19 de setembro de 1928, fôrnos chamados para ver o menino P. F., com 4 anos de idade. Registro particular n.° 12.956. Atacado de gripe, acusava dôr no O. E. e temperatura de 38°. Fizera até então uso de cataplasmas sôbre o ouvido.

Otoscopia - tímpano bastante congesto. Mantivemos as compressas e no dia seguinte o ouvido supurava abundantemente. (No ano passado, por causa de uma otite média supurada aguda, fizéra, neste mesmo ouvido, uma paracentése). Com a drenagem espontânea baixou a temperatura. Estado geral relativamente bom. Limpeza e dreno. Temperatura oscilando entre 36º,5 e 37º,5. Passados alguns dias, ausência de reação, supuração em declínio. Em 28 do mesmo mês, repentinamente, a temperatura elevou-se a 40º e, simultaneamente, sobreveio abundante hematuria. Estado local do ouvido bom. Exames repetidos de Laboratório revelaram além de sangue, pús na urina e, como germen responsavel da supuração no ouvido, foi identificado: estafilococo albo. Prescrito como tratamento - Vacina autogena.

Decorridos vinte dias, tudo se normalizou - ausência de sangue e de pús na urina. Temperatura normal.

Em 15 de outubro nova ascenção de temperatura, coincidindo com o aparecimento de uma tumefação retro-mastoidéa, do mesmo lado (esquerdo), muito dolorosa à pressão. O estado geral, que se agravara com a nefrite, ainda peiorou. Temperatura de 40º,2, pulso a 120 por minuto, fraco, sendo necessário, para sustentá-lo, administração de injeções de oleo canforado e cardiasol por via oral. Dispnéa e crises de sudação abundantissimas, após calefrios. Como tratamento - saco de gêlo permanente e vacinas autogenas a principio, continuadas com vacinas antipiogenicas de stock. Permanência de supuração no conduto, tímpano levemente hiperemiado. A reação retro-mastoidéa, mais para trás do bordo posterior do que propriamente nas proximidades do sulco retro-auricular, aumentou, consideravelmente, de volume nos dois dias subsequentes, chegando a atingir quasi toda a nuca, excessivamente dolorosa à pressão. Temperatura elevada, pulso rápido, calefrios e suores profusos.

Esta infiltração até a nuca corrobora as observações de Orne Green, citados por Politzer. Mantido sempre o mesmo tratamento inicial - gêlo, vacinas e cardiotónicos. Começou a ceder a infiltração da nuca. Passados cinco dias e já a expectativa se tornava mais animadora, quando nova infiltração se apresentou, sempre para trás da mastoide, acompanhada do mesmo quadro: temperatura, pulso rápido, calefrios e suores profusos. (Em todas estas fases o exame da urina sempre se apresentou normal.

Desta vez, toda família alarmada, com exceção do pai da criança, posso colega e amigo, desejava que nossa intervenção fosse mais radical que recorressemos à cirurgia. Inclinados para essa solução, não nos sorria, porém, intervir num paciente em péssimo estado geral, com sinais francos de insuficiencia cardíaca. Para dividir a nossa responsabilidade, sugerimos a presença do Prof. Augusto Paulino, amigo da família. Si discordasse da nossa opinião, curvar-nos-íamos; caso contrário, permaneceríamos na expectativa armada, uma vez que o organismo apresentava sinais de deficiência cardíaca, com a possibilidade, todavia, de reagir, como já sucedera por duas vezes. O cirurgião prudente, diante das nossas ponderações e após examinar a criança, concordou com o nosso ponto de vista. Permanecemos na expectativa. Em poucos dias cedia a reação retro-auricular e simultaneamente formava-se profundo e extenso flegmão da região coxo-femural, o qual, dilatado pelo Dr. Ovídio Meira, esvasiou algumas centenas de gramas de pús. Este foi o episodio de uma infecção otogenica acidentada, cujo epílogo se deu em fins de novembro, com a completa cicatrização do ouvido, integrado na sua função.

EPICRISE - No caso acima exposto, a otite média aguda supurada foi, indiscutivelmente, o ponto de partida de uma séptico-pioemia, que se estabeleceu através de um processo de tromboflebite. A temperatura elevada, os calefrios, os suores abundantes, o sinal de Griesinger, o empastamento retro-auricular, mais acentuado para trás do bordo posterior da mastoide, vêm em apoio da agressão ao seio lateral, como etapa da séptico-pioemia, que terminou com uma metastase da grande circulação (abcesso da região coxo-femural).

Haymann não encontra razão que justifique porque, em certos casos, as metastases supuram e admite que o decubito dorsal favoreça este acidente,

O ensinamento desta observação serviu para orientar a segunda, que se segue.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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