A cirurgia larga do pescoço, ainda não passou, definitivamente, entre nós, para a inteira alçada do laringologista. Poucos são os serviços da especialidade onde ela entrou na pratica diaria. Somos dos que julgam estar o laringologista perfeitamente habilitado a executa-la. Casos ha, entretanto, que requerem a colaboração do cirurgião geral.
O caso presente, digno de nota pelo decurso acidentado da molestia, está nesse ról.
No dia 28 de janeiro de 1937, veio à consulta de oto-rino-laringologia, na Assistencia Policlinica do Rio de Janeiro (Tijuca) a doente M. C., de 12 anos, parda, residente a rua General Roca n.° 178.
Queixava-se de muita dôr na região infra-hioidéa, com propagação para a região lateral direita do pescoço. Febre, anorexia, e alquebramento. A doente negava a existencia de qualquer traumatismo ou outro processo inflamatorio. A afecção tivera inicio ha dois dias, agravando-se o mal progressivamente.
De inicio nos impressionou a imobilidade da cabeça, algo flectida para diante, e o empastamento da região infra-hioidéa. A imobilidade era absoluta, sendo que mesmo para locomover-se a doente o fazia tomando as maiores precauções. Ao exame, constatámos calôr e congestão local.
Nas cavidades nasais e na faringe, nada encontramos de maior importancia para o caso. Dentes em perfeito estado.
Feito o diagnóstico de adeno-fleimão profundo do pescoço, demos providencias- para que a doente fôsse internada no Hospital da Cruz Vermelha Brasileira. A imobilidade da posição da cabeça recordava-nos, ainda, a sintomatologia descrita pelo Prol. Segura em seus casos de abcessos do mediastino posterior. Dada a situação e a anamnese, pensamos em uma possível extensão do processo ao mediastino anterior.
No dia seguinte a doente foi mostrada ao Prof. Renato Machado, que concordou com o nosso diagnóstico. Com o fito de indagar sôbre a integridade do esofago, foi pedida radiografia com contraste, que só foi feita no dia seguinte. Na manhã do dia seguinte, o aparecimento de fetidez do halito e a referencia feita pela doente de ter escarrado púz, na madrugada, fez com que pensassemos em possível fistulação para a traquéa.
A intervenção foi feita as 14 horas desse mesmo dia, pelos Drs. Mariano de Andrade e José Americo dos Reis. Anestesia geral pela cloretila (Dr. Henrique Smith). Incisão obliqua, acompanhando a porção inferior do bordo anterior do esterno cleido direito, até à furcula esternal. Notou-se grande infiltração dos tecidos (edema duro). Afastamento da musculatura para fóra, com o fito de passar entre a traquéa e o esófago, para dentro, e o esterno cleido e os vasos carotidianos, para fóra. A medida que a abertura se extendia em profundidade, notava-se a presença de liquido sero-purulento, com progressivo esfacelo das partes moles.
Na goteira esófago-traquéal, as lesões estavam mais acentuadas e constatava-se a presença de púz de coloração amarelada (10 a 15 cc.,).
A zona onde estava coletada a supuração ía desde a tireoide até ao mediastino anterior, para traz da furcula (3 a 4 centímetros de profundidade). Não foi possível localizar a lesão traquéal, mas sua existencia se evidenciava pela saída de ar na ferida (gargarejo) e pela presença de sangue na bóca. Drenagem com tubo e gaze iodoformada. Curativo oclusivo.
A sequência operatória foi muito acidentada.
Nas primeiras horas, a paciente apresentou-se excitada, com mais de 100 pulsações por minuto e temperatura acima de 38 °.
No segundo dia, foi feito o curativo, não havendo supuração (retirada do dreno). A temperatura era de 39°,9 e o pulso de 110. Nos tornozelos de ambos os lados, notava-se intensa reação inflamatória, denunciando a invasão metastática do processo.
Medicação tonica geral. Vacina. Sôros. Antisséticos gerais. Extratos organicos. Antiflogisticos, localmente.
Nos dias subsequentes houve ligeira melhoria do estado geral. A temperatura oscilou entre 37°,6 e 39°, enquanto o pulso manteve-se entre 92 e 112 batimentos radiais por minuto.
Em 8-2-937, notou-se abaulamento da região operatória" mais acentuado para traz do esterno-cleido direito. Sinais de flutuação profunda. Dôr acentuada à mais leve palpação. Medicação geral e local.
No dia imediato o estado local era bem diverso, pois a ferida não apresentava calôr nem rubôr, mas parecia haver leve flutuação. Drenagem, procurando-se atingir algum fóco em retenção. Edêma discreto da articulação escapulo-humeral direita. O escarro apresentava-se purulento, embóra o quadro clínico afastasse inteiramente a hipótese de uma supuração pulmonar, parecendo haver relação com a fissura traqueal.
Em 11-2-937 foi aberto por um de nós (Mariano) um fleimão antero-interno do terço inferior da perna direita. A evolução continuou acidentada, com exacerbações alternadas dos fócos de supuração. Em 17-2937, a doentinha apresentava-se bem melhor, embóra existisse um aumento de volume da extremidade interna da clavícula direita, com sinais de inflamação sub-agúda.
Em 22-2-937, foi aberto um grande fleimão da região glutea esquerda.
A situação continua pouco alterada. A temperatura mantem-se em torno de 36°,5 e o pulso em torno de 100.
Em 20-3-937, havendo-se constatado ao R. X. lesões de ósteomielite na tibia direita (extremidade inferior), foi praticada a ósteotomia desse osso. As lesões, alem de extensas, atingiam as proximidades da cartilagem de conjugação inferior. Foi retirada toda a porção comprometida depois de osteotomia larga, respeitando-se a continuidade da tibia pelo seu lado externo. Curativos e medicação conveniente (calcio, vacina, sôros, permiase, etc.). Em 24-3-937, o R. X. revelou um comprometimento tibial esquerdo também nas proximidades do maleolo interno.
Em 2-7-937, foi feito um debridamento do trajéto fistuloso com curetagem da superfície tibial lesada, após pequenas transfusões de sangue materno. Pela ferida cervical, nota-se um trajéto em direção à clavícula (em 16-4), praticando-se o debridamento em 19-4-937. Estado geral precário. Exacerbação doa fócos, notadamente dos tibiais, onde se notava edema acentuado, com calôr e rubor.
Pelo trajéto fistuloso da clavícula foi eliminada uma esquírola óssea em 15-5-937.
Após observarmos radiologicamente a extensão das lesões, praticamos a ressecção sub-perióstica do segmento interno da clavícula direita em 25-5-937.
As condições se agravam, parecendo que a paciente já não resistiria a tamanha luta. A medicação é intensificada e o estado geral melhóra, voltando o pulso a bater em torno de 100 e o termometro a acusar de 36°,5 a 37° de temperatura.
As lesões da tíbia direita são muito extensas, necessitando um aparelho gessado que sirva de modelo à reconstrução óssea.
A pouco e pouco, as reações foram se organisando, os fócos cicatrizando e a paciente convalescendo tendo alta em Fevereiro de 1938, isto é, mais de um ano após sua internação. A-pesar doa cuidados dispensados, as lesões tibiais determinaram deformação acentuada no terço inferior da perna e pé direitos.
O processo infecioso tendo atingido a cartilagem de conjugação e a epifise desse osso, nos seus segmentos internos, determinou um prejuizo no crescimento ósseo a esse nivel, com perda das relações normais na articulação tibio-tarsica. A perna apresenta uma escavação em goteira interna, inferiormente, e o pé torcido em varus.
Fôram aconselhadas medidas ortopedicas, afim de evitar que a situação se agrave, enquanto medidas outras não pódem ser tomadas.
A observação, já longa por si, merecerá, quando muito, ligeiros comentarios sôbre os fleimões do pescoço.
O pescoço divide-se topograficamente em duas grandes regiões: uma posterior, situada para traz da coluna vertebral, e outra, anterior, situada para deante da referida coluna. A segunda região, que ora nos preocupa, compreende o esqueleto e as partes moles que se acham situadas para diante de um plano vertico-tranversal que une a apofise transversa ao bordo anterior do musculo trapezio.
Formado por paredes musculo-aponevroticas em suas partes anterior e laterais e musculo-ósseas em sua parte posterior, divide-se o pescoço em celulas ou compartimentos, em cujo interior encontra-se os diversos organs, separados por tecido celulo-adiposo. Este tecido se condensa em certos pontos para formar bainhas fibrósas, em redór do feixe vasculo-nervoso, da traquéa e esofago, e da glandula tireoide. O fáto dos organs encerrados no pescoço se dirigirem ou se originarem do torax, ou caminharem para o membro superior, põe este espaço anterior em comunicação com o mediastino anterior e com a cavidade axilar. Daí se infere que quando as supurações se acham situadas entre a pele e a aponeurose cervical superficial, ou entre esta e a aponeurose cervical media, o processo é de facil acesso ao cirurgião. No primeiro caso a supuração descerá caminhando entre o esterno e a pele; no segundo, será detida pela furcula esternal. Em ambos os casos ha tendencia à exteriorizacão.
Quando a supuração caminha por detraz da aponeurose cervical media, portanto em pleno tecido celular, que se comunica com o tecido celular do mediastino e da axila, o púz tende a difundir-se, pela ação da gravidade, pelo mediastino, e axila, podendo o abcesso abrir-se em plena luz traqueal ou esofageana, ou erosionar os grandes vasos. A via de acesso, torna-se, então, mais complicada.
A região anterior ou traqueal sub-divide-se em regiões anteriores e regiões laterais. As regiões anteriores ou medias, situadas entre ambos os esterno cleidos mastoidêos, nos apresentam duas regiões superficais, supra-hioidéa e infra-ioidéa, e uma profunda, a região prevertebral.
A região infra-hioidéa, tem por limites: à cima, uma linha horizontal passando pelo corpo do ôsso hioide, e terminando nos musculos esterno-cleidomastoidêos esquerdo e direito; em baixo a furcula do esterno e mediastino anterior. Lateralmente é limitada pelo bordo anterior dos musculos esterno-cleido-mastoidêos. Em profundidade a região infra-hioidéa confina-se com o conduto laringo-traqueal e a região tireoidéa. Em um corte horizontal da região infra-hioidéa, podemos constatar, de fóra para dentro
1.° Pele. 2.° Tecido celular sub-cutaneo, vasos e nervos superficiais. Linfaticos. 3.° A aponeurose superficial. 4.° Aponeurose cervical media.
Entre a aponeurose media e a aponeurose cervical profunda, encontram-se a traquea, o esofago, o feixe vasculo-nervoso e a tireoide, separados por tecido celular frouxo.
Compreende-se então, facilmente, que uma coleção purulenta situada nessa região, propaga-se com a maior facilidade para o mediastino, podendo produzir erosão da traquea, do esofago, ou dos grandes vasos do pescoço.
No caso presente, o trajéto da coleção purulenta obedeceu ao mecanismo habitual. O púz caminhava para o mediastino anterior, produzindo alem disto, erosão da traquea.
E' frequente a reação dos ganglios cervicais e vias cervicais profundas, em consequencia de inflamações nas cavidades bucal, nasal ou faringéa. Quer haja inflamação agúda ou crónica, o aparelho ganglionar reage, observando-se desde o simples engorgitamento à supuração profusa. Compreende-se assim, o papel primordial do aparelho ganglionar nas infeções cervicais, onde só secundariamente o tecido celular circunvizinho participa do processo. E' classico dizer-se que não ha fleimão do pescoço, embóra se reconheça a existencia de celulites difusas e certas infeções de marcha lenta, pareçam independentes do aparelho ganglionar,
Os grupos ganglionares superiores acham-se situados ao nivel do angulo da mandibula, enquanto que os inferiores estão na região da desembocadura da veia jugular no tronco braquio-cefalico. A infeção pôde caminhar, indo do fóco infecioso originário aos ganglios linfaticos cervicais profundos. Quasi sempre, então, os ganglios linfaticos superiores da região do angulo da mandibula reagem. Outras vezes, mais raramente, não se pôde precisar o trajéto da infeção, assim como se torna difícil, sendo que é algumas vezes impossível, identificar a lesão originaria. Esta poderá ser representada por uma pequena ferida, já curada. Os fócos dentarios e amigdalinos ocupam o primeiro plano como responsaveis pelos processos inflamatorios cervicais. Nos fócos dentarios deve-se notar que apenas quando a infeção atinge o ligamento alveolo-dentario, os ganglios se engorgitam e supuram. A propagação pelos linfaticos é, assim, patente.
A sintomatologia varia de intensidade, quer se trate de adenite agúda ou adeno fleimão. O engorgitamento ganglionar é acompanhado de aumento da sensibilidade, de rubôr e calôr. Mais tarde, já a dôr é insuportavel, impedindo o sôno, somando-se à febre e ao mal estar. Os movimentos são dificeis.
Quando o adeno-fleimão é superficial, percebe-se pela palpação inicialmente a dureza e mais tarde a flutuação. No adeno-fleimão profundo palpa-se apenas um empastamento vago, pois o processo está mascarado pelos musculos e aponevrose.
Por ordem de frequencia, ocupam primeiro lugar os adeno-fleimões sub-maxilares e adeno-fleimões carotidianos. Em seguida, os adeno-fleimões peri-faringéos, adeno-fleimões parotidianos e supra-claviculares e os da nuca.
Os adeno-fleimões da região mediana do pescoço representam, apenas, oito por cento dos adeno-fleimões cervicais (Pulsen). Podem ser supra e infra-hioideos. O adeno-fleimão supra-hioideo ou sub-mental desenvolve-se entre o milo-hioideo e a aponeurose superficial. Pela natureza da sua séde, permanece circunscrito e é de facil acesso.
Os adeno-fleimões infra-hioideos medianos podem ser superficiais ou profundos. Os primeiros, são rarissimos. Os adeno-fleimões infra-hioideos medianos profundos, de observação rara, acham-se situados na bainha visceral adiante da traquéa, podendo se estender, lateralmente, até ao esterno cleido-mastoideo. Limitados acima pelo ôsso hioide, tendem em baixo a caminhar ao longo da traquéa até ao torax. Acompanham-se sempre de disfagia e dispnéa. O prognostico é grave. A esta classe pertence, sem duvida o caso em apreço. O fóco inicial não nós foi possivel identificar. Dentes perfeitos, amigdalas sem reação, cavidades nasais normais; nada enfim que podesse justificar o processo inflamatorio.
A historia acidentada, servirá, mais que qualquer comentario, para justificar o interesse do caso.
(1) Dos Serviços de Oto-Rino-Laringologia do Dispensario São Vicente de Paulo e Instituto de Assistencia e Pronto Socorro do Rio de janeiro. (2) Docente e Chefe de Laboratorio da Faculdade Nacional de Medicina e da Faculdade Fluminense de Medicina.
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