(*) Trabalho lido e discutido na reunião de Julho de 1953 do Departamento de Otorinolaringologia e Oftalmologia da Associação Médica do Paraná.
É nosso intuito apresentar aos distintos colegas um caso, verificado em nossa clinica particular, o qual pela sua singularidade parece-nos interessante ser comentado.
Em 3 de março de 1952 fomos procurados em nosso consultório por R. S., masculino, com 16 anos de idade, branco, estudante, brasileiro, solteiro e residente em Curitiba.
Submetido ao exame habitual anotamos os seguintes dados Antecedentes Familiares - Pais vivos e sadios, bem como 2 irmãs. Antecedentes Pessoais - Doenças próprias da infância; blenorragia há 3 semanas; glomerulo-nefrite sub-cronica. Tabagista moderado.
Historia da doença atual - O paciente relata ter de há 4 anos surtos frequentes e intensos de amigdalite palatina, com sua sintomatologia habitual, febre, mau-estar, odinofagia, dôres articulares e cefaleias. Veio igualmente a consulta porquanto o seu médico clínico geral em um exame routineiro de urina constatou a presença de albumina e no sedimento urinário hematias e cilindros, fazendo-o suspeitar de glomérulo-nefrite sub-cronica de origem focal tonsilógena.
Inspeção Geral - Normal. Aparelho Circulatório - Aparentemente normal; P. A.: 12-7. Aparelho Digestivo - Aparentemente normal; com discreta sensibilidade no ponto apendicular. Foi feita uma radiografia e constatada a normalidade do apendice. Aparelho Respiratório - Normal, aparentemente. Aparelho Genito-Urinário - Aparentemente normal, com exceção da glomerulo-nefrite. Sistema Nervoso - Aparentemente normal. Exame Otológico - Normal. Exame Rinológieo - Normal. Exame Laringológico - Normal. Exame Farringológico - Rino-faringe normal; laringo-faringe com mucosas discretamente hiperemiadas. Buco-faringe-Amigdalas palatinas hipertrofiadas, crípticas, congestas, com secreção muco-purulenta nas criptas, não aderentes aos planos mais profundos. Reação hiperemica dos pilares e discreto edema da úvula. Cavidade Bucal - Normal.
Diagnóstico Clínico - Amigdalite palatina criptica, focal, cronica.
Uma vez verificada a presença de uma infecção localisada na beco-faringe (Amigdalite palatina crónica) e que, no caso, mesmo sem os demais exames complementares (Hemosedimentação, Hemograma, Exame bacterio-citológico do material das criptas amigdalianas, etc.) podia ser considerada como fóco infeccioso responsável pelo processo renal, sugerimos ao paciente a amigdaléctomia, no que fomos apoiados pelo médico clínico que acompanhava o caso.
Na antevespera da intervenção cirúrgica fizemos, em nosso próprio consultório, a verificação do tempo de coagulação e sangramento, obtendo para o primeiro 6 minutos e para o segundo 3 1/2 minutos. Apesar da normalidade desse exame decidimos prescrever ao paciente duas ampolas de hemostático (Botropil) para uso intramuscular de 1 ao dia, coro medida profilática. Uma terceira ampola desse mesmo hemostático foi ainda ministrada 30 minutos afites da intervenção, bem como administrado por via oral uma cápsula de Amital sódico, como medicação pré-operatória sedativa.
Desejamos chamar a atenção de que o paciente foi conduzido à sala de operação, portanto, em perfeitas condições de operabilidade, tanto físicas como psíquicas.
Escolhemos a anestesia local, tendo empregado o anestésico Cook, em sistema Carpule, utilisando para tal cerca de 2 cc. do anestésico. Verificada a eficácia da anestesia iniciamos a intervenção fazendo uma amigdaléctomia pelo método de dissecção, sem grandes dificuldades técnicas, pois tratava-se de amígdalas hipertrofiadas e não aderentes aos planos profundos da loja amigdaliana. A hemostasia fora feita pela simples compressão das feridas operatórias com gaze. Reexaminamos as lojas amigdalianas e certificamo-nos da ablação total das amígdalas palatinas e de que não havia vasos ou áreas hemorrágicas. Pulverisação em ambas lojas com Anaseptil em pó. O paciente voltou ao seu quarto sentindo-se perfeitamente bem.
Decorrido aproximadamente 1 1/2 hora fomos notificados, de que o paciente tivera intensa "hemorragia" e perdido aproximadamente 300 a 400 cc. de sangue. Verificando imediatamente as feridas operatórias certificamo-nos de que ambas se encontravam absolutamente exangues e com camada de coagulo sanguíneo, portanto, sem sinais de hemorragia recente. Supomos, então, que o sangue perdido fosse o deglutido durante o ato cirúrgico e agora vomitado pelo paciente, porém extranhamos o fato de o ser em quantidade tão apreciável de vez que a intervenção decorrera praticamente com uma perda íntima de sangue. Aplicamos 10 cc. de Coaguleno, apesar de cientes das perfeitas condições de hemostasia na loja amigdaliana, mantendo o doente sob vigilancia atenta. Novamente após 1 hora tornamos a ser solicitados à presença do paciente que ainda por mais uma vez tornou a vomitar copiosa quantidade de sangue escuro e semi-coagulado, denotando a sua origem gástrica, mas, que os circunstantes supunham ter sua origem nas feridas operatórias.
Nessa ocasião o paciente já se apresentava bastante agitado psiquicamente e ao medir a pressão arterial constatamos ser a mesma de 9/5. Conhecendo a pressão normal do paciente, que tivemos oportunidade de medir em consultório (12/7), atribuímos essa queda à perda sanguínea verificada. Como nesse momento já tínhamos a quase certeza de que o sangue perdido pelo paciente provinha das vias digestivas, de vez que ambas lojas amigdalianas continuavam sêcas, tentamos fazer uma palpação da área gástrica. Ao primeiro toque manual dessa região o doente queixa-se imediatamente de intensa dôr nessa região e solicita que não continuemos com a nossa manobra palpatória. Diante desse fato e ligando as ocorrências entre si, suspeitamos de que o doente fosse um portador de uma lesão gastro-duodenal - provavelmente úlcera - com recente complicação hemorrágica, tendo se mantido até então em latencia e apresentando somente ocasionalmente sintomas que o doente assinalava para o lado do apendice cécal (razão pela qual já se tinha feito anteriormente uma radiografia).
Como não estivessemos autorizados a emitir um diagnóstico que foge à nossa especialidade e que por si só já é difícil de ser feito com precisão, solicitamos a presença do cirurgião geral e do médico clínico da instituição hospitalar em que se encontrava o paciente, afim de que esses dessem sua opinião sobre o caso. Ambos os colégas confirmaram nossa suspeita, após um exame rápido do paciente. Seguiu-se uma transfusão de sangue total na quantia de 500 cc. seguida no dia imediato de outra identica. Solicitamos imediatamente um exame radiológico o qual confirmou o nosso diagnóstico clínico e cujo laudo passamos, a transcrever:
"Exploração radiológicado estomagoe duodeno: Em exame fluoroscópico notamos enchimento gástrico em tempo normal com livre passagem esofageana. Líquido de hipersecreção gástricas e paredes edemaciada. Estomago sensivel às manobras palpatórias, com forte, reação da parede abdominal. Dôr localizada na porção gastro-duodenal. Tempo de esvasiamento retardado. Bulbo duodenal deformado.
A documentação revela líquido de hipersecreção gástrica, edema da parede gástrica notadamente da porção vertical da pequena curvatura. Bulbo duodenal deformado, com imagem de pequena retenção circundada por edema da parede. Sinais radiológicos de intensa gastrite. Sinais radiológicos de ulcera bulbo-duodenal e recente hemorragia."
Após a transfusão o paciente recuperou rapidamente as suas energias e sua pressão arterial normalisou-se dentro das primeiras 12 horas. Como 36 horas após a amigdaléctomia o paciente passava perfeitamente bem, e não acusava quaisquer perturbações que pudessem ser motivadas pela intervenção, recebeu alta do hospital. Em sua residencia seguiu um rigoroso tratamento clínico instituído pelo seu médico de família e quando o visitamos 9 dias após a amigdaléctomia sentia-se perfeitamente bem em relação à sua cicatrisação das lojas amigdalianas.
Semanas mais tarde fomos informados que igualmente a sua lesão gástrica tinha desaparecido, o que podia ser constatado radiológicamente. Igualmente a glomerulo-nefrite, a principal razão de sua amigdaléctomia tinha cedido completamente, tendo-se normalisado seus exames de urina. Em 8 de junho de 1953 o paciente compareceu ainda mais uma vez, por solicitação nossa, ao consultório, ocasião em que tivemos oportunidade de constatar o seu completo restabelecimento.
CONSIDERAÇÕES
Os principais motivos que nos levaram a apresentar o caso presente aos nossos colégas de especialidade, foram:
1 - A raridade dessa ocorrência como complemento direto ou indireto da amigdaléctomia. A bibliografia ao nosso alcance para o trabalho presente é escassa e pudemos encontrar apenas um caso de hemorragia intestinal - e não gástrica -, citado por Maspétiol e Chauvet nos "Les Annales d'Oto-Laryngologie", Tomo 69, Ns. 11-12 de 1952, págs. 726-729. Julgamos, portanto, ser uma das ocorrências mais raras como consequência mediata ou imediata de intervenção sobre as amígdalas.
2 - A segunda razão da nossa exposição é a de que existem casos, como o nosso, que puderam ser diagnosticados como "hematese por úlceragastro-duodenal latente após-amigdaléctomia" e nos quais a lesão organica podia ser evidenciada, provavelmente devem existir muitos casos, com "vómitos de sangue" verificados após a ablação das amígdalas, os quais pelas suas formas frustas não podem ser percebidas ou não chamam a atenção sobre possíveis lesões gástricas.
3 - A terceira e, talvez a mais importante das razões, é a de ordem prática que visa alertar os colégas otorinolaringologistas da necessidade imperiosa de uma anamnése geral bem orientada, mesmo no setor não diretamente sob a dependência da nossa especialidade. Ainda mais, do preparo do doente psíquica e fisicamente, porquanto os autores acima atribuem valor de destaque ao fator psíquico, nervoso e sobretudo a existência de outras lesões organicas. Em nosso caso a coexistencia da glomerulo-nefrite ao lado da amigalite palatina fôra evidente, mas que dizer de uma lesão inaparente e assintomática como uma úlcera gastro-duodenal latente?
E, conforme ficou demonstrado pela nossa observação, apezar de terem sido tomadas essas providencias e medidas que visam colocar o paciente nas melhores condições de operabilidade, nunca podemos por-nos a salvo de surpresas que diariamente surgem no exercício de nossa vida profissional. Desejamos, pois, chamar a atenção dos colegas especialistas de mais uma rara, se bem que possível ocorrência imprevisível no decorrer ou após uma amigdalectomia.
SUMARIO
O autor apresenta um caso de hematemese por úlcera gastro-duodenal latente observada imediatamente após uma amigdaléctomia em paciente masculino sem perturbações digestivas de monta. Chama a atenção sobre a necessidade de uma anamnése geral minuciosa e de exames complementares, além do adequado preparo pré-operatório, sempre que se trate de caso cirúrgico. Finaliza alertando os colegas especialistas sobre essa rara ocorrência post-amigdaléctomia.
SUMMARY
The author relates about a case of hematemesis due to latent and assintomatic gastro-duodenal ulcer observed shortiy after a tonsilectoiny performed ou a male patient. Attention is called upon the necessity of a well lead anamnesis, complementary clinical examinations, as well as, proper pre-operative tare. He finishes allerting the specialists to the fact that this rare incident may follow a tonsilectomy.
ZUSAMMENFASSUNG
Der Verfasser besclireibt eineu Fall ueber Hematemesis, bedingt durch latenten Ulcus gastro-duodenalis, welche sich unmittelbar nach einer Tonsilectomie einstellte. Hierbei wird aufmerksam gemaclit, auf die Notwendigkeit einer gruendlichsten Anamnese und der entsprechender pre-operativen Vorsichtsmassregeln. Es wird bezweck, die Fachkollegen durch oben dargelegten Vorfaill vorbeugend zu informieren.
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